Richard Bucher
A PSICOTERAPIA PELA FALA icípi Fundamentos, princípios questionamentos Inlernacicinais de Catalogarão na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livrei, SP, Brasill Bucher, Richard, 1940-1997 B932n
A psicolcrapia pela fala: fundamentos, princípios, qucstiotianicnios / Richard Emil 13uolior. São Paulo: EPU, 19S9. Bibliografia
ISBN 85-12-60440-9
1. Psicanálise 2. Psicologia clínica 3. Psitolcrapía 4. Relações interpessoais [. Titulo.
CDD-SIS.89H -157.9 -616.8917 NLM-WM 420
8-2178
índices paia tuialii^n sisltmálico: 1. Psicanálise: Medicina 616.S917 2. Psicologia clinica 157.9 3. Psicoterapia: Medicina 616.89 4. Relações Psicolcrápiças 616.8914
rapia" "todos os métodos que utilizam meios psicológicos para combater a doença pela intervenção do funções psíquicas". Nesta definição se reflele tanto o enfoque medica] ("combater as doenças") quanto a referência à psicologia associacionista da época ("as funções psíquicas"). 10. A respeito, pode-se citar a controvérsia entre Binswanger d Freud acerca dos componentes espirituais ("superiores") e pulsíonais {"inferiores") da natureza humana. Binswanger, no seu trabalho comemorativo do 80." aniversário de Freud, "A Concepção Freudiana do Homem à Luz da Antropologia", criticou a concepção naturalista de Freud, pela qual o homem seria "reduzido" a um esquema ou sistema conforme às ciências exalas. Diante das preocupações espiritualistas e transcendentais de Binswanger, Freud já anteriormente tinha deixado clara a sua posição: "A humanidade desde sempre sabia que tem espírito; eu tinha que mostrar a ela que também há pulsÕes". Quanto ao referido trabalho, Fremi o elogia com cortesia, para continuar: "Naturalmente apesar de tudo, não acredito no Sr. Sempre demorei apenas no térreo e no subsolo do prédio. O Sr. afirma que basta mudar o ponto de vista para enxergar lambem um andar superior onde residem hóspedes tão distintos como religião, arte e outros. O Sr. não c o único, ali, a maioria dos exemplares culturais do homo naturu pensa assim. O Sr. nisso é conservador, eu sou revolucionário. Se tivesse ainda toda uma vida de trabalho diante de mim, me atreveria a indicar àqueles aristocratas uma moradia em minha casinha humilde...". Percebe-se que as premissas (ou os "pontos de vista") são bem divergentes, fílosófico-transcendcntais de um lado, empírico-clínicas de outro.
Nota-se ainda que Binswanger, num trabalho posterior, corrigiu sua crítica do homo untura de Freud, percebendo outros valores de "veracidade" na obra de Freud. Em: BINSWANGER, L., Mein Weg zu Freud, em: Der Memcli in der Psychialrle. Neske, 1951. Este trecho ainda é citado por Rollo MAY, no texto "Psicologia Existencial", em: Millon, T. Teorias da Psicologia e Per' sotialidade, pp. 136-37. 11. BINSWANGER, L. Lebensfutútion und innere Lebensgesehichte, (1927). Em: Ausgewâhlte Vorlràge und Aufsatze, vol. I. Bem, Francke Verlag, 1961(;), pp. 50-73 (tradução nossa). 12. JASPERS, K. Psicopatoiogia geral. Z vol. Rio de Janeiro, Athencu, 1979P). Ver 2. a parle: As conexões compreensíveis da vida psíquica (Psicologia compreensiva); I, pp. 361-534. 3. a parte: As conexões causais da vida psíquica (Psicologia explicativa); II, pp. 551-672. Nota-se que a noção de "conexão" ("Zusammenhang") influenciou, desde Dilthey, em alto grau as ciências humanas da época, notadamente na Alemanha. Na própria obra de Freud ele aparece com frequência, sendo traduzida da maneira mais variada (coerência, contexto, coesão, correlação, encadeamento, ligação, trama, elo, processo, aproximação, conjunto, associação, sequência...), de sorte que seu reconhecimento nas traduções é de averiguação difícil (tanto cm inglês ou francês quanto em português). Antes de qualquer estruturalismo, a noção de Zusainmenhang se equipara àquela de estrutura; em Freud, testemunha a. sua convicção do determinismo psíquico e da coerência de todos os fenómenos da alma humana, antecipando a concepção estrutural propriamente dita.
Capítulo 3
Delineamentos teóricos do campo psicoterápico
3.1. O problema da teoria da prática psicoterápica No capítulo precedente, confrontamonos com a especificidade da relação psicoterápica. Esta se opõe, como vimos, à relação médico-paciente, na medida em que não recorre a meios intermediários. Se a ação médica opera mediante recursos objetivos, instrumentais, apelando para forças de oulra espécie — físicas, químicas, biológicas — a psicoterapia apela unicamente para aqucías forças que estão presentes diretamenfe em qualquer ação (ou melhor: interação) humana: as forças do diálogo, da "fala", da verbalízação e tudo aquilo que implicam afetiva e cognilivamente. Não obstante, cabe, com vistas a uma delimitação teórica do campo psicoterápico, distinguir a relação psicológica da relação psicoterápica propriamente dita. A primeira sempre está presente, em qualquer relação humana, inclusive na relação médica. Ela é implícita, concomitante, automática por assim dizer e, embora
42
consciente, se efetua de maneira não refletida, mais como um pano de fundo difuso do que respondendo a uma intenção explícita. Sem referência a teorias ou técnicas, a dimensão psicológica participa de tudo que é humano, regulamentada por certas convenções (as fórmulas de polidez, por exemplo) e codificada (e decodificada) segundo as necessidades de cada situação concreta. No caso da relação médica, ela intervém pela maneira do paciente apresentar a f-ua queixa, do médico interrogar, examinar, discutir, prescrever e, quem sabe, prometer alivio ou mesmo cura completa do achaque — interações aparentemente simples, mas de fato complexas se pensarmos nas implicações mágicas ou inconscientes que contêm; complexas também no que tange à sugestão, à persuasão que o médico pode ser tentado a usar (prometendo alívio, por exempio). Neste caso, situamo-nos na região limítrofe da relação psicológica cotidiana, isto é, não psicoterápica, em consequência do ohjetivo consciente, mas talvez in-
confessado, de querer diretamente influenciar o outro, para que "acredite" nas palavras — e no poder — daquele que fala, que "sabe" e que ordena em concordância com este seu saber. A persuasão aproxima-se, portanto, da relação psicoíerãpica(l), porquanto visa produzir uma certa mudança no outro. A relação psicológica, no entanto, não pretende alcançar esta mudança de maneira explícita ou proposital: ela pode produzir-se iocidentalmente, como efeito de reforço ou pelo amparo que uma atenção caritativa, por exemplo, proporciona ao doente. O médico, no caso, não se empenha em propiciar esta mudança ou cura pela via psicológica, o que resta o apanágio, precisamente, da relação psicoterápica. Bem em oposição à relação psicológica, espontânea e superveniente em qualquer situação humana, esta é explícita, sistemática e relativamente padronizada. Ela se sustenta por um arcabouço teórico que lhe confere uma certa coerência, um certo rigor e uma veríficabilidade que, embora longe de ser experimental, obedece a critérios de reflexão científica e contém referências a parâmetros metodológicos averiguados. A conjunção dos dois aspectos, da teorização contínua e do méíodo sistemático de investigação e prática, oferece uma garantia mínima pela não-arbitrariedade e seriedade do empreendimento terapêutico. Esta não deixa de ter a sua importância, visto as pretensões de cientificidade, isto c, de uma certa objetividade e comprovação intersubjetiva da psicologia clínica. Voltaremos à distinção das diversas relações psicológicas e psicoterápicas. Por enquanto, traiamos em primeiro lugar da 44
necessidade de definir teoricamente o que c psicolerapia, onde, em que campo ela se situa e como cia procede. Esta necessidade decorre precisamente da pretensão científica mantida por aquela psicologia clínica que se inscreve na tradição filosófico-científica do ocidente. Pelas suas exigências de reflexão metodológica, de rigor, consistência c autocrítica, ela reage contra as abordagens psicológicas de cunho mais especulativo, místico, transcendental ou parapsicológico. Nestas orientações, os critérios tradicionais de cientificidade são desleixados; outras referências são invocadas para justificar as linhas de atuação, tais como a intuição, a criatividade espontânea, o contato imediato com o cliente, a meditação transcendental, a mentali^ação, a sugestão, o êxtase, relações com forças ou seres extraterrestres e assim adiante. Não se trata aqui de criticar estas lige aos critérios de verificação e de elaboria oriental; basta citá-las para assinalar a diferença radical de enfoque no que tange aos critérios de verificação e de elaboração teórica, bem como para situar a psicologia clínica à qual nós nos referimos: ela não pretende fugir das exigências de coerência lógica e racional que caracterizam a evolução da ciência no ocidente; embora "não positiva", no sentido de não referir-se a um objeío diretamente observável ou quantificável, ela não abre mão da sua própria cientificidade. Para alcançá-la, elabora critérios próprios de investigação, adaptados ao seu objeto geral — o ser humano que luta com dificuldades c conflitos —, tanto quanto ao seu objeto específico — as interaçôes que, a nível de terapia, possam iniciar processos de mudança que beneficiem este ou aquele portador de conflitos.
De fato, como vimoj nos dois capítulos anteriores, a psieoterapia consiste numa interação muito particular entre duas (ou mais) pessoas. Ela é, portanto, uma prática, mas uma prática que não tira sua consistência de nenhuma teoria, de nenhuma "ciência básica" preestabelecida. Em sua estrutura, distingue-se essencialmente da terapia comportamental. Esta considera a si mesma como uma aplicação de princípios encontrados por outros métodos, ou seja, no laboratório, pela psicologia experimental (sobretudo animal). Isto implica um procedimento científico radicalmente diferente, o que repercute inevitavelmente nos métodos de avaliação e de comprovação. Por conseguinte, a relação com a teoria é muito diferente: no caso da terapia uomportamcntal, a teoria precede a aplicação, sendo elaborada num contexto diferente — contexto que corresponde, quase que totalmente, aos critérios da cientificidade "positiva", aqueles de quantificação, objetivação e abstração. Com muita lógica, a terapia comportamental considera a sua aluação como "científica", uma vez que aplica os resultados da ciência experimental do comportamento, obtidos principalmente por via indutiva. Ela se refere, pois, explicitamente, ao caráter "positivo" da sua fundamentação teórica, enraivada bem mais nas ciências exalas, em particular na biologia, do que nas ciências do homem. A psieoterapia aqui conceituada, enquanto parte da abordagem clínica não comportamental (nem psicométrica), desenvolve-se obedecendo a princípios diferentes. Sendo ela prática clínica (e não aplicação técnica), não se refere a uma teoria constituída alhures, mas elabora a sua teoria própria, mini movimento cir-
cular permanente: a sua elaboração teórica, embora fertilizada pelas reflexões filosóficas e antropológicas milenares da humanidade, procede com uma referência imprescindível à experiência clínica. Esta, sendo não experimental, não controlada e não repetitiva, não pode submeter-se aos cânones da ciência "positiva" — melhor, não pode nem deve submeter-se a eles, uma vez que obedece a outros princípios, decorrentes da sua situação específica com um objeto, não apenas alvo de investigação e de pesquisa, mas um sujeito, parceiro num processo de interação que almeja a mudança. Não se pode pensar, pois, como na situação experimental ou de aplicação, no controle das variáveis ou na estabilidade do seu aetting, se no enfoque psicoterápico, controle e estabilidade não fazem parte das propriedades desejáveis — se, pelo contrário, devem ser excluídos ou combatidos como "sintomas" de rigidez, de defesa e de resistência de um ou de ambos os protagonistas desta singela relação humana. Assim entendida, a psicologia clínica (e com eia a psieoterapia aqui em foco) não é "positiva" segundo o conceito tradicional (e positivista) de ciência. Levando as coisas ao pé da letra — uma vez que as palavras "querem dizer algo" c que a noção de "positivo" faz parte de um contexto histórico que quis extirpar, explicitamente, o "obscurantismo" do não-positivo, isto é, do negativo, pelas célebres "ideias claras c distintas" (leia-se: quantitativas) de Descartes — a nossa psicologia clínica logicamente pertencerá a uma "psicologia negativa" (2). O que caracteriza então uma tal psicologia negativa, contestada, por não ser científica, cm seu direito de cidadania na 45
comunidade ideológica dos cientistas.. . ? Sendo baseada na prálica, será ela necessariamente situativa e concreta; referindo-se à fala, ao diálogo como meio de comunicação e instrumento de trabalho, será ela necessariamente dialética; focalizando as experiências adas da pessoa, do "sujeito" pedindo auxílio, será ela necessariamente histórica; enfatizando o caráter humano da problemática em questão, será ela necessariamente ligada às ciências do homem; investigando as estruturas do tornar-se homem e dos tropeços que neste processo o acometem, será ela universal em suas extrapolações teóricas, à condição que estas sejam processadas com rigor e pertinência. Quanto ao conteúdo desta "psicologia negativa", a ser recriada sempre, embora antiga como a sabedoria humana, farão parte dela todas aquelas experiências negativas que o homem está sofrendo consigo mesmo e com os outros, ligadas à sua situação existencial, ao drama de ser "jogado no universo", numa derrelição sem fim. Pertencem a estas experiências a angústia, existencial ou situativa, a agressividade e destrutividade humanas, a psicopatologia de cada um, micro ou macroscópica; a mortalidade, finalmente, ou seja, o espectro da morte, inelutável na sua certeza objetiva e absoluta, perseguindo o homem como única certeza não-científíca, acerca da qual não lhe resta dúvida de quanto quer fugir dela. De maneira mais ampla, fazem parte destas experiências negativas iodos os fenómenos irracionais, nos quais se incluem o amor, a sexualidade, a afcíividade, o sonho, o desejo e a culpa — experiências banidas dos laboratórios da ciência positiva. Elas se infiltram cm nossa consciência, fazem irrupção em nosso comporta46
mento, oriundos de um "outro lugar" (como disse Fechner a respeito do sonho), de uma "cena alheia", ao mesmo tempo inquietante e familiar (isto é, subjetiva), exercendo um efeito subversivo sobre as nossas certezas aparentemente bem ordenadas . . . Todos estes aspectos "irracionais", presentes na mais cotidiana conduta humana, não são tratados pela "psicologia geral e experimental". Porém, eles não devem ser negados ou evitados pela fuga para o laboratório e suas certezas aconchegantes, nem pela prioridade intransigente atribuída ao estudo do "homem geral, adulto e civilizado", nem pela primazia reclamada para o estudo de traços parciais ou ultradetalhados do seu comportamento. Ao lado desta psicologia geral, cabe pois uma psicologia concreta e, em particular, clínica, cuja elaboração urge, visto a amplidão e a permanência dos conflitos humanos — presentes inalteradamente apesar de todo o "progresso da ciência". Esta psicologia concreta, longe de pretender alcançar a abstração, aceita a implicação do psicólogo ou do psicoterapeuta nas interações múltiplas com o seu objeto que, precisamente, não é um objeto, mas um sujeito, a ser apreendido, estudado e tratado na sua singularidade subjetiva. Esta subjetividade, tão bem enfatizada por Binswangcr, não apresenta um déficit, uma fraqueza da abordagem psicológica aqui preconizada, mas uma riqueza na investigação de fenómenos humanos de alta relevância. Como já frisamos, esta psicologia será concreta e universal ao mesmo tempo, st' conseguir apreender c articular entre si elementos significantes de uma tal qualidade e envergadura que revelem os alicerces da es-
truturação psíquica do homem, a um nível transindividual e propriamente anuo pológico. Uma tal abordagem, sem dúvida, não permitirá verificações empíricas diretas ou "positivas", mas nem por isso será necessariamente incontrolável, selvagem, especulativa ou não-científica. Para executar este projeto, será preciso basear-se cm critérios próprios de cientificidade, diferenics daqueles das ciências exalas — o que não quer dizer que sejam por isso menos rigorosos, sendo que o critério de exaíidão (isto é, de quantificação e metrificação) não é o único critério científico. Qualquer sistema com pretensões de cientificidade se valida não pelo aspecto da exatidão, mas pela coerência lógica das suas proposições e hipóteses teóricas, o que é um problema não quantitativo, mas epistemológico. Esboçadas estas considerações gerais sobre a necessidade de discutir a questão da cientificidade também a nível da psicologia clínica, bem como de proceder à sua elaboração teórica, faz-se mister encontrar critérios capazes de nortear este empreendimento. De fato, a tentação pode ser grande — e não são poucas as orientações ou "escolas" que sucumbem a ela — de desistir da reflexão teórica rigorosa, uma vez que não adianta, diante da especificidade do objeto, a relação psicoterápica, recorrer aos critérios tradicionais da ciência. Em particular, não adianta recorrer ao sacrossanto critério da quantificação, se se quer apreender o que de subjetivo, de inconsciente, de a\etivo ou de irracional participa na interação entre terapeuta e paciente, ou até mesmo a constitui estruturalmente, se nós a considerarmos além da sua aparência observável.
