A girafa que comia estrelas, José Eduardo Agualusa (texto), Henrique Cayatte (ilust.), D. Quixote
Esta é a história de uma girafa que comia estrelas. Assim nos diz o título. E logo queremos saber porquê. É o efeito de estranhamento, porque todos reconhecemos esta informação como não verosímil. Está então estabelecido o pacto com o leitor, a motivação criada pela informação do paratexto. Mas essa não é a única pista de que dispomos antes de abrir o livro. Na ilustração da capa, a cabeça da protagonista (imaginamos que seja ela, pelo título) está acima de uma nuvem. Estão assim abertas as portas para a narrativa, apresentando os dois elementos fundamentais da diegese: as nuvens e as estrelas. As primeiras motivam a contextualização familiar da girafa Olímpia, e levam à amizade com a galinha-do-mato de nome Margarida. As segundas salvam a jovem girafa da fome que enfraquece os restantes animais da savana por causa da seca. Olímpia a assim de uma girafa bizarra a uma doce e sensível criança que tem saudades da avó, acredita em anjos e facilmente se torna amiga de alguém tão diferente de si. Como acontece em Estranhões e Bizarrocos (da mesma dupla: José Eduardo Agualusa e Henrique Cayatte), o elemento estranho torna-se comum pela sensibilidade das personagens, pelas suas motivações afectivas e pela simplicidade das soluções que arranjam para os conflitos ou dificuldades que têm. Os principais valores a reter desta história serão o da beleza na diferença e a confiança no diferente. Mas a abordagem à morte deve ser igualmente destacada. Olímpia é diferente das outras girafas, porque anda com a cabeça nas nuvens na esperança de ver anjos, e assim rever a avó que morreu e de quem tem saudades. «A Avó Rosália, mãe de D. Augusta, dissera-lhe que os anjos dormem nas nuvens. Também lhe dissera que quando as pessoas morrem se transformam em anjos. Dissera-lhe isto pouco antes de morrer.» Repare-se na referência às pessoas, e não às girafas, ou aos animais. A história contada pela avó apazigua a criança no seu sofrimento, porque lhe permite acreditar numa proximidade invisível. O jogo reside na escolha do elemento de proximidade, que poderiam ser as estrelas que Olímpia come, mas não são. Nem nunca se pode inferir que a girafa come estrelas por andar com a cabeça nas nuvens ou o contrário. As duas acções são complementares e cumprem objectivos diferentes. Olímpia come estrelas porque gosta do seu paladar. No
entanto, a ideia poética de que renova o céu, e lhe dá mais brilho, envolve a sua acção em magia, atribuindo-lhe uma condição mais abrangente que a simples experiência sensorial. Devido a este comportamento o perfil da personagem adensa-se, ganha uma relevância que fará dela especial na sua diferença. Mas o contrário também se verifica. D. Margarida, por seu turno, é pouco inteligente. Esta característica é reforçada várias vezes, podendo até, num primeiro momento, ser desconfortável à leitura. Mas este efeito é propositado. Por um lado, diz-nos que D. Margarida tem dificuldade em pensar, em oposição a um vazio relativamente a Olímpia. Assumimos que Olímpia é mais inteligente? Olímpia mostrar-se-á voluntariosa na resolução da fome na savana, mas a sua decisão é a de procurar ajuda. A solução para o problema, quem o tem é D. Margarida, depois de muito se esforçar a pensar. O que anula categorizações e hierarquias de valores. Complementarmente, a crítica apontada ao comportamento humano, através das suas reflexões quando viaja pelo mundo, confere a D. Margarida uma autoridade renovada. Apesar de ter de fazer muita força para pensar, esta galinha gosta de pensar e por isso não desperdiça o posto de observação privilegiado que escolheu como casa: uma nuvem. O desassombro com que a estranheza, a morte, a aparente falta de inteligência são tratados, favorece a limpidez de valores, sem paternalismos ou cuidados semânticos. Pelo contrário, a construção sintáctica não se compadece das tenras idades dos leitores, recorrendo a orações subordinadas a par de orações coordenadas, a proposições e conectores de discurso diversos. As frases curtas intercalam com as frases longas, de modo a destacar as informações mais importantes, sendo em seguida contextualizadas. A ilustração também conta a sua história, dando primazia ao céu e à relação entre Olímpia e Margarida. De tal forma que a galinha aparece logo na primeira ilustração do livro, antes de ser apresentada no texto. Os espaços são contíguos, dialogam mas não se contaminam. O traço expressivo/ expressionista de Cayatte redimensiona os momentos mais importantes dando-lhes outro fulgor, como na imagem nocturna da cidade, cheia de luzes, com a nuvem e a sua residente a ar. A imagem da girafa, sempre de perfil, destaca o seu olho redondo, meigo e grande, assim como as manchas no seu focinho indiciam uma expressão de alegria ou tristeza. O cachecol ou o monte na savana fazem parte deste quadro em que o excesso ou o estranho se desejam e aceitam. É um livro muito rico e que se sente com carinho. (PNL: livro recomendado para 2º ano do 1º ciclo, leitura orientada em sala de aula, grau de dificuldade III) 11.02.08