Não obstante, empenham-se muitos autores hoje em dia para chegar a uma avaliação quantitativa daquilo que "se a" numa sessão de psícoterapia, ou ainda, dos efeitos supostos que a inleração constatada produz. Não nos referimos aqui a estes esforços em detalhe, empreendidos sobretudo na escola rogeriana(3) e na escola que se baseia na teoria da comunicação(4); em pesquisas sobre a interação psicoterápica, é sem dúvida possível obter resultados estatísticos interessantes, mas estes se situarão inevitavelmente a nível da consciência e da racionalidade — onde os elementos e processos qualitativos já estão bastante complexos — o que nos parece insuficiente para levar em conta a globalidade e a complexidade do psiquismo humano. Por outro lado, a insuficiência da abordagem científica tradicional não deve servir de pretexto para abrir mão, simplesmente, do esforço reflexivo: significaria abdicar da responsabilidade ética pela ação psicoterápica, tanto ao nível individual quanto ao nível comunitário, e entregar-se a uma perigosa fantasmatização ideológica. Conquanto nenhuma reflexão teórica é capaz de eliminar a influência ideológica — presente, no seu sentido mais amplo, em todos os empreendimentos humanos — compete, tanto ao cientista quanto ao prático, ficarem vigilantes a este respeito, para diminuir ao máximo aquela presença imponderada. Ela facilmente se torna distorcedora dos verdadeiros objetivos, minando sub-repticiamente as posições éticas declaradas e abrindo as portas a situações clínicas falaciosas e irreflctídas, uma vez que a formação mínima do profissional é, em psicologia, muito lacunária e de difícil controle, apesar das 47
lindemos aqui, tão-somente, mostrar a preocupação com a fundamentação científica do novo método psicotcrapêutico, descoberto acidentalmente por Breuer e desenvolvido por Freud. É nesta mesma página, aliás, que o novo procedimento é resumido de modo singular e conciso: trata-se simplesmente de "dar palavras ao afeto" (reprimido) — em que consiste, sumariamente, todo o segredo da psicoterapia, mesmo se a referência concerne ainda ao modelo da neurose traumática. O problema, no entanto, é de saber como chegar lá, como proceder para que isto se produza, em benefício do paciente e da sua libertação interna. Sem entrar muito em detalhes, parece-nos interessante seguir um momento a apresentação que Freud faz do seu novo método. Como base da sua reflexão teórica, Freud situa a noção de defesa e, portanto, de conflito: a intervenção terapêutica consiste num esforço, num "trabalho psíquico" que tem que opor-se à "força psíquica" do paciente, força esta que se opõe à rememoração e, por conf.eguinte, à resolução do conflito. O modelo de Freud, de chofre, é eminentemente dinâmico: o psicoterapeuta intervém num "jogo de forças" no qual tem que tomar posição em favor da ideia ou representação reprimida (não se fala ainda de recalque), contra o Eu do paciente. Este, em consequência da reprovação do conteúdo temático da representação, a relega a um lugar "fora" da consciência e da memória disponível. Neste "lugar" —• que pouco depois Freud chamará de inconsciente — a representação continua ativa, exercendo um efeito palogênico devido a sua pressão constante sobre o psiquismo consciente da pessoa. 50
Destarte, o não-saber do histérico corresponde mais a um "não-querer-saber", mas com a ressalva de que este não-querer não se impõe de maneira toíalmente consciente. A tarefa do psicoterapeuta consiste, na formulação de Freud, em "superar a resistência à associação pelo trabalho psíquico", sendo que a própria terapia corresponde au "caminho até a representação patogênica". À maneira de um quebra-cabeça, cabe, pois, ao psicoterapeuta, recompor a "organização suposta" ao material patogénico, num verdadeiro "jogo de paciência" que se torna muito demorado pela impossibilidade de "peneirar diretameníe até o núcleo da organização patogênica". Além da insistência sobre o aspecto dinâmico, percebemos, pois, através das comparações que Freud emprega, a alusão a um fator lúdico: o trabalho psicoterapéutico é uma atividade humana comparável a um jogo (em um texto posterior, Freud chega a comparar a própria psicanálise com um jogo de xadrez) (8), com regras complexas cuja aplicação requer paciência, dosagem e perspicácia. Ao lado do aspecto lúdico, este "jogo" contém um outro que podemos chamar de cognitivo: várias vezes aparecem noções como "inteligência inconsciente", "pensamento inconsciente", "fio lógico", coerência, sistema. . ,, além da referência contínua à importância da linguagem, ou seja, ã Iransposição em palavras, à verbalização dos conteúdos mentais "reprimidos". Todas estas formulações ocupam um lugar central e demonstram um interesse teórico particularmente nítido. Quanto aos meios de que o psicoterapeuta pode dispor para superar as tenazes resislências do paciente, são eles muito simples: "quase todos aqueles pelos
quais um homem exerce em geral um efeito psíquico sobre um outro". Nada pois de artefatos, de truques, de forças extraordinárias ou mágicas, mas um trabalho que se situa ao nível de interações psíquicas que são simplesmente humanas —- ideia que já encontramos acima, apresentando a concepção de Binswanger. O interesse pela fundamentação científica, manifestado por Freud já neste texto precoce, assinala-se ainda em dois outros trechos. Num primeiro, frisa que nem sempre é possível "encerrar a atividade psicoterápica em fórmulas"; isto tornar-se-ia particularmente difícil quando se tratasse de convencer o paciente a abandonar ou trocar os seus motivos de defesa, depois do psicoterapeuta os ter "adivinhado". Percebe-se, no entanto, que a dificuldade mencionada por Freud se deve a uma teorização insuficiente da transferência e do seu manejo — muito embora já a aponte, mas de modo mais descritivo do que instrumental, usando os termos, por exemplo, "vinculação errónea" ou mésalliance; não pode conceber a mudança psicoterápica sem recorrer ao modelo da sugestão, a atitudes explicativas ou ate paternalistas. . . Não obstante, é nítido que Freud entrevê a "transformação em fórmulas" como um ideal desejável para uma abordagem científica, o que não deixa de configurar um presságio de tentativas posteriores, notadamente estruturalistas, de formalizar os processos psíquicos e psicoterápicos. Finalizando, Freud toca aí no problema da compreensão da i ale ração entre psiquismo consciente e inconsciente, a respeito de suposições acerca do estado do material patogénico antes da análise. A seu ver, é impossível dizer algo de coe-
rente ou de pertinente sobre estes estados, "antes de ter clareado, aprofundadanente, as c ncepçóes psicológicas de ba;e, em particular sobre a natureza da consciência". Com esta colocação, parece-nos estipulada a necessidade de uma teoria abrangente do psiquismo humano, teoria essa que Freud se esforçava por elaborar durante muitos anos, sem que chegasse, contudo, a uma formulação definitiva. Porém, o que nos interessa aqui é que desde o início, vislumbrava esta necessidade, e isto precisamente no que tange à compreensão dos processos psicoterãpicos: sem dispor, como base, de uma teoria geral do psiquismo, não será possível entender o que se a numa psicoterapia, nem o que fundamenta e estrutura os processos psíquicos normais e/ou paloIógicos do homem. Não existe até hoje nenhuma teoria abrangente do psiquismo humano, na qual seria possível basear-se para atingir o nosso objetivo: delinear o campo psicoterápico. Nem Freud, nem a psicanálise pós-freudiana, nem outras abordagens lograram lançar mão de uma teoria geral, aceitável como "provisoriamente definitiva" pela comunidade dos cientistas psicólogos. O que existe, entrementes — e com que podemos e devemos contar — são os diversos modelos teóricos, surgidos em determinados momentos da história da psicologia e que hoje coexistem, embora, de fato, nem sempre pacificamente. . . Fm particular, estamos em presença de três modelos teóricos, de concepções muito diferentes e de alguma forma complementares, que respondem a exigências mínimas de cientificidade, pelos seus procedimentos, premissas, critérios e objetivos.
Todos os três foram elaborados fora do campo médico e psiquiátrico, embora mantendo certos vínculos com ele: o modelo behaviorista, baseado no conceito da aprendizagem e no esquema estímulo-resposta; o modelo da comunicação, referindo-se à teoria geral dos sistemas, e o modelo psicanalítico, baseado no conceito do inconsciente e na estruturação que este impõe ao psiquismo humano. Não cabe esmiuçar aqui estes três modelos; basta citá-los para que se Lenha uma ideia geral sobre os modelos básicos que orientam a prática psícolcrápica hodierna bera como a reflexão que esta inspira. Pessoalmente, já deixamos clara nossa preferência pelo modelo psicanalítico •— ou, de maneira mais geral, "psicodinámíco". Trata-se aí, é óbvio, de uma limitação arbitrária, devida a uma opção pessoal que assumimos; porém, esta se sustenta por uma razão simples: a (eoría psicanalítica é a única das três teorias ciladas que £i? origina diretamente na prática clínica. Com efeilo, foi a parlir da sua experiência clínica que Freud a elaborou, e é com referência permanente àquela, que a reformulava sem parar. Por esta razão, ela se apresenta, ao nosso ver, como a teoria mais adequada para dar conta dos processos psicoterápicos, ou seja, daquilo que se a, concretamente, entre os dois protagonistas da situação psicoterápica. Como a psicanálise não nasceu em laboratórios experimentais, nem toma empresíado os seus conceitos ou esquemas de outros campos epistèmicos (ou se o faz, o faz de modo metafórico, isto é, transfigurando o seu alcance), ela não 0, portanto, uma "aplicação" de conheeímentos obtidos em searas alheias; ela demonstra pela sua própria estruturação in-
terna, uma congenialidade com o campo a delinear. Neste sentido, o modelo psicanalítico representa o nosso horizonte teórico, mas isto apenas em termos gerais, como referência que possa nortear a nossa investigação, sem que seja a nossa intenção discutir conceitos ou concepções psícanalíticos em detalhe, nem querer "aplicá-los" diretamente ao campo psicoterápico. Este, como campo da atuação profissional do psicolerapeuta, poderá benefieíar-se da contribuição metodológica e reflexiva que o modelo psicanalítico oferece, em particular quando se trata de analisá-lo com respeito às incidências antropológicas e psicológicas "negativas" que o caracterizam. É o que já iniciamos, tanto ao nível do desenvolvimento da temática dos capítulos anteriores, quanto pela referência a Freud no que tange às suas ideias sobre a psicoterapia da histeria. Se aquele trabalho de Freud representa o início da reflexão científica (iatQ é, teórica) sobre a atividade do psicoterapeuta, ele pode também ser considerado como base possível da nossa investigação, se bem que es!a seja mais ampla e mais concreta. Não acreditamos, portanto, ser possível proceder à elaboração de uma doutrina geral da psicoterapia: as diversas abordagens são diferentes demais, as posições e posturas dos teóricos demasiadamente influenciadas por elementos ideológicos e subjetivos, para que seja possível chegar-se a uma unificação. Contudo, a multiplicidade de modelos, de tipos de terapia e de concepções do homem não contém aspectos apenas negativos; indica também a riqueza e a complexidade do
fenómeno humano e da sua abordagem pela psicoterapia. Como já frisamos acima, isto, no enlanlo, não quer dizer que se deva acolher às cegas tudo aquilo que hoje em dia se ;>presenta como psicoterapêutico, nem que as atitudes ecléticas sejam as mais apropriadas ou as mais prometedoras para os pacientes: para que uma psicoterapia mereça este nome, ela lem que ar pelo crivo da reflexão teórica e da avaliação científica, obedecendo a critérios específicos adaptados ao seu objeto. Somente assim será possível aproveitar a riqueza e a complementariedadc das diversas abordagens, respeitando as diferenças e os esforços de outros profissionais para abrir novos caminhos. No que diz respeito ao modelo psicanalítico que norteia este nosso delineamento, cabe uma última afinação. Como salientamos, Freud pode ser considerado não somente fundador da psicanálise, mas lambem pioneiro na investigação leórica da psicoterapia. No decorrer da "evolução" da psicanálise, todavia, o espírito pioneiro de Freud chegou a se perder cada vez mais. Paralelamente às concessões ao modelo médico c às necessidades terapêuticas da sociedade — sobretudo nítidas na vertente americana da psicanálise, na ego-psychology e na "psiquiatria dinâmica" — desenvolveu-se um dogmatismo oprimente que pesava muito {c continua a pesar) sobre o interesse por outras formas de psicoterapia, bem como sobre a própria psicanálise. Preocupadas mais cm manter uma suposta "pureza doutrinal" (c com ela, quem sabe, um monopólio de mercado), na qual o próprio Freud nunca tinha pensado, as gerações posteriores de psicanalistas afincaram-se em elaborar sistematizações mais abrangen-
tes, em propor novas classificações, esquemas e conceitos que, de fato, alargaram o campo psicanalítico, mas o privaram de forças mais imaginativas e mais criativas, que poderiam, na esteira de Freud, ter proporcionado uma renovação acurada da sua obra. Não é por acaso que a obra de Lacan, visando uma tal renovação, desenvolveu-se à margem desia psicanálise "oficial". .. Dianlc da esterilidade da psicanálise assim institucionalizada e "adestrada", anunciada como herdeira de Freud mas desvirtuada da sua intenção originária e fundadora, as reações não se fizeram esperar e são fáceis de compreender. Elas vão da rejeição pura e simples, como no caso de um Eysenck(9), por eexmplo, a aceitação parcial ou à transformação de determinados elementos em peças-mestres de novas doutrinas. Nestas, o conjunto do arcabouço teórico de Freud e o seu relativo equilíbrio são abandonados, em benefício de elementos que podem ser importantes, mus que, na psicanálise, eram subordinados à concepção global do funcionamento da alma; isolados deste contexto que lhes d;i sentido e coerência, transformam-se facilmente cm hipertrofias provocando visões (e atuações) unilaterais, em detrimento da reflexão teórica rigorosa c do respeito à unidade psicossomática do homem c ã complexidade da sua existência. Isto aconteceu, ao nosso ver, com Binswanger, como já indicamos, e num sentido semelhante com |ung, Boss c outros, que focalizaram mais o Sado espiritual, esquecendo-se do pulsional e da sua incidência no inconsciente. Do lado oposto, assistimos à ênfase dada por Reich e outros ao biológico, por ]anov, Pcrls, Moreno c outros à reação catártica, pelos
culturalistas à influência social e aos patterns culturais. . . Seria possível prolongar esta enumeração c apresentar a longa Hsla de "novas" psicoterapias que se referem em algum aspecto à psicanálise, mas não é essa a nossa intenção. Basta esta alusão à evolução da psicanálise, aos problemas que ela suscita cm consequência da sua falta de rigor e da sua difusão ideológica, bem como à sua absorção filtrada por ou iras escolas de psicoterapia, nem sempre conscientes ou preocupadas em esclarecer as suas raízes, empréstimos e implicações; basta ter apresentado aqui esta situação geral, para podermos nos situar, nos definir e proceder agora ã investigação teórica preconizada.
3.3. A fundamentação teórica e os manuais de psicoterapia Acreditamos ter insistido suficientemente sobre a importância e o caráter imprescindível da fundamentação teórica da prática psicoterãpica. Porém, folheando monografias ou manuais sobre psicoterapia, deparamo-nos com a ausência quase que total de uma reflexão teórica explícita. Quando muito, encontramos referências teóricas a determinados modelos ou, mais frequentes, alusões incidentais aos arcabouços leóricos que sustentam as diversas técnicas. O questionamento das incidências epistcmológicas e antropológicas, a serem apreendidas precisamente através da mais rigorosa fundamentação possível das premissas desta prática, surpreendentemente muitas vezes faz falta. Ao nosso ver, temos aí um índice de como são subestimadas a necessidade e a importância desta reflexão teórica — B 54
como, simetricamente, se sobrevaloríza o aspecto técnico da atuação profissional do psicoterapeuta. Vale a pena examinarmos alguns dos grandes manuais de psicoterapia ou de psicologia clínica que, pela suma das informações e pelas contribuições dos mais variados autores, são sem dúvida representativos do pensamento c das tendências atuais que norteiam a clínica psícoterápica. Em 1965, foi publicado o Handbook of Clinica! Psychology, sob a coordenação de B. B. Wolman(lO). O volume, de mais de 1.500 páginas, conta com a colaboração de 61 profissionais, especializados nas diversas áreas psieoterápicas. Na introdução, o coordenador apresenta os diversos objetivos que regiam a elaboração da obra; quanto ao nosso propósito, define o seguinte objetivo: "familiarizar os psicólogos clínicos e profissionais afins com o vasto campo de pesquisa, experimentação, leórica e prática da psicologia clínica"; quanto aos objetivos mais pragmáticos e éticos, enfatiza: "apresentar a profissão do psicólogo clínico e demonstrar sua vitalidade, sua vigorosa e eficiente busca da verdade científica c sua boa vontade c capacidade de ajudar a quem precisa de auxílio destes profissionais". Aparecem, portanto, aí noções tais como "campo de pesquisa", "experimentação", "teoria", ou ainda "busca da verdade científica", que tesfemunham o interesse pelos aspectes epistemológicos da prática psicolerápica. E, com efeito, no corpo do livro, a segunda parte é dedicada aos "Fundamentos teóricos da psicologia clínica". Em dez capítulos, são tratadas as diversas disciplinas que estão contribuindo para o entendimento das
"perturbações mentais" e suas causas. São discutidas, sucessivamente, a genética, a neurologia, a bioquímica, a sociologia, a antropologia, a teoria da aprendizagem, as teorias comportamentais e de personalidade, a psicanálise c as suas diversas escolas. Porém, não se trata aí, realmente, de uma reflexão epistemológica e antropológica sobre a fundamentação teórica da prática psicoterápica; as diversas disciplinas "fundamentadoras" ficam justapostas e não são consideradas numa perspectiva integradora, ficando, portanto, "esIranbas" ao campo psicoterápico. Mas será que a fundamentação teórica de uma determinada prática pode processar-se a partir de outros campos epistèmicos de investigação e de s a b e r . . . ? Não será necessário que esta reflexão se desenvolva, pelo menos em parte, dentro do próprio campo de atuação, em congenialidade com as características do seu objeto: a intcraçâo humana. . .? 1'arecc-nos que esta preocupação, tão fundamental, está ausente nesta obra volumosa, no resto muito bem concebida. Talvez seja esta ausência uma consequência da linha metodológica ou científica adotada e apresentada na primeira parte do volume, "Métodos c pesquisa em psicologia clínica", pelo que se vê que a questão da metodologia é colocada antes da questão da fundamentação teórica. Mas não é que esta determina em grande parte aquela e que é tão-somente a partir do delineamento teórico de um objeto de estudo que métodos possam ser elaborados para a sua investigação? A relação circular que existe entre definição do objeto, método, prática e teoria fica, pois, ao nosso ver, pouco valorizada na presente obra.
Uma outra obra prestigiosa, embora não coletiva, é The Technique of Psychothempy, da autoria de L. R. Wolberg( 11). Na segunda edição, de 1967 (l. a edição em 1954), os dois volumes ultraam 1.400 páginas. O livro apresenta uma visão —• muito bem elaborada e desenvolvida, por sinal — da psicoterapia, a partir das premissas da psiquiatria dinâmica americana, fundada, como se sabe, a partir de uma recepção transformadora das principais ideias de Freud acerca do funcionamento do psiquismo humano. O título, no entanto, indica já claramente que a obra se restringe aos aspectos técnicos da psicoterapia; mesmo no primeiro grande capítulo, de mais de 400 páginas (The scope, types and general principies of psychotherapy), não encontramos, apesar de muitas considerações interessantes e aprofundadas, nenhuma referência ã fundamentação teórica deita prática — prática singela que o autor descreve muito bem, propondo diferenciuções pertinentes quanto a outras relações psicológicas. Mencionamos ainda que o enfoque da obra c predominantemente médico e psiquiátrico, embora não chegue a contestar a presença de psicólogos clínicos no campo psicoterápico. Em 1971, foi publicado o Handbook of Psychotherapy and Behavior Change, coordenado por Bergin Sc Garfield(12). Contando com a colaboração de 32 autores, a obra apresenta (apesar do subtítulo An Empirical Anaíysis) uma primeira parte sobre Theory, Methodology and Experimentation. Contudo, nos seis capítulos desta parte introdutória não encontramos, novamente, nenhuma elaboração teórica criteriosa; o primeiro capitu-lo, Some Historical and Conceptual Perspectives on Psychotherapy and Behavior 55
Changt, introduz considerações gerais •obra a evolução da psícoterapia cm nosso século, mas limita-se, em seguida, a discutir táticas e técnicas de procedimento. .. Como o título deixa supor, o enfoque é mais psicológico do que psiquiátrico, mas aqui ainda, as preocupações de operacionalização e de aplicação pragmática tampouco deixam espaço para quesLionamenío epis temo lógicos. No âmbito do idioma alemão, cabe mencionar a sistematização tentada em Klinische Psychologie, coordenado por Schraml & Baumann( 13). O primeiro volume, "Teoria e Prática", foi reeditado, ampliado, em 1975 (1.* ed. em 1970) e conta com 30 colaboradores; o segundo volume, intitulado "Métodos, Resultados e Problemas de Pesquisa" data de 1974, com 26 autores. Apesar da promessa contida no título do primeiro volume, encontramos alusões apenas ocasionais à problemática da fundamentação teórica. Na introdução dos editores, encontramos uma preocupação cm definir o campo da psicologia clinica, mas eia é considerada simplesmente como uma aplicação de "conhecimentos, técnicas e métodos das disciplinas básicas da psicologia e das suas disciplinas vizinhas", tais como psicologia profunda, sociologia e pedagogia social. Não se questiona pois, como estes conhecimentos, técnicas e métodos são adquiridos e o que eles implicam quanto à imagem do ser humano a ser tratado; o enfoque é predominantemeníe dinâmico e social, mas não antropológico — lacuna importante, ao nosso ver, desta obra que, de resto, se destaca pela sua linha mais psicossocial do que psiquiátrica. Cabe mencionar em seguida o Hand-
buch der I'sychohgie(l4), obra monu56
mental elaborada segundo as melhores tradições da psicologia alemã, O volume 8, editado em dois livros (1977 e 1978), totaliza mais de 3.300 páginas c conta com contribuições de mais de 100 autores, o que nos dá uma ideia do seu alcance. Sendo muito bem concebida e muito complexa, não nos é possível oferecer aqui uma visão global da obra; porém, encontramos enfim algo que corresponde às nossas preocupações de fundamentação: na introdução ("História, Objcto, Fundamentos da Psicologia Clínica"), de autoria do coordenador geral L. J, Pongratz, confrontamo-nos, em 50 páginas, não somente com uma visão detalhada da história da psicologia clínica desde Rousscau, Darwin e Kraelin, mas ainda com um esforço de definir o que é a psicologia clínica c qual o objeto específico sobre o qual age ou intervém. Na última parte desta introdução, encontramos mesmo "Prolegômcnos antropológicos" da psicologia clínica, onde se discutem as diversas imagens do homem, implícitas nos diversos modelos que norteiam as atividades do psicólogo clínico. Referência se faz à célebre controvérsia entre Skinner e Rogers acerca do homem como sendo controlado ou autónomo, a uma comparação realizada por Ford & Urhan entre as concepções do "homem-robô" e do "homem-piloto", e a questão de saber se o ser humano é essencialmente ativo ou reativo (o que implica em pressupostos cosmológicos e epistcmológicos e propriamente numa "cosmovisão"). Citamos um trecho da conclusão do autor deste capítulo: "Conceitos antropológicos significam muito para a ciência; eles determinam de modo definitivo teoria, terminologia e metodologia. Do pon-
Io de vista da psicologia clínica, eles têm consequências para o objetivo de uma terapia e para a técnica do tratamento. Os modelos do homem robô, reativo e controlado se adaptam mais ao objetivo terapêutico de eliminação de sintomas e a uma intervenção terapêutica preponderantemente ativa. Ao contrário, os modelos do homem 'piloto', ativo e autónomo, evocam uma atitude terapêutica visando descobrir a estruturação própria ao indivíduo e leva ao objetivo da autorcalização". Seguem-se as diversas partes da obra, a primeira dedicada a sintomatologia, a segunda aos "Fundamentos teóricos gerais" c a terceira, aos "Fundamentos teóricos específicos". Percebe-se, pois, que a questão da fundamentação teórica recebe a devida atenção: desenvolvida em mais de 500 páginas, ela contém, entre muitas outras contribuições, um capítulo específico sobre "Fundamentos epistemológicos", onde são discutidas as relações entre teoria, pesquisa e prática, os problemas de validação, de formação dos conceitos, do planejamento, bem como questões éticas... Se todos estes aspectos não são tratados de maneira aprofundada, eles pelo menos são mencionados no devido contexto, de sorte que a sensibilização aos "prolegómenos antropológicos, filosóficos e epistemológicos" da prática clínica se torna possível. No âmbito da cultura sa, mencionamos uma única obra, a Propédeutique d'une Psychothémpte (1976), de autoria de P. B. Schncidcr(15), com uma série de colaboradores. Obra sucinta, de apenas 350 páginas, ela, não obstante, loca às questões fundamentais não mais
da psicologia clínica em geral, mas da psicoterapia. "Propedêutica", no sentido de introdução, de conhecimentos preliminares ao exercício da disciplina em pauta, ela corresponde em muito às nossas preocupações de fundamentar a prática psicoterápica — com uma ressalva importante: não podemos concordar com o enfoque exclusivamente médico ou psiquiátrico do autor principal; este enfoque nos parece por demais antiquado, visto a evolução da psicologia clínica desde a introdução da psicanálise c as aplicações da psicologia comportamental; cabe, hoje em dia, ressaltar, em primeiro lugar, as diferenças fundamentais entre o discurso médico e o discurso psicanalítico, bem como as repercussões deste último sabre a prática psicoterápica em geral. Voltaremos, abaixo, a esta diferença capital. Por enquanto, mencionamos que a primeira parte desta "Propedêutica", "Alguns problemas teóricos", contém desenvolvimentos interessantes e aprofundados, sobretudo no primeiro capítulo, "Esboço de uma teoria geral da psicoterapia", e no capítulo sobre a "Relação psicoterápica". dos quais veremos algumas ideias adiante. Finalizando esta revisão de grandes manuais de psicolerapia ou de psicologia clínica, cabe salientar que não temos conhecimento da existência de tais obras no âmbito brasileiro. Convém referir-se, no entanto, ao livro de H. J. Fiorini, Teoria e Técnica de Psicoterapias (1976 trad. do espanhol) (16). O título, porem, pela sua generalidade engana: trata-se essencialmente de um trabalho sobre a psicoterapia breve, com algumas considerações mais amplas. Estas se desenvolvem segundo um enfoque que procura constituir "uma teoria das técnicas de psicote57
rapia em que esteja incluída uma consideração crítica de algumas de suas bases ideológicas" — projeto bem concebido pelas suas intenções, mas cuja execução não faz justiça à pretensão anunciada.
3.4. A definição do campo psicoterápico Pretender definir o campo da atuação psicoterápica corresponde a definir (ou a tentar definir) o que é e onde atua a psicoterapia. No segundo capítulo, confrontamo-nos com a análise fcnomenológica que Binswanger fez da palavra psicoterapia. Reencontraremos os princípios desta análise mais adiante (3.7.), procedendo primeiro ao exame de algumas definições propostas por diversos autores. Há, no entanto, autores que omitem definir o campo e a atuação do psicolerapeuta. Assim, por exemplo, ouve-se que "psicoterapia é tudo aquilo que um psicoterapeuta profissional faz" (em Strotzka, H.) (17), o que, obviamente, não corresponde a uma definição, mas a unia saída pela tangente diante de uma dificuldade que caberia enfrentar. Bem é verdade que nenhuma ciência começa por uma definição clara do seu campo ou do seu objeto, e que a elaboração teórica se processa ao longo de todo um percurso de pesquisa e de reflexão; não obstante, quando se trata de uma prática que envolve outrem, a exigência de pensar sobre esta atividade e as suas implicações se faz, por razões tanto éticas quanto científicas, particularmente premente. Wolberg (1967) (11) define psicoterapia como "o tratamento de problemas de natureza emocional mediante meios psi58
cológicos"; insiste em que, nela, "uma pessoa formada estabelece cieliberadamente uma relação profissional com o paciente", com os objetivos " 1 . " de eliminar, modificar ou retardar os sintomas existentes, 2." de influenciar modos perturbados de comportamento e 3." de promover um crescimento e uma evolução positiva da personalidade". Percebemos que o autor, embora psiquiatra, se situa numa linha mais psicológica do que médica: não há, em sua definição, referência à noção de doença; o psicoterapeuta não é um médico, mas "'uma pessoa formada" (ou "treinada") e os objetivos aludem, além da eliminação de sintomas, às noções de comportamento e de personalidade, como noções e objelívos claramente não médicos. Em relação a estes três objetivos, o autor distingue, de fato, em seguida, entre três tipos de psicoterapia: aqueles que visam influenciar os sintomas, o comportamento ou as atitudes, e a personalidade profunda. Porém, o portador dos "problemas de natureza emocional" estranhamente está ausente, mas reaparece depois sob a forma do "paciente" com o qual se institui uma "relação profissional"... Com a omissão ou até eliminação da pessoa afetada de "problemas emocionais", cabe indagar, no entanto, se não se elimina também o aspecto da subjetividade, do "sujeito" que carrega estes problemas, com a sua conseguinte transformação em "paciente", isto é, em alguém que, ivamente, se submete ao tratamento. . . Voltaremos mais adiante a estas implicações. Por enquanto, citamos uma segunda definição de psicoterapia, desta vez de Meltzoff & Kornreich (1970) (18). Segundo eles, psicoterapia consiste "na
aplicação informada e planejada de técnicas que são derivadas de princípios psicoiógicos estabelecidos". Estas técnicas seriam aplicadas "por pessoas que, pela formação e experiência, se qualificaram para isto". Como objetivo da psicolerapia, os autores estipulam: "apoiar os indivíduos para modificar aquelas características pessoais, como sentimentos, valores, atitudes e modos de comportamento, que O terapeuta avalia como desajuste". Aqui também, os autores se situam, de maneira resoluta, numa linha psicológica e, mais precisamente, compor-lamentai. Não é questão da pessoa, nem dos seus desejos, nem da sua motivação para modificar-se: os objetivos a atingir serão fixados pelo terapeuta, que determinará o que deve ser considerado como "desajustamento" ou "desadaptação". A atitude normativa c direliva deste terapeuta se destaca, pois, com nitidez. Mencionamos uma terceira definição, bem diferente das anteriores. Strotzka (1978) (17) expressa-se assim: "Psicoterapia é um processo interacional consciente c planejado que visa influenciar, mediante meios psicológicos verbais e averbais, distúrbios de comportamento e estados patológicos que são consensualmente considerados como necessitando de um tratamento". O autor insiste em que este consenso deverá ocorrer "se possível entre paciente, terapeuta e grupo de referência"; como meta, estipula que o processo se direciona "para um objetivo definido e elaborado, se possível, em comum (minimização dos sintomas e/ou mudança estrutural da personalidade)". Finalmente, estes objetivos seriam alcançados graças a "técnicas ensináveis e
baseadas numa teoria do comportamento normal e patológico", sendo que se precisa uma "ligação emocional sólida" para a consecução destas metas. A orientação que se reflete nesta complexa definição é psicológica e médica. E nofadamente a ideia de doença que, se não aparece explicitamente no texto, predomina nas expressões empregadas: "estados patológicos" (ou "mórbidos"), "teoria do comportamento normal e patológico". De fato, o autor defende a preservação da noção de doença, em oposição a noções psicológicas, como desajustamento, para não correr o risco de "recair num estádio pré-cicntífíco da psiquiatria". A posição médica e a insistência sobre as virtudes do "discurso médico" caracterizam, pois, esta definição, mesmo se elas se coadunam com uma perspectiva social apreciável, se pensarmos na noção de consenso entre terapeuta, paciente e o grupo de referencia, como a família ou a comunidade. As três definições analisadas nos parecem reflelir três orientações teóricas e clínicas bem diferentes; poderíamos citar outras, mas elas sempre vão corresponder, de perto ou de longe, a uma destas três linhas de atuação psicoterápica, seguindo quer uma psicologia de vaga inspiração psicanalítica, quer uma psicologia comportamcntal ou uma abordagem medico-psiquiátrica. Diante da multiplicidade dos aspectos enfocados nestas definições, percebe-se mais uma vez a complexidade do fenómeno psicoterapia, a influência das atitudes e opções pessoais dos seus autores (que podemos chamar de ordem ideológica: não há definição neutra.. .), bem como a necessidade de chegar-se a uma visão 59
mais integrada da aluação psicoterápica — no interesse daqueles que a procuram e no interesse, novamente, da sua cientificidade e ética. Em nosso entender, pois a psicolerapia consiste numa ativiáade clínica, que se desenvolve no campo clínico e traía de problemas clínicos. Isto já decorre da palavra terapia, considerada tradicionalmente como aquela parle da medicina que "estuda c aplica os meios adequados para aliviar ou curar os doentes". No enlanlo, pela evolução das disciplinas psicológicas e sociais, bem como pela dificuldade da psiquiatria cUíssica em definir positivamente etiologia, patogênese e nosologia das "entidades mórbidas", é óbvio, hoje em dia, que não se pode restringir o campo psicoterápico à aplicação médica. A esse respeito, já vimos acima que os três modelos teóricos predominantes na psic o terapia moderna foram elaborados fora do âmbito psiquiátrico, se não em oposição a ele. Os seus integrantes, na verdade, mais se interessaram em erigir sistemas e classificações nosológicas correspondendo ao enfoque orgânico e "científico" da "doença mental" c em defender a hegemonia sobre a área, do que em preocupar-se com a investigação da dimensão psíquica do ser humano. Esta foi e continua sendo o apanágio das ciências do homem. È a partir destas que foram desenvolvidos instrumentos de intervenção e de tratamento psicológico. Porém, se destarte elas se afastaram e se diferenciaram cada vez mais do campo médico, quer isto dizer que as suas aplicações se tornaram necessariamente "não-clínicas". . . ? A resposta a esta quentão dependerá de como nós definimos "clínico". Durante
séculos, clínico (significando, etimologicamente, leito, ao leito, acamado) foi considerado como sinónimo de atuação médica, um pouco como — não podemos resistir à tentação de fazer o cotejo — a psique foi considerada sinónimo de consciência e de racionalidade. A partir da psicanálise, no entanto, a noção de psique foi ampliada, incluindo a dimensão do inconsciente, para grande escândalo dos filósofos e outros profissionais do pensamento cartesiano; pela psicanálise c pelas teorias de aprendizagem e de comunicação, foi ampliada a noção de clínico, acrescentando às "doenças mentais" os conflitos, desajustes, transtornos de personalidade, desadaptações e outras dificuldades de ordem psíquica ou social. Mas nem por serem não-médicas, estas dificuldades deixam de ser "clínicas", no sentido de — mesmo sem referência a uma doença ou a um quadro mórbido orgânico —• implicar um sofrimento que, quando suscita um desejo de mudança e um pedido de ajuda, contém uma necessidade de tratamento. Definir assim o clínico como uma dimensão humana que ultraa a medicina, englobando o pathos, a interação "pática" entre psiquismo, organismo e ambiente, como sendo aquilo que determina antropologícamente a existência do homem, não quer dizer, em absoluto, que se deva abrir mão de critérios rigorosos para definir esta dimensão. £ noladamente o estudo da psicopatologia que se torna imprescindível para quem quer, futuramente, aluar neste campo clínico humano. Contudo, a psicopatologia não se refere apenas à nosografia psiquiátrica, mas é essencialmente uma disciplina psicológica, que estuda e classifica as ííís-
junções psíquicas, do mesmo modo que a psicologia geral estuda as suas funções. O campo clínico no qual atua o psícoterapeuta se define, pois, pelos problemas psicopatológicos que nele se encontram. Esles problemas podem ser entendidos e classificados segundo os critérios mais diversos, inclusive não-científicos. Mas nisto, um clemenlo-chave não pode faltar: que eles sejam abordados como problemáticas humanas, necessitando portanto de uma compreensão antropológica, no sentido mais amplo do termo, e de uma referência à imagem do homem (bem como à eosmovisão) que inevitavelmente implicam. Cabe pergunfar-se se a psicopatologia, entendida destarte como uma disciplina básica para a psicoterapía, pode dispensar a noção de "doença", e em particular aquela de "doença mental", sem que se caia num empirismo claudicante ou até pragmático, mas sem princípios. Esíe perigo, ao nosso ver, realmente existe, mas acreditamos que ele possa ser contornado por uma reflexão rigorosa (v. 3.5). Ademais, o perigo contrário parece-nos pesar ainda mais sobre a prática psicoterápica, a baber, aquele de "coisificar" a pessoa doente em favor da sua suposta doença (mental) e de levar assim a uma rotulação do paciente, com toda aquela esligmatização social bem conhecida (labeling ejject). Devemos e podemos, portanto, abrir mão, em psicopalologia e psicoterapia, da noção médica cie doença e de doente, em benefício desta pessoa que luta com dificuldades de ordem psíquica, e sem que isto implique perder rigor e eficácia no seu atendimento. Por conseguinte, não falaremos mais, daqui por diante, de "doentes". Mas co-
mo designar então a pessoa que, no campo clínico acima definido, está à procura de uma psicoterapia? A palavra ' cliente" é muito comum, hoje em dia, sob a influência da psicologia americana. Ela tem, sem dúvida, uma conotação de consumo ou de marketlng, aproximando-se de "freguês", devido à ênfase implícita ao intercâmbio comercial, obedecendo às leis da demanda e da oferta; no entanto, implica também uma opção, uma ação consciente de busca de alguma mudança: se chega a consultar e depois a entrar numa relação psicoterápica qualquer, 6 que o cliente o quer pessoalmente, uma vez que poderia dizer "não" a este seu engajamento. O voluntariado deste engajamento, pois — ou ainda, o seu aspecto "liberal" — se destaca bem pelo termo "cliente". Mas vejamos nele mais dois inconvenientes. Em primeiro lugar, a referência a uma certa ividade. Apesar da procura deliberada, incluindo uma ação, é o "cliente" que "recebe" algo, em maior ou menor grau de dependência e ividade, do "outro" que "está dando". Implica portanto uma prestação de serviço que o cliente "compra" do terapeuta, submetendo-se ao saber e às técnicas deste. . .(19). Em segundo lugar, o recurso a esse termo deve ser considerado, pelo menos implicitamente, como uma tentativa de contornar os problemas da patologia psíquica e os tabus a esta associados. Falando-se de cliente, os seus problemas psicopatológicos são negados ou, ao menos, minimizados. De fato, não há dúvida de que, até hoje, o patológico assusta e discrimina, tanto mais quanto se trata de "problemas mentais". Sofrer de tais proble61
mas é extremamente mal visto, em nossa sociedade, seja tão-som ente sob forma de um "desajuste" ou de uma "desadaptação"; falar de "cliente", então, ao invés de "paciente", equivale a contornar este tabu — mas instaura e reafirma, pelo mesmo fato, a bem conhecida segregação entre normal e patológico. Como se o patológico não fizesse parte da existência humana, como se ele pudesse ser evitado, e como se a pessoa que sofre de dificuldades de ordem psicopatológica, fosse um "menos", um marginal, um excluído da sociedade... Diante deste exorcismo, reafirmamos pois o valor plenamente humano do patológico, conforme o "princípio de cristal" acima mencionado, e não tememos a palavra "paciente". Conotações de ividade marcam, aliás, tanto o termo "paciente" quanto o termo "cliente". Com ambos os apelidos, a ação, o agir terapêutico é relegado às mãos do outro, do terapeuta, investido, destarte, de um grande poder e de uma grande responsabilidade. No extremo, isto pode significar que o paciente ou cliente se desresponsabiliza da sua problemática e da conduta terapêutica a adotar, e se remete inteiramente ao poder terapêutico (ou mágico. . .) do "agente". Deste, ele "recebe" ou "sofre" a intervenção, destinada a pôr fim ou a aliviar os seus achaques, sem que tenha que assumir ou, no mínimo, participar no trabalho terapêutico. Faz falta portanto um vocábulo mais ativo, como nós o temos cm psicanálise. O parceiro do psicanalista deveras não é o psicanalisado, mas o "analisante", uma vez que ninguém é analisado pelo analis62
ta (imagem errónea muito difundida!), mas se analisa, na transferência com e perante este parceiro singular, "diretor" do processo analítico, mas não o seu agente. No que tange ao parceiro do psicoterapeuta, o mais correto então seria falar em "terapeutizante", neologismo, é preciso convir, que não faz sentido. Na falta de um termo mais adequado que traduza a atividade e a responsabilidade que, em nosso entender, deve fazer parte do processo psicolerápico, damos preferência à palavra "sujeito", que ao menos implica uma participação subjetiva daquele que se "submete" ao tratamento. Quanto a cliente ou paciente, preferimos ainda esla última palavra, porque conota algum sofrimento e se refere mais diretamenle ao campo clínico que tentamos aqui cercear como sendo o campo da atuação psicoterápica. Não obstante a nossa recusa em reter as noções de doença e de doente para definir este campo, é certo que o sentimento de um mal-estar, psíquico ou físico, deve estar presente para que determinado sujeito se decida a consultar. Este sentimento pode ate referir-se a uma doença, pode incluir uma convicção de "estar doente" — no caso do paciente psicossomático, por exemplo. Mas cabe a nós, ao clínico, investigar se se trata de uma doença, isto é, de um achaque orgânico, ou se atrás deste sentimento de "estar doente" se situam problemas não orgânicos, isto é, problemas de ordem psíquica ou psicossocial. Ao proceder a esta investigação, poderá ser necessário recorrer a exames complementares, onde o trabalho em equipes interdisciplinares será evidenlemente de grande valia. Seja como for: sentir-se doente, sentir-se mal consigo mesmo ou no relacio-
namento com os outros, algum sofrimento humano deve estar presente (e deve estar percebido) para que o sujeito, reconhecendo-se "paciente" sofrendo de algum mal, se decida a recorrer a um trabalho psicoterápico. Desta forma, ele ingressará no campo clínico, situar-se-á nele como necessitando de uma ajuda ou de uma intervenção "clínica", isto é, psicoterápica — e, pelo fato mesmo, distinguil-Be-á de pessoas que estão à procura de uma ajuda ou intervenção psicológica não-clínica. Com efeito: a psicoterapia, enquanto terapia situada no campo clínico acima definido, dislingue-se da ampla gama de práticas psicológicas não-clínicas. Insistir sobre esta diferença não é desvalorizar ou criticar outras práticas psicológicas, mas simplesmente delinear a atuação das diversas práticas, uma vez que a confusão das atribuições, competências e objetivos sempre só faz prejudicar o desempenho sério e responsável do profissional. Portanto, há muitas práticas ou técnicas psicológicas que não são clínicas e que não fazem parte do campo psicoterápico. Pensamos nos grupos de sensibilização ou de encontro, na dinâmica de grupo, nas sessões espíritas, sugestivas ou hipnóticas, nas consultas a cartomantes ou clarividentes, na orientação espiritual, pastoral ou moral, nos objetivos de treinamento, de aprendizagem, de crescimento pessoal, de iniciação religiosa, esotérica ou mística — todas ações psicológicas interpessoais, onde um agente quer transmitir algo que influencie e modifique o outro. Este, à procura de mudança, submete-se aos procedimentos encenados pelo agente e aceita, pelo menos implicitamente, as premissas de sua atuação, bem
como os objetivos almejados ou prometidos. Pode até acontecer que estas premissas sejam fundamentadas mais ou menos sistematicamente — mas isto não quer dizer que elas sejam, por isso, psicoterápicas, ou se disponham para uma atuação no campo clínico. Assim sendo, a ação psicológica do pedagogo, a ação psicológica do assistente social, do conselheiro conjugal ou do sacerdote, pode basear-se em todo um programa de formação e cm amplos conhecimentos científicos ou pré-científicos, mas nem por isso corresponderá a uma ação psicoterápica. Para esla, a referência psicopatológica será decisiva. Com isto, não queremos dizer que um efeito psicoterápico não possa advir por métodos e intervenções que não sejam psicoterápicos, no sentido próprio da palavra. Uma dinâmica de grupo, um grupo de encontro ou uma sessão espirita podem perfeitamente alcançar uma mudança comparável a um efeito psicoterápico, mas este efeito será por assim dizer acidental, pois não decorre de uma ação executada ad hoc e nem sempre foi procurado propositadamente. Este propósito nos parece essencial para definir uma atuação psicolerápica: se a psicoterapia pretende ser reconhecida como disciplina científica, ela tem que esforçar-se em elaborar uma base teórica, a partir da qual possa justificar os seus conceitos, os seus métodos, objetivos, propósitos e intervenções. Portanto, como já frisamos acima, ela tem que saber o que está fazendo, como e por que o está fazendo. A seriedade científica, a transmissibilidade e a responsabilidade ética dependerão destes critérios, sem os quais corre-se o perigo de deslizar para o im63
proviso ou o eclctismo, senão a charlatanice. Voltaremos abaixo às diversas relações psicológicas e às suas diferenças, distâncias ou proximidades para com a relação psicoterápica. Esta, repetimos, merece ser considerada num sentido próprio c estrito, aquele de intervenção planejada e teoricamente fundamentada no campo humano das difieuldades psicopatológicas (a serem definidas no próximo capítulo). Neste sentido próprio, pois, pode-se dizer que a psicolerapia, como disciplina científica, corresponde a uma tentativa de compreender, sistematizar e articular as práticas psicológicas ou psicoterápicas pré-científieas: práticas xamanísticas, espiritistas, intuitivas, mágicas c outras, com o intento de elaborar teorias e técnicas metodologicamente verificáveis, permitindo uma avaliação criteriosa a partir de práticas milenares. Nesta perspectiva, não se trata de cortar os vínculos com as práticas antigas, em favor, por exemplo, de resultados experimentais obtidos em laboratórios; aquelas são reconsideradas à luz de novos conceitos e metodologias, com vistas ao seu aprimoramento e a sua operacíonalização refletida. Ocorre, no entanto, que a distinção entre psicoterapia e outras intervenções psicológicas encontra dificuldades, não somente por causa de efeitos terapêuticos ocasionais, mas em função de definições e delineamentos insuficientes. Isto vaie em particular para o "aconselhamento", definido em geral de maneira bastante nebulosa. Cabe perguntar-se até que ponto esta disciplina não foi introduzida no Brasil (por importação do counseling americano) precisamente para contornar as implicações clínicas da 64
prática psicoterápica e para evitar, deste modo, o confronto com o corpo medico — confronto que não deve ser evitado ou contornado artificialmente, mas enfrentado a partir de um embasamento teórico sólido e de uma reflexão rigorosa sobre a prática clínica humana. Neste esforço reflexivo, vale lembrar, será de suma importância lançar mão das diversas contribuições das ciências do homem, referências indispensáveis para chegar-se a uma compreensão aprofundada do homem "pálico" que todos somos, travando luta sem trégua com dificuldades físicas e psíquicas de todas as espécies, bem como para superar os relentos de segregação entre normal e patológico, sempre prestes a levantar a cabeça e a infiltrar-se ideologicamente em nossos afos e debates. Neste sentido, a introdução do "aconselhamento", a cavaío sobre a psicoterapia e a orientação psicológica(20), corresponde mais a uma resposta ideológica do que científica, equivalendo ainda, quem sabe, a uma tentativa de apropriar-se (pscudocícntificameiite) de uma determinada fatia do mercado " p s i " . . . Da definição do campo psícoterápieo como acima esboçada, decorre uma última consequência: a prática psicoterápica corresponde a uma pratica profissional especializada. Esta será exercida a um nível não somente técnico, assistencial, educacional ou de treinamento, mas clínico, lendo para isso que assumir a contradições do ser humano e as repercussões psicopaíológicas que estas provocam. Necessariamente, uma tal prática exige uma formação profissional aprofundada e contínua, ultraando de longe a deficiente formação académica de graduação que oferecem as nossas faculdades de psi-
cologia. Neste sentido, implica uma for mação de pós-graduação, no sentido amplo; o candidato a psicoterapeuta a realizará segundo a opção teórica ou a linha que lhe convém, mas que deveria sempre abarcar toda a gama das ciências do homem, em particular das ciências humanas clínicas.
3.5. A definição do material psícoterápieo Depois de ter definido o campo de atuação do psicoterapeuta como sendo o campo clínico, cabe agora perguntar-se qual o material com que se trabalha neste campo. Como já frisamos acima, não pode aí tratar-se de "doenças", uma vez que o campo clínico, em nosso entender, não se confunde com o campo médico; o maferial, portanto, tem que ser outro — embora é claro que se possa questionar a própria noção de "material", uma vez que em psieoterapia, o ser humano conta como unidade integrada, e não como um "material" qualquer. Vimos no capítulo 2 que Binswanger, criticando a própria palavra psieoterapia, rejeita a ideia de uma "psique" que seria consertada mecanicamente, como por um ato de cirurgião: a psieoterapia não se aplica a uma "máquina", mas envolve duas pessoas numa interação muito especifica. Nesta interação, a pessoa do "paciente" está presente em sua totalidade, como um corpo animado, como uma alma encarnada, a serem "tratados" em conjunto, em suas repercussões "psicossomáticas" recíprocas. . . Não obstante, parece-nos pertinente falar, especificamente, de um material que é trabalhado, o que, devidamente defi-
nido, não implica prejuízo para o sujeito que se engaja na relação psicoterápica. Este material nos é apresentado pelos conflitos que o ser humano vive, inevitavelmente, e que, em certas condições, adolam uma dimensão patológica, a saber, quando não chegam a uma resolução "fisiológica". A ideia de conflito merece alguns comentários. A "Psicologia do Conflito"{2!) corresponde a uma visão do psiquismo humano como essencialmente conflituoso, islo é, dividido. Segundo esta visão, o ser humano não dispõe de uma totalidade harmoniosa: dividido, ele c não-idêntico a si mesmo, mas se desenvolve através de oposições dialéticas. De fato, a noção de conflito implica um antagonismo entre duas ou mais instâncias ou partes, opondo-se em função de interesses divergentes. Ora, falando-se de "interesses", torna-se óbvio que nós nos situamos num campo humano que ultraa o aspecto meramente somático ou orgânico, fazendo intervir os seus componentes psíquicos ou psicossociais. De fato, à luz de dados antropológicos universais, a evolução humana caracteriza-se por crises e por conflitos não somente inevitáveis, mas ainda necessários e estruturanles para o homem. Estas crises c conflitos não representam cm si nada de patológico — pelo contrário, assinalam as etapas de sua maturação e as diferenças que marcam o seu desenvolvimento singular, tanto quanto a convivência humana. Exemplificaremos brevemente a que diferenças e conflitos psíquicos ou psicossociais — em suma, antropológicos —, estamos nos referindo. Universalmente, os homens têm de se confrontar, em sua
vida, com duas diferenças fundamentais, boça c se cristaliza: a "resolução do independentes de qualquer cultura ou Édipo" dependerá da maneira pela qual época — confronto, aliás, cujas vicissi- a criança consegue situar-se em sua linha tudes transformam esta vida num per- genealógica, explicar-se com os seus pais, curso histórico, vivido e experimentado assumir a sua posição de filho ou de subjetivamente. Trata-se das duas dife- filha, identificar-se com seu corpo sexuado e integrar-se em seu papel serenças de geração e de sexo. xual(22). Com efeito, não há como não encontrar estas duas diferenças, naturais e Neste sentido, pois, ninguém nasce coinevitáveis não somente no homem, mas mo homem ou como mulher, mas tem em todo ser vivo: nós todos descende- que tornar-se homem ou mulher, atramos de genitores que existiam antes de vés de todo um processo de identificanós, inserindo-nos num dos dois grupos ção consigo mesmo e com o outro, pelo sexuais que diferenciara os seres vivos. qual a bissexualidade inata chega pauAo dizer, no entanto, que se trata aí latinamente a definir o seu rumo, a criande duas diferenças "naturais" não abar- ça a definir sua identidade. camos a totalidade, nem o essencial daNesta complexa evolução, múltiplos quilo que diferencia os seres humanos. deslizes podem ocorrer, deslizes que forSe estas diferenças se limitassem aos as- marão as diversas manifestações psicopectos biológicos da descendência de de- patológicas. A grosso modo, é possível terminados reprodutores e da matrícula considerar as desordens psicóticas cosexual anatómica, elas não suscitariam mo decorrentes de conflitos de geração aqueles conflitos que, psicológica e cul- (problemas ligados à identidade e á filiaturalmente, deixam marcas "páticas" no ção), atribuindo-as (não exclusiva mas ser humano. Mas eis a incidência cultu- preferencialmente) ao eixo das diferenral no desenvolvimento psicossocial do ças entre gerações; por outro lado, as homem: pela interdição do incesto, prin- desordens neuróticas vinculam-se nitidacípio organizador fundamental da socie- mente a conflitos da áTea sexua! (ou aindade humana, as diferenças de geração da, do Édipo propriamente dito), dizene de sexo se transformam em problemá- do respeito à aceitação da diferença de ticas psicológicas, em encruzilhadas con- sexo. Parece-nos que esta distinção, aqui flitantes que temos que atravessar e re- tão-somente mencionada, tem um valor solver. tanto didático quanto clínico. Esta travessia, pode-se dizer, representa o processo de humanização da criança, tarefa complicada cuja resolução compete a cada um de nós — resolução, no entanto, que está longe de se ar tranquilamente e sem conflitos, e que sempre deixa traços na personalidade que aos poucos se forma. Percebe-se que é o próprio "Complexo de Édipo" que nesta encruzilhada se es-
66
Segundo estas considerações, pois, a estrutura fundamental do psiquismo humano é conflituosa, sendo tais conflitos responsáveis, quando não ou insuficientemente resolvidos, por perturbações psieopatológicas e pela formação de sintomas. Se é com estas perturbações que lida o psicoterapeuta em sua prática (e se é por causa deias que o paciente o procura), elas, não obstante, não são o
material sobre o qual se trabalha, uma vez que somente representam a manifestação externa e não as "causas" das dificuldades deste ou daquele paciente. As "causas", nós as vemos precisamente nos conflitos (não resolvidos) que, embora não-patológicos em si, referem-se às articulações da estruturação humana onde, em conseqiiência de particular vulnerabilidade, processos patológicos podem iniciar-se. Os conflitos que aí temos em mente são, portanto, conflitos interiorizados, dispondo de um alto potencial patogênico e podendo produzir tanto micro quanto macropsicopatologias: micro no sentido de "psicopaíologias da vida cotidiana" (para falar com Freud), macro no sentido de disfunções e desordens afetivas que afetam o sujeito de modo global ou parcial, provocando sintomas, transtornos de personalidade ou desvios de caráter — enfim, que o fazem sofrer em uma área qualquer (ou em todas) da sua vida pessoal. Contudo, este sofrimento, para nós, não se constitui em "doença". Discordamos, portanto, de Schneider (op. cit.) (15), quando formula que os conflitos interiorizados "se desenrolam no interior mesmo do psiquismo do sujeito doente": dificuldades de ordem psicológica, sejam elas "macropatoiógicas" no sentido de produzir sintomas neuróticos ou psicóticos, não são "doenças". Uma perspectiva mais ampla, mais antropológica do que medica, será aqui de rigor. A insistência sobre a qualidade interna destes conflitos não é supérflua. Com efeito, 6 condição sine qua non para a possibilidade de um trabalho psicoterápico que o paciente reconheça que o seu sofrimento pessoal seja condicionado por
uma problemática que se situa nele, e não fora dele. Neste último caso, aliás, de achar que se sofre em função de causas ou razões externas, a pessoa raramente se constitui "paciente" disposto a consultar, mas tenta atuar sobre estes problemas externos, ou, ainda, apresenta-se como vítima destes, proclamando-se atingida, por exemplo, pela injustiça social. É indispensável, pois, que o sujeito tenha aíguma consciência da origem das suas dificuldades e não tente impufá-las a situações externas, a serem invocadas como bodes expiatórios; somente reconhecendo que há algo de errado nele, é que o sujeito se sentirá motivado a iniciar uma psicoterapia ou a procurar uma ajuda psicológica qualquer. Sem esta motivação, não terá a paciência de ser "paciente" e de submeíer-se a um trabalho de psicoterapia, na maioria das vezes bastante longo, sofrido e oneroso. Em determinadas pessoas e em determinadas categorias de dificuldades psieopatológicas, esta consciência faz falta, ao ponto de nem existir, às vezes, sensibilidade para a dimensão psíquica interna. De fato, há muitas pessoas que negam a importância da vida interna (ou negam mesmo a sua existência) •— o que não significa que não possam sofrer de conflitos psíquicos. Mas negando a sua possível origem interna, estarão sem motivação para uma abordagem psicológica ou psícoterápica, podendo até defender-se virulentamente contra uma ta! insinuação. E o caso notadamente dos chamados "pacientes psicossomáticos", em que pese sua obstinação em se declarar "doente orgânico", sem levar em consideração e sem dar espaço à dimensão psíquica dos 67
seus achaques (se não da existência como um todo). Este aspecto, capital para a questão da indicação terapêutica, será tratado mais adiante, num capítulo específico. Da mesma forma, será difícil ou mesmo impossível trabalhar em psicoterapia com pessoas que percebem a existência de conflitos, mas os situam jora de si; ao invés de intrapessoais, elas os vêem como interpessoais, atribuindo as causas das próprias dificuldades (ou a culpa por estas) "aos outros". Psicopatas ou paranóicos, como costumamos rotulá-los, não terão nenhum motivo para questionar-se a si mesmos — no que consiste precisamente grande parte do trabalho psicoterápico — e não sentirão a necessidade de elaborar os seus conflitos internos: em sua perspectiva, cabe "aos outros" resolver as dificuldades, uma vez que estes é que as criaram. Um caso particular representam aqui os adolescentes e as crianças. Neles, a consciência de um conflito intrapsíquico raramente está presente — pelo contrário, na maioria das vezes ele é negado, de tal forma que o jovem c levado à consulta pela família. Esta questão também será tratada mais adiante; limitamo-nos aqui a frisar que as numerosas pessoas que negam ou ignoram a dimensão psíquica interna e os seus possíveis conflitos não são íveis de uma abordagem psicoterápiea no sentido estrito da palavra. Elas poderão ser atendidas mediante outras formas de tratamento psicológico ou sócio-terapéutico, como terapias de apoio, de relaxamento, técnicas comportamentais, ocupaeionais ou de reabilitação, entre outras, mas não conseguirão tirar proveito de um processo 68
psicofenípico, pela dificuldade intrínseca (pelo menos inicialmente) de aceitá-lo. Cabe ao psicoterapeuta discernir os possíveis conflitos presentes no paciente que o consulta. Eis a tarefa das entrevistas iniciais: discernir, detectar estes conflitos e avaliar a capacidade (e a motivação) do sujeito de elaborá-los num trabalho psicoterápico(23). Nesta tarefa c!c discernimento, a experiência clínica e a formação pessoal serão de grande valia; de fato, o psicoterapeuta deve saber (e deve experimentá-lo) que, como ser humano, é o palco de conflitos semelhantes àqueles dos seus pacientes — com a diferença, obviamente, que os seus próprios conflitos já devam ter sido resolvidos. Se isto nunca oeorre totalmente, ao menos deveriam eles ter sido trabalhados (ou "analisados") o suficiente, para que tenha consciência e controle sobre eles, para que não interfiram em sua atuação clínica. Os conflitos dos quais falamos podem ser das mais diversas espécies. Eles com cerleza não se limitam àqueles decorrentes dos dois eixos diferenciais dos quais falamos acima, mesmo se estes representam a matriz da estruturação psíquica conflituosa do homem. As configurações históricas específicas de cada sujeito serão decisivas para a forma e o tipo do conflito que chega a vivenciar. Estes podem tocar a valores humanos ou transcendentais, a representações conflitantes sobre sexualidade, relacionamento, agressividade e competição, a percepções interiorizadas ou a símbolos, à busca de sentidos existenciais, a contradições oriundas de ambivalências profundas, a imagens parentais, a necessidades compulsivas de repetir condutas alheias. . . Mas sempre serão con-
flitos internos que causam um mal-eslar ou um sofrimento do qual o próprio sujeito não consegue libertar-se. lmpõe-se uma última especificação a respeito destes conflitos. Falamos acima da necessidade do sujeito ter "alguma consciência da origem das suas dificuldades". Com isto não queremos postular que tenha que ter "plena consciência" dos seus conflitos; pelo contrário, temos que itir que estes são essencialmente inconscientes. Ademais, é por causa desta ancoragem no inconsciente que o potencial palogénico destes se torna tão temível. Não temos, pois, nem o nem apreensão direta da sua presença e atuação dinâmica; podemos tão-somente inferi-los, detectá-los, adivinhá-los — e trabalhar sobre eles, e é nisto que consiste precisamente o labor do processo psicoterápico. Subjacente a esta consideração, confrontamo-nos novamente com uma imagem antropológica: o ser humano não somente é conflituoso, mas ainda profundamente dividido em si mesmo, entre a sua consciência (o seu "Eu") e uma parte inconsciente que não domina, mas cjue o determina. Pelo menos é esta a concepção do ser humano que desenvolve a psicanálise. Não entramos em detalhes a este respeito. Basta mencionar que esta imagem do homem dividido, parte integrante e explícita da teoria psieanalítica, é tão antiga como a humanidade, e se encontra nas mais primitivas concepções do homem a respeito de si mesmo. Ela faz parte da filosofia ocidental, dos pre-socrátícos até os existencialistas, e determina a filosofia oriental — com matizes muito diferentes, é verdade.
É extremamente raro que uma corrente filosófica, antropológica ou psicológica conteste esta visão dualista; ela se deixa avaliar e interpretar diferentemente, segundo as premissas de cada eortente; pode ser negligenciada ou, ao contrário, valorizada e investigada; pode ser reconhecida implícita ou explicitamente, mas sempre aparecerá, seja tão-somente em forma de filigranas. Visões monolíticas, como aquela do behaviorismo estrito (Watson) e de outros sistemas, tributárias de um meeanicismo extremo, têm vida curta c são rapidamente substituídas por visões mais abrangentes, mais coadunáveis com a experiência humana em sua vertente subjetiva. Como é precisamente esta vertente subjetiva que nos interessa na clínica psicoterápiea, o dualismo entre consciente e inconsciente (que recobre, em parte, o dualismo entre o objetivo e o subjetivo), experimentado por nós Iodos (basta pensarmos nos sonhos) e teorizado pela psicanálise, ê de particular relevo para a compreensão do homem e dos seus conflitos. É a esta concepção, pois, a esta imagem antropológica que fazemos referência, como concepção apta a fundamentar uma abordagem psicológica e psicoterápiea do homem, que faça justiça tanto à sua complexidade quanto aos seus conflitos e sofrimentos internos. Resumindo, consideramos que são os diversos conflitos inconscientes, histórica, isto é, subjelivamente formados, que constituem o material com que se trabalha em psieoterapia, para que o sujeito chegue, graças a esta elaboração feita a dois, a uma libertação interna (v. 3.9.).
3.6. A definição das qualidades pessoais necessárias à psicoterapia
co", "o político" etc. •— com o qual será confrontado em seu trabalho futuro. Sem o interesse por estas dimensões, sem o esforço em penetrá-las pelo estudo contínuo, visando adquirir conhecimentos cada vez mais aprofundados das múltiplas facetas do humano e do seu funcionamento dinâmico e dialético, não se fará psicolerapia. Mas eis uma segunda condição: não basta ter estes interesses, mas ainda o candidato tem que ser (ou se tornar) capaz de lidar com este humano em suas manifestações especificamente psicopatológicas e conflitantes; tem, portanto, de ser capaz de aturar o confronto com esta dimensão humana, tem que ar o impacto que esta pode exercer sobre ele, tem que ter alicerces suficientes para não desestruturar-se neste seu exercício. ..
Para que a entrada em psicoterapia seja possível, a pessoa tem que dispor de algumas características particulares, bem gerais é verdade, mas não obstante imprescindíveis. Elas são condição stne qua non para qualquer psicoterapia que merece este nome. Falando de "pessoas" que necessitam dispor destas qualidades mínimas, pensamos tanto no paciente quanto no psicoterapeuta. De fato, esquece-se às vezes que ninguém nasce psicoterapeuta e que o exercício de sua profissão é condicionado por requisitos que nem sempre se deixam adquirir. Se a formação do psicoterapeuta é importante, a sua personalidade o é da mesma forma, e A aquisição de um autoconhecimenlo dela dependem os seus interesses, suas c de um autocontrole mediante uma psíaptidões e aliludes. coterapia pessoal, visando familiarizá-lo Enumeramos três condições indispen- com o próprio inconsciente, com os seus sáveis para que a opção pela "carreira" conflitos e com a sua própria "inquiede psicoterapeuta tenha sentido. Em pri- tante estranheza familiar", bem como a meiro lugar, o candidato a psicotera- resolução pelo menos aproximativa despeuta tem que interessar-se pelo ser hu- tes conflitos, represenfam aqui etapas mano. Isto pode parecer óbvio, mas é formativas das quais não se pode abrir preciso insistir sobre este aspecto, uma mão — senão, o risco de não aturar o vez que a sua profissão não se resume peso deste;> confrontos se tornará elevaa um exercício técnico; não é, pois, a do demais. parlir do fascínio pela técnica, tão preCabe acrescentar um terceiro elemendominanle hoje em dia, que se deixa to, dizendo respeito à formação profissioiniciar uma formação psicoterápica. nal propriamente dita. Visamos aqui o Desta forma, pode-se dizer que as aspecto técnico — necessário, mas insuciências do homem, a antropologia, a ficiente — de como lidar com este hupsicologia, a sociologia e a filosofia re- mano, presente na situação psicorerápipresentam as portas de entrada pelas ca. Como se trata de trabalhar com esta quais o futuro profissional poderá sensi- dimensão humana conflituosa, a técnica, bilizar-se com a dimensão humana (isto o "saber" adquirido sobre como aboré, simbólica e imaginária) da exisfência dá-la, elaborá-la e integrá-la, é de suma — com o "antropológico", "o psicológi- importância, mas pressupõe os dois ele70
mentos básicos citados. Além disso, a questão técnica dependerá intimamente da opção por uma ou outra orientação ou linha teórica, razão pela qual nos conlentarmos aqui em mencioná-la como terceira condição, necessitando, ela também, de reflexão e reciclagem permanentes. Postas estas três condições básicas, podemos enumerar uma série de qualidades psicológicas que o candidato a psicoterapeuta deve possuir. Assim, deve dispor de uma certa capacidade de intuição, apta a intuir os conflitos profundos do paciente que o procura; deve ser capaz de identificar-se com ele, colocar-se "na pele" dele para sentir e reconhecer as áreas e a intensidade do seu sofrimento, das suas angústias e dramas — sem, no entanto, deixar-se envolver pela problemática deste; deve ser capaz de mobilizar a colaboração do paciente, criando um clima de confiança e de serenidade que contraste com o seu mal-estar ou mesmo seu desespero e abra perspectivas novas, de esperança quanto a soluções possíveis; deve saber mobilizar-se pessoalmente, engajar-se no seu trabalho, ficando pacientemente na expectativa ou intervindo quando a situação o exige; deve ser capaz de se controlar e se reter, para não ceder à "demanda", aos pedidos do paciente, à procura de um alívio imediato, de uma solução mágica ou milagrosa, mas para visar à resolução dos seus conflitos, graças ao seu próprio esforço e trabalho; deve, portanto, ser capaz de devolver ao paciente o poder (mágico) e o saber (ilimitado) que este lhe atribui, para que os desenvolva nele mesmo, tomando consciência das suas próprias capacidades,
aumentando o autoconhecímento c a autoconfiança. Em suma, o psicolerapeuta tem que dispor de certas qualidades "em espelho", para poder servir de refletor ao seu paciente, no sentido não de apresentar-se a ele como um modelo a seguir ou a imitar (o que seria a íalta ética suprema), mas de lhe devolver, de lhe refletír as suas dificuldades e problemas para que seja ele, o próprio paciente, que chegue a solucioná-los. Podemos caracterizar esta atitude de espelho como sendo uma atitude "de abstinência", pela qual o psicoterapeuta abdica do seu poder de intervenção e de "modelagem" do paciente, aquele poder de "fazer a cabeça" do outro; ao invés, pois, de desapossá-lo das suas próprias forças e responsabilidades, estas lhe são remetidas, devolvendo-lhe constantemente a procura de soluções — bem em contraste, sem dúvida, com o seu sentimento de incapacidade, mas representando, por isso mesmo, uma prova de confiança e um incentivo para descobrir soluções, para se descobrir. Vê-se que estas qualidades psicológicas ultraam a "empatia" de uma atitude afetuosa, compreensiva e de calor humano. Elas implicam uma autodisciplina constante, a renúncia ao exercício de um poder que, muitas vezes, é oferecido ao terapeuta e que sempre representa uma tentação; porém, cabe a ele aprender a privar-se deste poder para, modestamente, devolvê-lo ao seu único depositário legítimo, o sujeito à procura de auxílio. Vejamos agora do lado do paciente, candidato à psicoterapia (a qualquer uma das suas formas), quais as características necessárias para que esta possa iní71
ciar-se c desenvolver-se. Em primeiro lu- O importante é que haja algum interesse gar — e novamente parece banal e óbvio para a abordagem psicológica das difiinsistir nisto — ele deve querê-lo, deve culdades humanas, para que nestas seinteressar-se pela abordagem psicológica jam reconhecidos (e devidamente ques(e não médica ou somática) dos seus pro- lionados) os conflitos intrapsíquicos. blemas c conflitos. Para que isio seja O primeiro o da procura por psipossível, de tem que, previamente, recocoterapia dependerá da presença desta nhecer que há problemas c conflitos de sensibilidade para a dimensão psicológiordem psicológica, que ele é o palco de ca; é esta que conferirá à motivação a altercações íntimas que escapam ao seu tratar-se um matiz especial, aquele da controle, ou mesmo ao seu conhecimenvontade de se questionar e de procurar to, e que, sub-reptíciamente, desaguam cm si as "causas", as "razões" das difiem dificuldades psíquicas e/ou somátículdades sofridas. Quando falamos de motivação, usamos Nestas consiste o sofrimento que o ura conceito oriundo da psicologia geral, motiva para consultar, para procurar um que mal se coaduna cora a ideia do inauxílio. Mas para que este auxílio seja consciente ou de conflitos inconscientes, buscado sob a sua forma especificamen- no sentido psicanalílico. Cabe, pois, sate psicológica, não basla ser motivado líenlar que, numa visão psicanalílica, sepelo sofrimento físico ou moral; algo rá mais pertinente falar em termos de mais tem que acrescer)tar-sc, a saber, desejo do que em motivação, sendo que aquela qualidade psicológica particular a noção de desejo, pelo vínculo direto que chamamos de introspecção, (Ein- que mantém com a teoria do inconsciensicht, insight), a aptidão de "intuir-se", te, implica a dimensão propriamente psíde "olhar para dentro" e de ver um sen- quica da existência humana. Portanto, o tido em fazer isto. A pessoa que nega desejo de se Iratar por meios psicológis possibilidade ou o interesse de uma cos deve estar presente na pessoa, batal atitude reflexiva e introspectiva, po- seado no reconhecimento do sofrimento derá ser muito motivada a desfazer-sc pessoal e na aceitação, pelo menos hipodos seus achaques, sejam esles somáticos tética, da sua possível origem em conou psíquicos, mas não terá capacidade flitos internos inconscíentcs(24). nem disposição para entrar num procesNeste sentido, percebe-se que este deso psicoterápico. sejo — que se trata de descobrir na No entanlo, esta capacidade não cor- pessoa e de avaliar — tem alguma vinresponde a um valor digiial absotuío culação cora a referida capacidade de in("tem ou não tem"), mas pode também trospecção (o que a motivação não tem desenvolver-se na pessoa, pode crescer necessariamente); não é abusivo, pois, quando presente de maneira pelo menos considerar a capacidade introspectiva, o rudimentar (quando a negação da dimen- interesse peta dimensão psíquica da vida são psíquica interna é categórica, será (e o desejo de se "curar") como requimais difícil. . .) c quando incentivado de sitos do lado do paciente, e abarcá-los maneira adequada, pelo próprio psicote- numa mesma linba do pensamento, aquetapeutfi ou por pessoas do seu ambiente. la que valoriza a abordagem psicolerápi-
ca enquanto trabalho sobre os conflitos inconscientes. Sem estender-nos mais sobre este assunto, cabe todavia mencionar que o desejo da pessoa, à procura de uma psicoterapia, não deve ser confundido com a sua "demanda" ou o seu "pedido"; este sempre será um pedido de cura (senão de amor) imediata e mágica, alravés ào qual é preciso detectar (e trabalhar) o desejo subjacente, ou seja, inconsciente. Este pode opor-se ao pedido formulado (e em geral o faz); pode resistir à entrada ou ao prosseguimento da psicolerapia; pode manifestar-sc sob formas de reliçôes, de atuações, de fugas —• mas sempre deverá ser avaliado c analisado para que o seu poder destrutivo não prevaleça sobre o seu potencial tcrapculicamente aproveitável, a saber, de desejar engajar-se na cura, estabelecendo uma relação psicoterápíca sólida o suficiente para poder contrabalançar as vicissitudes negativas deste mesmo desejo. Uma outra qualidade ainda deve caracterizar o candidato à psicoterapia: ele tem que testemunhar uma tolerância razoável aos sofrimentos que está enfrentando, uma vez que o processo psicolerápieo c relativamente demorado e não propicia alívio imediato da tensão, da angústia, da depressão e dos outros sintomas que motivaram a procura do auxílio terapêutico. Ligada a esta capacidade de "adiar" a resolução dos sintomas, fazendo dependê-la da solução dos conflitos intrapsíquicos, está uma outra e última qualidade, a saber, aquela de conseguir estabelecer relacionamentos humanos profundos e duradouros, no caso com a pessoa do psicoterapeuta, podendo servir de base e de ponte para a abordagem do material inconsciente confli-
tante. Somente quando uma tal relação se estabelece — precisamente a chamada "relação psicoterápica" — é que as múltiplas transações dialéticas do processo de uma psieoterapia podem desabrochar e desenvolver o seu potencial curativo. Como se vê, as qualidades necessárias ao paciente completam ou refletem aquelas necessárias ao psicoterapeuta: como em um espelho, simetricamente, ambos devem interessar-se pela dimensão psíquica do homem e devem ser capazes de desenvolverem e aprofundarem juntos a ação introspectiva do trabalho psicológico. Contudo, isto não quer dizer que este trabalho consista em debruçar-se reflexivamente sobre os seus próprios processos internos. Pelo contrário, uma vez que estes processos são antes de tudo inconscientes, um tal esforço reflexivo, baseado na "boa intenção" e no empenho voluntarista, mais pode atrapalhar do que favorecer a ação psicoterápica em profundeza. Não se trata, portanto, de "fazer introspecção", mas de se entregar aos próprios fluxos associativos e de aceitar o autoquestionamento — o que precisamente pressupõe o que denominamos, talvez impropriamente, capacidade introspectiva. Por outro lado, é claro que não há simetria em todos os aspectos da complexa interação paciente-terapeuta. Onde os papéis e tarefas são muito diferentes, uma simetria total até seria contraproducente, com vistas aos objetivos da terapia. É tão-somente a respeito das qualidades psíquicas necessárias ao desempenho psicoterápico que faz sentido falar de uma tal simetria; paciente e psicoterapeuta devem interessar-se, em co-
72 73
mum, pela abordagem psicológica, devem aturar esta abordagem e devem incentivar-se mutuamente em prosseguir nesti: empreendimento: o terapeuta incentivando o pacienle, pelo seu arsenal de intervenções, a proceder de maneira adequada aos seus questionamentos e investigações, mobilizando certos falores que dizem respeito ao seu desejo de sarar; o paciente incentivando o psicoterapeuta a interessar-se por esta investigação. Com efeito, não nos parece exagerado dizer que o psicolcrapeuta (como, aliás, o psicanalista), sendo sempre também pesquisador e investigador, tem que dispor de uma sã curiosidade cm trabalhar com o seu paciente, no sentido de um "desejo de saber" que o instiga e impele a perquirir e revelar, nesta pessoa que se confia a ele, as concatenações inconscientes e os segredos que detém. Obviameníe, a curiosidade assim estipulada nada tem a ver com bisbilhotice, mas deve fazer parte do interesse do terapeuta pela personalidade e pela história de vida do paciente; se este não consegue interessar o terapeuta, incentivando-o a pesquisarem juntos as origens dos seus conflitos, a interação psicoterápica tornar-se-á impraticável. Neste caso — que ocorre talvez com maior frequência do que se pensa —• o terapeuta tem que ter a honestidade pessoal de reconhecer isto, de itir que um determinado pacienle não consegue interessá-lo pela sua pessoa ou pela sua problemática, e encamínhá-lo a colegas que acha íveis, razoavelmente, de desenvolverem afinidades melhores. A qualidade de sinceridade consigo mesmo e de permanente autocrítica terá que ser, pois, mais uma das
características do psieoterapeuta, qualidade que não se pode esperar nem, menos ainda, cobrar do paciente de maneira simétrica. Desenvolveremos em seguida esta questão da assimetria na relação psicoterápica.
3.7. A definição da interação psicoterápica O que se a de fato no interior desta relação psicoterápica, tantas vezes já citada e, no entanto, permanecendo enigmática? Em que consiste a ação que aí se processa, se desenvolve, que supostamente induz a fatores de mudança e inclui um potencial curativo...? Em primeiro lugar — e isto vai nortear todo este capítulo — esta ação consiste numa interação, em algo que se a entre o psieoterapeuta e o seu paciente, Entre eles, de fato, estabelece-se uma "circulação" muito particular de determinados conteúdos a serem "trabalhados". Mas quais são estes conteúdos, intercambiados e que definem a especificidade deste trabalho a dois? Descrevendo estes conteúdos, conseguiremos partir para uma definição mais adequada da interação psicoterápica, capítulo deveras complexo e talvez o mais difícil deste esboço teórico geral. Sem dúvida, os conteúdos que circulam entre ambos os protagonistas têm algo a ver com o "material" psicoicrãpico, constituído, como vimos acima, pelos conflitos intrapsíquicos, notadamente inconscientes. Estes se expressam de alguma forma, emitem sinais ou signos endereçados ao interlocutor que, no caso, c supostamente preparado e disposto para
captar estas emissões com vistas ao objetivo do empreendimento psicoterápico. Ao falar de "emissões", temos pois que pensar, em primeiro lugar, nas verbalizaçÕes, nos conteúdos ditos pelo paciente; porem, aquelas não se limitam aos conteúdos verbalizados (embora se outorgue um certo privilégio a estes, como veremos abaixo), mas incluem todo um material não verbal, tais como a expressão corporal, gestos, mímicas, atos (falhos ou não), comportamentos, posturas, afetos e emoções, O intercâmbio que assim se desenrola implica comunicações, como em toda relação humana. Estas comunicações desenvolvem-se com mais ou menos objetividade, com mais ou menos distorções, equívocos, duplos sentidos c reticências, dependendo dos contextos e das finalidades que lhes são atribuídas. Em todas as comunicações, no entanto, intervêm os mesmos conteúdos ou elementos, como ingredientes básicos que mudam apenas quanto às proporções ou à composição, mas não quanto ao repertório à nossa disposição — que, simplesmente, é o repertório humano. Nele, reconhecemos pois, como elementos básicos (embora todos eles em si muito complexos), ideias, pensamentos, reflexões, entendimentos, percepções, imagens, recordações, lembranças, fantasias, sentimentos, sensações, afetos. . . Neste vasto leque das possibilidades humanas de intercambiar e comunicar-se com outrem, podemos operar um corte classificatório de muita relevância para o nosso quesito: estes elementos todos ou referem-se à realidade observável, ou referem-se à imaginação, ou ainda implicam uma mistura de ambas. Em outras palavras, são mais ou menos objetivos.
mais ou menos subjetivos, ligados mais ao mundo externo ou mais ao mundo interno de cada um —• distinção de suma importância quando pensarmos nos critérios da normalidade, por exemplo, ou no problema da objetividade, capital para a ciência e suas aplicações técnicas, mas menos importante ou, melhor, revestindo matizes bem diferentes em nosso âmbito clínico. Visto o objetivo da relação psicoterápica, quais são, portanto, os elementos que devem ser locados e colocados em movimento? Sem dúvida não são os elementos mais objetivos que aqui nos interessam; estes, como sublinha Schneidcr(!5), têm prioridade nos contatos cotidianos das pessoas entre si, "na rua", no emprego, nas comunicações pragmáticas a serviço de um desempenho operacional, seguro e eficiente. Nestas situações, afetos e sentimentos não são de grande valia; pelo contrário, podem atrapalhar, razão pela qual tenta-se eliminámos da circulação ou, se necessário, reprimi-los — como se lenta reprimir ao máximo os conflitos interpessoais, nos lugares de trabalho, por exemplo, uma vez que perturbam a funcionalidade dos sistemas aí implementados. )unto com os sentimentos e afetos, tenta-se eliminar tudo aquilo que é subjeiivo, para que não interfira nas tarefas (objetivas) a serem executadas — e há algo mais subjetivo, algo mais a esconder diante dos outros, mesmo os mais próximos, do que a fantasia? Esta, de fato, não deve participar, não deve penetrar em nossas relações repetitivas do dia-a-dia, para que não revelemos o nosso foro mais íntimo, para que não chaguem à tona aquelas zonas conflitantes
74 75
que tentamos esconder ou velar até de ge a relação, esta entrega poderia fazernós mesmos.. . -se sem reticências e resistências, sem Não é, portanto, apenas o mundo ob- triagens e ocultações; porém, sabemos jetívo das larefas profissionais, das rela- como c difícil e custosa esta entrega, ções funcionais, que nos impede de ma- não somente no início, mas ainda duranr.ifestar-nos com maior subjetividade: so- te, ou mesmo perto do final deste promos nós mesmos que temos interesse em cesso que se desenrola entre ambos. É proteger nossa vida psíquica íntima; não que não basta "querer" esta entrega, podemos permitir-nos extravasar livre- "querer fazer psicoterapia" para efetivamente tudo aquilo que reprovamos em mente ingressar nela e aproximar-se dos nós ou que sabemos reprovado pela so- conflitos mais inconscientes: abrir a nosciedade da qual participamos. sa subjetividade para outrem fere certos Vivemos, de fato, com uma necessi- interesses nossos, notadamente no que dade permanente de camuflar as nossas tange ao amor próprio de não revelar as intenções secretas, de escamotear os nos- nossas falhas e fraquezas, e acompanhasos impulsos, de velar as nossas veleida- -se de desconfiança c de impulsos autodes que poderiam contrariar os padrões máticos de autoproíeção, que nunca deestabelecidos. . . Atitudes que fazem par- saparecerão por completo. te dos automatismos adquiridos através Isto, contudo, não quer dizer que nesdos processos de socialização e que ado- ta relação não haja material subjetivo, tamos, pois, muitas vezes, sem nos dar- que não haja fantasias que sejam veimos conta. culadas: haverá nela muito mais mateEstes automatismos aumentam mais rial oriundo do íntimo, do imaginário da quando há aproximação de material con- pessoa, do que nas relações habituais flitivo, em particular de conflitos incons- que estabelecemos no decorrer da vida cientes: nós "entramos na defensiva", com os outros. Se ela não chega a ser sem saber "por quê", sentindo-nos amea- uma relação subjetiva integralmenlc aberçados por algo que escapa ao nosso con- ta, não quer dizer que não seja subjetiva trole, mas que sentimos "na pele". . . de todo. Trata-se aí de uma experiência muito No entanto, a relação psicoterápica comum, mas que se manifesta em parti- não é a única relação subjetiva que cocular na relação psicoterápica, em con- nhecemos na vida. Relações subjetivas, sequência do seu propósito explícito de relações de entrega recíproca existem, sem "mexer" com este maíerial inconsciente dúvida, em todas as situações onde a busc os seus conflitos, ca de objetivos funcionais não é prioriNeste sentido, podemos pois definir a tária, ou mesmo ausente. Na extensa esrelação psicoterápica como uma "relação fera do amor, da amizade e daquilo que interpessoal subjetívà" (Schneider) (15), Binswanger chamou de "comunicação na qual o paciente "se entrega" ao flu- existencial", as relações interpessoais são xo de sua fantasia, de seu imaginário, profundamente subjetivas, com um in"entregando" os produtos de sua imagi- tercâmbio permanente de materiais subnação ao terapeuta. Segundo o princípio jelivos, incluindo sentimentos, fantasias, de confiança c de "sinceridade" que re- afetos e todas aquelas emoções que pre76
cisamente fazem parle do amor (ou até o definem). Se estas relações desligam-se de objetividades, sendo marcadas por participações intensas de ambos os protagonistas, islo, todavia, não significa que os afetos nelas vividos sejam somente positivos; eles são antes de tudo intensos, mas podem oscilar entre o amor e o ódio, entre o desejo de se aproximar e de se juntar, até fusionai mente, e de se distanciar, de rejeitar o outro por completo. Sendo sempre marcadas pela paixão, nunca serão relações de indiferença, tampouco de interesses objetivos ou de finalidades explícitas: elas se bastam a si mesmas, por mais ionais que sejam. Estamos, porlanto, diante de âois tipos de relações humanas subjetivas, veicuiando ambas um amplo material subjetivo. Mas cm que se distingue então a relação de amor (ou de ódio), de amizade e de afeição desinteressada, da relação psicoterápica, se ambas visam a troca de conteúdos reservados, tocando ao âmago da subjetividade e das suas vivências mais íntimas? Veremos pois algumas diferenças, capitais para entender melhor o que se a na relação em paut:i — bem particular é verdade. Em primeiro lugar, deparamos com uma diferença importante no que tange ao objcíivo: se a relação de amor não tem um objetivo a ser alcançado, a não ser a felicidade e o prazer recíprocos, a psicoterapia se propõe um objetivo claramente definido, a saber, uma mudança (mais ou menos profunda, dependendo do caso e da linha terapêutica) na conduta e/ou estrutura do paciente disposto a submeter-se a ela.
Além disso, o próprio sentido da ação psieoterápica consiste neste encaminhamento para o objetivo determinado (pelo menos aproximadamente) no início da operação: alcançado o objetivo, termina o trabalho que se empreende a dois, cessa a relação, em princípio para sempre. Eis até um dos paradoxos da relação psicoterápica: ela se desenvolve com muitas dificuldades, devido às próprias dificuldades do paciente de relacionar-se e comunicar-se com outrem e que, de fato, o levaram a procurar um auxílio. Trabalhando estes empecilhos no interior da relação afetiva que se estabelece (através de muitos esbarros, de altos e baixos), elas começam a amenizar-se até (idealmente) a desaparecer — e é neste ponto, então, quando o paciente consegue comunicar-se bem (ou suficientemente melhor) com o psicoterapeuta, que a relação deve cessar, conforme o objetivo pautado no princípio. Com efeito, sendo a melhora da comunicação intersubjetiva o objetivo (ou melhor: um deles) que, simultaneamente, norteia o trabalho e o dificulta, uma vez que atacar o problema diretamente só faz aumentá-lo, não teria sentido proíongar a relação depois de tê-lo atingido; pelo contrário, persistir nesta relação porque propicia certas vantagens, um certo conforto ou determinadas satisfações afetivas, até poderia colocar em cheque o fortalecimento da modificação conseguida e que precisa ser comprovada in situ, isto é, na vida prática jora da terapia, sem as suas muletas c a sua proteção. Neste sentido, pois, o objetivo da psicoterapia não é apenas melhorar a comunicação intersubjetiva do paciente, mas, ainda, levá-lo a uma autonomia 77
maior, auxiliá-lo a emancipar-se das suas dependências afelivas, tanlo quanto a livrar-se dos seus sintomas. Para que consiga assim "andar com as próprias pernas", é necessário romper, num certo momento, o vínculo terapêutico (com preparação e eaufela, é claro, c não abruptamente) e devolver o paciente a si mesmo, à sua própria responsabilidade em assumir-se naquelas dimensões que lhe foram desabrolhadas pelo trabalho da psicoíerapia. Este rompimento, pois, faz parte da psicoterapia enquanto fase final, previsto desde o início e imprescindível, mesmo se é, frequentemente, dolorido e frustrante, não apenas para o paciente, mas também para o terapeuta- A ambos compele a tarefa de travar o "trabalho de luto", aceitando a perda daquele "outro" que duranle um frecho da vida o acompanhou, para assumir aos poucos a separação, superando as mágoas e aqueles sentimentos de abandono que mesmo na posição do terapeuta podem aflorar. Eis então uma das diferenças essenciais para com a relação de amor: ninguém se ama, ninguém se junfa com um determinado objetivo para depois se separar. Se um rompimento ocorrer, ele será acidental (e acidentes há muitos, convenhamos) e não essencial, como em psicoterapía. Esta, portanto, é limitada no tempo, por princípio e por definição, em função dos seus objetivos, seus sentidos e de toda a concepção que baliza o desenvolvimento do seu trabalho. A limitação temporal e operacional pode acarretar limitações temáticas, sobretudo no começo, no sentido do paciente não se sentir à vontade para "entregar" todo o seu material pessoal e sub78
jetivo. Porém, nem no amor isto é possível integralmente, e menos ainda no início de uma relação amorosa. Mas, em ambos os casos, é possível superar as relicências iniciais para aprofundar aos poucos a comunicação subjetiva; no caso da psieoterapia, dependerá da força dos motivos que trouxeram o paciente, se ele chega a reconciliar-se com os limites técnicos da terapia. Compreendendo-os e aceilando-os como sendo as condições sine qua non para este (rabalho, ele aos poucos ingressará mais nele, inluirá o seu funcionamento e se envolverá com os movimentos afetivos que configuram, ou melhor, que constituem esta relação. Identificando-se com 0 seu papel de paciente, ele entenderá paulatinamente que "paciente" não é sinónimo de ivo, e que a parte essencial do trabalho compete a ele mesmo; não há como esperar que "o outro" faça o trabalho ou ofereça alguma solução para os seus problemas. Aceitar o papel de paciente significa assim reconhecer os limites da terapia — em Iodos os sentidos da palavra — e submeter-se a ela, mesmo se implica frustrações, angústias e, no final, o rompimento da relação, no momento mesmo em que ela chegou à maturação. . . Identificar-se com este papel significa, ainda, itir que haja papéis diferentes nesta relação, que haja assimetria entre a posição (e as tarefas) do paciente e aquela do terapeuta. Temos aí uma segunda grande diferença qualitativa: na relação amorosa ou de amizade, não existe, não deveria existir uma assimetria de papéis, de direitos e deveres; se ela ocorrer, ela novamente será acidental (a não ser ao nível da estrita sexualidade biológica), mas não faz parte dos princípios
desta relação. Em psieoterapia, a assimetria, pelo contrário, participa como um elemento essencial do funcionamento da relação, conferindo-lhe a sua especificidade e o seu sentido. Sem assimetria, com efeito, não haverá relação psícoterápica. Poderá haver outros tipos de relação humana subjetiva, mas nelas não poderá desenvolver-se aquele trabalho que consideramos como necessário para que haja realmente psicoíerapia. Nas relações de amor, de amizade ou de "curtição espiritual", não há, de falo, nenhum traço de trabalho (nem, como vimos, de definição de objetivos): a "curtição" em conjunto, um com o ouIro, um perto do outro, se basta, numa comunhão auto-sufíeiente que, com frequência, exclui "os outros", exclui o mundo e todo aquele trabalho que ncsle c de rigor. Podemos dizer que, infelizmente, não há como mudar ou negar este fato: o trabalho faz parte do mundo e da vida; somos condenados a trabalhar (por isto, ele "é" de rigor e não "está" de rigor. . .), e se quisermos alcançar mudanças em nossa vida, temos que trabalhar, e arduamente, para aí chegar. .. Este trabalho impõe certas tarefas, impõe a divisão de tarefas, entre o paciente e o terapeuta. O paciente, uma vez que é ele que vem com um pedido de auxílio, situar-se-á sempre na posição de "paciente", enquanto o psicolcrapeuta ocupará sempre a posição que as regras do jogo lhe atribuem. Neste "jogo", a assimetria está marcada, desde o começo, pela posição de autoridade de que o terapeuta se reveste — mesmo se não a possui. Esta autoridade, de fato, lhe é dada, lhe é atribuída pelo paciente; este acredita nela, precisa acreditar nela pa-
ra ousar o primeiro o e tocar à porta do terapeuta. Mas — e eis uma diferença capital — cabe a este não acreditar nesta autoridade que lhe é atribuída, nem nos poderes que, magicamente, o paciente lhe outorga: trata-se de uma autoridade fictícia, imaginária, a cujo canlo de sereia não deve sucumbir se quiser realizar as suas tarefas. Vimos no primeiro capítulo as implicações mágicas e "primitivas" da relação terapêutica. Aqui, vemos agora a importância que estas têm no desenvolvimento desta relação, reparando como elas definem as posições de ambos os protagonistas. O psicoterapeuta não "é" uma autoridade, uma vez que não dispõe de meios especiais (e muito menos mágicos); ele, quando muito, "está" de autoridade, ocupa uma posição de autoridade relativa que lhe é conferida "de fora", pela sociedade que reconhece a sua profissão c o seu trabalho. Nesta posição, ele pode e, socialmente, até deve acreditar, mas tem que saber que ela é muito relativa; da outra autoridade, daquela que, "de denfro", os pacientes alribuem a ele, ele tem que desistir; argumentos de autoridade não têm valor quando se trata de descobrir as verdades secretas do sujeito, soterradas nos recônditos da sua alma de tal forma que nenhuma autoridade, a não ser ele mesmo, possa desvendá-las. Se é verdade que são os pacientes que o "fazem" psicoterapeuta, este somente o será se, com modéstia, declina da auréola que lhe é oferecida, para desincumbir-se das suas tarefas, auxiliando o primeiro a diminuir de mais em mais a assimetria entre eles. Esla não glorifica o psieoterapeuta — ela lhe é imposta tanto quanto ao paciente, mas cabe ao pri79
melro conduzir o processo de tal forma que, ao seu termo, este consiga recuperar a autoridade que investiu no outro, para aceder à sua aulonomia pessoal. Ao frisar acima que as limitações temporais possam dificultar a circulação do material subjetivo do paciente, não fizemos referência direta ao aspecto da assimetria e ila autoridade. Esta, quando fantasiada demais (da parte do paciente), ou quando real demais (da parte do terapeuta), poderá aumentar a dificuldade em "ar" o mais Hvremenle possível os coníeúdos psíquicos ao terapeuta, para que esle os devolva e para que se desenvolva assim um intercâmbio proveitoso.
fato, não faliam exemplos em que o paciente critica a distância, a frieza, o aparente desinteresse do psicoterapeuta, e que esta crítica camufle a sua incapacidade de aceitar as "regras do jogo", isto é, essencialmente, a sua assimetria, e de assumir (ativamente.. .) o papel de paciente, confrontando-se consigo mesmo c enfrentando os seus conflitos, os seus conteúdos psíquicos, no que der e vier. Um outro elemento que contribui para dificultar o intercâmbio na relação subjetiva da psicoterapia, é a questão da dependência. Ela é inevitável. Ela ú um mal necessário. Mas ela assusta muito, como prova flagrante não apenas da assimetria da relação, mas sobretudo da Se é o terapeuta que realmente che- injantilização do paciente que nela se ga a ocupar uma posição não somente de opera. Se esta faz parte do processo psiautoridade, mas de autoritarismo, atuan- coterápico, ela, não obstante todas as hedo com intervenções autoritárias, cabe- sitações e defesas, pode c deve ser trará a ele analisar e entender estas falhas balhada, tanto quanto a questão da aude sua atuação; todavia, a experiência toridade. Ademais, deve ser claro, desprova que este autoritarismo em geral é de o princípio da terapia, que ela não mais produto da fantasia do paciente — é um fim em si mesmo, mas que ela que não a ou rejeita a inevitável tem que diminuir, mediante o próprio assimetria operacional •— do que resul- trabalho que propicia, para que o depentante de intervenções intempestivas do dente transforme-se num independente, primeiro. Fantasias sobre a sua autorida- ou melhor, num "interdependente", cade e o seu poder de fato sempre ocor- paz então, no final da terapia, de deslirerão. Mas importa que sejam analisa- gar-se do processo terapêutico e da dedas, que sejam Irabalhadas naquilo que pendência que esta criou. veiculam de submissão iva, de deseIsto significa, ainda, que a assimetria jo de castigo, de revolta, de sedução, de iniciai deve aos poucos nivelar-se para desejo de receber ou de ser mimado, bem dissolver-se, idealmente, no término da como de inevitáveis repetições de situapsicoterapia — quando os dois protagoções anteriores. . . nistas poderão encontrar-se em pé de Somente quando este trabalho entra igualdade, embora, em geral, para se senum ime, esbarrando contra a re- parar. cusa mais ou menos consciente de aceiRelações de amizade após uma terapia, tar a assimetria e as frustrações que im- de fato não são excluídas, mas elas são plica, é que a relação psicoierápica cor- raras, e os próprios princípios do prore um sério risco de encalhar.. . E, de cesso que durante algum tempo reuniu 80
os dois, dificultam esta metamorfose da relação: materiais altamente problemáticos, às vezes explosivos (e profundamente subjetivos!) foram veiculados entre ambos e sempre deixam resíduos: eles nunca são "perfeitamente analisados" ou "totalmente liquidados", ao ponto de permitir, de imediato, a troca por uma nova relação subjetiva, desinteressada desta vez, sem limites temporais e sem objetivos. Em geral, aliás, o ex-paciente tenta esquecer o seu ex-terapeuta, como tendo sido um catalisador necessário, mas cuja presença se tornou supérflua graças ao próprio resultado da terapia. Eis um dos critérios para avaliar uma terapia bem-sucedida. . . A despeito da assimetria, presente inicialmente em função de todas as expectativas e fantasias que o paciente traz para as primeiras entrevistas e depois "curte'' na terapia, a dependência que assim se cria não é unilateral, porquanto a assimetria é dialélica e móbil, podendo evoluir e até inverter-se. Uma tal inversão, pela qual é o terapeuta que começa a depender do seu paciente, ocorre talvez com maior frequência do que se pensa, sobretudo entre jovens profissionais. Ela não é incompreensível, se lembramos o fato enunciado acima de que são os pacientes que realmente transformam o atendenle em terapeuta: sem eles, o terapeuta terá os seus diplomas e títulos, mas estes permanecem letra morta quando não comprovados pela prática, no contato terapêutico com o paciente. Este, portanto, é o aval da qualificação do profissional, tanto quanto o objeto no qual "aplica" os seus conhecimentos. Neste sentido, pois, o terapeuta depende "socialmente" dos seus pacientes; isto, contudo, não quer dizer que
afetivãmente tenha que depender deles também. Se uma tal inversão ocorrer, significa que urge rever os fundamentos da sua qualificação psicoterápica, para não correr o risco de prender-se aos seus pacientes de forma desastrosa — desastrosa para o trabalho psicoterápico, para a caminhada do paciente rumo à sua libertação e independência, c para a responsabilidade ética e, por conseguinte, a postura do psicoterapeuta. Com isto, não queremos postular que ele não possa encontrar satisfações afetivas em seu trabalho, mas estas devem ficar subordinadas aos objetivos da relação psicoterápica. Se, de secundárias e por a^sim dizer acidentais, elas se transformam em primárias, ao ponto de configurar uma necessidade existencial do profissional, estas satisfações tornar-se-ão obstáculos ao livre exercício das suas funções, porquanto o infantilizam e o deixam inapto à vigilância terapêutica, de rigor na profissão pela qual, apesar de difícil e às vezes ingrata, ele fez opção. Fizemos várias vezes já referência às junções do psicoterapeuta. Resumindo-as rapidamente, acabamos de falar em vigiiância terapêutica. O terapeuta, de fato, é responsável pelo andamento do trabalho, bem mais que pelo andamento do paciente em si, cujo controle, obviamente, escapa às suas funções e competênclaa. Contudo, cabe a ele se controlar, aferindo permanentemente o seu trabalho c a congruência deste com os objetivos pautados. Para que isto seja possível, vimos já que a inleração, toda dialética e dinâmica que seja, precisa de uma condução firme, para que não se in81
verta nem se apague a sua assimetria antes do tempo.. . Para alcançar os objetivos da terapia, a interação tem que desenvolver-se de maneira bem específica: cabe ao terapeuta triar o material que o paciente lhe entrega — convidado que é a fazê-lo sem triagem preliminar, sem seleção, sem omissão — para sondá-lo quanto a sua relevância terapêutica e a sua referencia temporal: presente ou ado? Quanto a suas implicações: subjetivas ou objetivas, internas ou externas? Quanto a sua realidade: fantasia ou real? Esta função cie triagem, ele tem que preenchê-la de modo quase automático, lendo-a assimilado como uma segunda natureza, incorporando-a à sua poslura profissional (porém, tomara que esta se limite à sua profissão!); dependerá desta triagem a maneira pela qual ele devolverá (ou não) o material ao paciente. De fato, esta função de devolver o material pode realizar-sc de muitas maneiras, dependendo da linha teórica •—• mas sempre há uma devolução, e sempre há nela um deslocamento, afastando-a de uma resposta direta e imediata ao material comunicado, tanto quando se trale de uma sugestão, de uma interpretação ou construção, de uma indagação, de um apontamento, de um reforço, de uma persuasão ou dúvida. . . O arsenal técnico aí é extenso, mas o que nos interessa é o seu princípio de funcionamento: a devolução baseia-se num deslocamento, numa alteração do enfoque original para que se atinjam novos horizontes, para que novas perspectivas se abram onde um efeito psicoterápico possa desabrochar. O trabalho da psicoterapia consiste, pois, precisamente, nesta alteração que 82
ocorre na transmissão comunicativa entre ambos: não há um esquema de estímulo/reação, como no laboratório, nem pergunta e resposta, como num interrogatório ou numa conversa social. Mas há este deslize, às vezes sutil c quase imperceptível, depois cortante e quase agressivo, para em seguida suavizar-se de novo, que faz com que se produza sentido, seja pela retomada do ado no presente, seja pela vinculação operada entre o imaginário e o real, entre o subjetivo e o objetivo ou entre assuntos aparentemente sem nexo. A procura do sentido, do segredo dos conflitos do paciente e dos seus sintomas comanda estes deslizes, deslocamentos, alterações, cortes e outras intervenções transformadoras do terapeuta; elas sempre visam algo além do manifesto, do banal, do visível, para tocar àqueles núcleos latentes onde se enraízam os conflitos que se trata de resolver. Como estes deslocamentos se efetuam, no entanto, não c apenas uma questão técnica, mas também uma questão de arte, um segredo do artesão que habita no psícoterapeuta. Nisto consiste uma última diferença — e talvez a mais importante — entre as nossas duas relações subjetivas. Vimos, no segundo capítulo, que Binswanger insiste em distinguir, ao lado da comunicação existencial, o aspecto técnico dos conhecimentos específicos do profissional, pelo qual a primeira se diferencia de uma relação subjetiva desinteressada. É este aspecto técnico que lhe confere sua forma de trabalho, alvejando certas metas. Não entramos aqui na discussão deste "serviço", cujos detalhes se determinam pelas diversas técnicas próprias às linhas teóricas que se encontram no "mercado
psi" hodierno; porem, cabe ressaltar que a interaçáo psicoterápíca se estende sempre entre estes dois pólos, entre o subjetivo da comunicação, com todas as suas vertentes, indo da comunhão das ideias ao êxtase fusionai, e o pólo objetivo da técnica, até a aplicação mais instrumental ou tecnocrátiea. . .
seu equilíbrio pessoal, que lhe permita desempenhar as suas funções em plena consciência de sua condição de artesão, trabalhando com a matéria-prima da alma humana c dos seus mais íntimos desregramentos.
A arte do psicoterapeuta, deste artesão do qual falamos, consiste precisamente na dosagem dos dois ingredientes de cuja mistura ele detém o segredo, segundo a sua ética, a sua formação profissional e a sua convicção teórica. Mas sempre haverá uma tal mescSagem, enquanto há um trabalho psicoterápico. Quanto mais a atuaçao de um determinado psicólogo ou médico se aproxima do pólo técnico, dando prioridade à instrumentalização (com um leque imenso de parafernálias, antigas e modernas) em detrimento do contexto subjetivo, menos o seu trabalho será psicoterápico, mais será psicológico, didático ou "aplicado", levando a assimetria ao extremo; no oposto, quanto maís o psicólogo enfatiza a fusão existencial e a "curtição" de sentimentos, sensações e sensualidades, menos haverá trabalho — na ausência de um instrumento que possa mediatizar •— e mais haverá igualdade das posições, comunhão, experiências simbióticas e regressivas, simetria e, no extremo, misticismo ou mesmo fanatismo.
3.8. A definição do instrumento psicoterápico
Não há dúvida de que em ambos os extremos encontramos posições ideológicas, como os cstereólípos "oriente versus ocidente", por exemplo (21). Cabe ao (futuro) psicoterapeuta fazer a sua opção entre as múltiplas variantes e chegar ao equilíbrio que lhe pareça ideal, segundo a sua personalidade, seus conhecimentos c convicções — para chegar ao
Ao fazer referência, logo acima, à importância de um instrumento que possa ser mediador não só entre o paciente e o psicoterapeuta, mas também entre o paciente e ele mesmo, no que tange à sua divisão interna — entre sua parte racional e consciente e, por outro lado, o seu inconsciente e os conflitos que daí influenciam sua conduta e o perturbam — somos levados a pensar na linguagem. Já fizemos alusão a sua prevalência instrumental, mas trata-se agora de precisá-la. Podemos perguntar-nos, primeiro, se é preciso recorrer a um instrumento: não c possível estabelecer um conlato direto e imediato com o paciente ou consigo mesmo? Em determinadas relações humanas, isto de fato ocorre, fazendo parte de um número limitado de experiências íntimas que o homem pode fazer, consigo ou com o outro. Cabe referir-se aqui ao amor, onde duas pessoas podem estar uma com a outra de maneira imediata — pelo menos em determinados momentos — capazes então de dispensar qualquer mediação, já que nào almejam outra finalidade senão estarem juntas. Os namorados estão sós no mundo, diz-se, e de fato, no auge da relação amorosa, o mundo pára de existir, embora se faça rapidamente presente de n o v o . . . 83
Eis pois a condição humana: que a relação imediata consigo, com os outros ou com as eoisas é alcançada apenas em raros momentos privilegiados, "no fulgor de um instante"; que a nossa divisão interna, que Ião cedo (e tão sofridamente) em nós se instala, nos determina e nos separa; enfim, que estamos fadados a refletir, a nos refletir, a pensar sobre nós, sobre as nossas experiências, os outros, o mundo. Para falar com os existencialistas, o homem está subtraído à presença "em si", imediata, maciça, bruta, caracterizando o mundo das coisas, mas não aquele da presença reflexiva (e fatalmente dualista) do homem. Para ele, o "por si" torna-se o seu modo de estar-no-mundo, sempre à procura de algo que lhe falta, sempre dependendo do reconhecimento do outro. Além da relação de amor, cabe mencionar a experiência mística, queira ligada a práticas religiosas, queira resultante de meditação transcendental ou de outros exercícios espirituais ou sensuais, de cunho sobretudo oriental. Todas elas são experiências com o objetivo geral de chegar a não almejar mais nada, ensinando a renunciar aos objetivos particulares; nelas, o ideal é chegar a bastar-se a si mesmo, a dispensar os outros e o mundo das coisas ou, ainda, unir-se a ele de modo fusionai, abolindo diferenças e singularidades. Assim sendo, não há nestas experiências uma mediação instrumental, ou se existe, não o é de maneira constitutiva, mas provisória, como um mal menor de uma etapa léeniea a ser superada. Porém, para que haja um trabalho em nosso sentido, não se pode excluir a mediação do outro ou de técnicas que visam, de fato, realçar (e não abolir) as
84
diferenças individuais, para que sejam assumidas com maior integração. Estas mediações devem então ser consideradas como essenciais, e não como meras incidências rumo a uma libertação total. A relação psicoterápica consiste assim em um Ira balho que, necessariamente (eis o nosso postulado), inclui mediações, porque não idealiza contatos fusionais; inclui conhecimentos técnicos, porque ligada a uma formação profissional específica; inclui objetivos a alcançar que delerminam os seus processos num tempo limitado; inclui uma instrumentação colocada a serviço das finalidades previstas, fazendo preeisamente função de mediação entre os termos que neste processo se engajam. Portanto, a mediação instrumental se apresenta como indispensável. Era nosso entender, é ilusório querer dispensar esta mediação para chegar-se a "contatos diretos", a "relações imediatas", a "vínculos empáticos" ou "experiências transcendentais". Não que seja impossível "curtir" desta forma a relação com o outro, seja no "aqui e agora", seguindo certas orientações atualistas, seja no corpo-a-corpo de encontros rítmicos, musicais, de dança ou de expressão gestual, ou ainda de certos exercícios energéticos; mas em todas estas experiências não se desenvolve aquele trabalho que, em nosso entender, é o único que merece ser chamado de psieoterápico — um trabalho exigente, muitas vezes árduo e que não prometa nada, nem curtição, nem soluções, mas que se propõe a perscrutar da melhor maneira possível, numa relação a dois específica, o material conflitante que faz a pessoa sofrer e a levou a consultar. A partir de premissas teóricas anteriormente discutidas, deduz-se que o tra-
balho psieoterápico visa a elaboração do material conflitante inconsciente. Isto não quer dizer que outros tipos de trabalho não sejam possíveis, como, por exemplo, um trabalho com o corpo. Contudo, em tal caso, não se atingirão (c em geral nem se pretende) os conflitos inconscientes, nem se recorre a um instrumento que possa mediatizar estes conflitos. A relação dualista da pessoa com o seu próprio corpo, nestas abordagens, não será questionada, mas contornada, no esforço de chegar-se a uma relação (ou uma "curtição") imediata consigo mesmo. Sem dúvida isto é possível alcançar, embora de maneira bastante limitada; a questão é saber se desta forma a pessoa, o "paciente" consegue resolver aqueles problemas que, decorrentes de conflitos internos, influenciam o corpo, mas não se reduzem, nem se deixam reduzir a ele. Com este exemplo queremos dizer o seguinte: para que o trabalho que se esboça enlre os dois atinja a pessoa como um todo, levando em conta a sua indissociável unidade psicossomática e tornando-se verdadeiramente psieoterápico, é imprescindível que respeite as características constituintes, isto é, antropológicas, deste mesmo homem. Para tal, temos que itir a necessidade de uma mediação, uma vez que não existe um o direto a nós, nem, sobretudo, a nossos conteúdos mais íntimos, mais subjetivos e mais conflitantes — àqueles conteúdos dos quais padecemos e que se trata de trazer à tona. E é a linguagem que, por excelência, nos oferece esta mediação, este o a nós mesmos. Mas de onde vem esta prevalência da linguagem, da fala? Eis o que temos que justificar. Numa visão antropológica-filosófica, a linguagem é constitutiva do ho-
mem, participa, como um elemento essencial, de sua "anlropogénese", fazendo-o plenamente humano pela inserção na dimensão simbólica, na dimensão do diálogo e da cultura. Tá a filosofia grega tem salientado esta característica, pela sua célebre definição do homem como antropos logon echon, "aquele que fica em pé e dispõe do logos", da linguagem... Cracas aos elementos diferenciais que lhe são propostos pela linguagem, a criança, injans, no início, aprende aos poucos a ordenar o seu mundo vivencial, reconhecer regras, coerências, regularidades e instituir (auto-) regulamentações, pela aquisição de operações reflexivas. Graças à linguagem, tornar-se-á capaz de desenvolver atos de reflexão e de consciência sobre o mundo e sobre as suas impressões sensórias. A linguagem, portanto, serve antes de tudo de órgão de pensamento, de consciência c de reflexão, proporcionando ao espírito humano uma certa autonomia sobre as coisas, bem como sobre as suas vivências diretas, autorizando, desse modo, uma tomada de distância com respeito a estas vivências e a inserção imediata no mundo. De fato, a fala permite evocar uma coisa, ''um real" qualquer, mediante o artefato de uma palavra que chega a substituir-se a esta coisa, sem que a seja; como por um o de mágica, evoca pois a presença da coisa em sua plena ausência: a palavra, simultaneamente, é presença e ausência desta coisa, deste real que ela designa, referindo-se a este como a um "em si" que pertence a uma ordem própria de realidade. Ao designar uma coisa por uma palavra, ordenam-se duas ordens diferentes, se bem que referenciadas uma à outra: o real por um lado, a linguagem por outro. 85
Ura, esta substituição do real por um
signo (linguístico) corresponde a uma operação de mediação, pela qual a pessoa, o "falante", se distancia de sua experiência vivida. Isto lhe permile, precisamente, encontrar-se como sujeito, distinto daquilo que o envolve. Pela reprodução da realidade que a linguagem opera, ela "aliena" a pessoa (a criança), tira-a da convivência ínfima, mas indistinta, com o real anterior; contudo, em troca, a identifica, lhe proporciona uma identidade e um sistema de referencia onde se inscrever e se segurar. Graças à linguagem, o conhecimento do mundo, dos outros e de si mesmo torna-se possível, porquanto institui o pensamento e as estruturas lógicas. A disjunção que assim se opera enlre o vivido e o signo que o substitui, é portanto contrabalançada pela inserção na linguagem e na lógica, cm uma palavra: no universo simbólico. Ao falar de universo simbólico, pronunciamos a palavra-chave para entender a importância capital da linguagem, fanío no processo de antropogênese quanto na relação psicoterápica. Ela institui a junção simbólica que permite ao humano adolar a distância necessária para com as coisas, pelo ato reflexivo que, a partir do o à linguagem, o deixa dividido, alheio a si mesmo mas, em compensação, capaz de pensar, de desenvolver a sua consciência e de se significar a si e aos outros, ou seja, no meio dos outros. "Simbolizar" torna-se então uma das tarefas essenciais do trabalho efetuado cm psícoterapia — não confundir com "intelectualizar", como ocorre com frequência . . . De fato, a símbolização não é algo que se a ao nível racional, pelo raciocínio ou pelo "esforço de pen-
sar" ou de rcllelir a um nível intelectual e abstrato, mas pelo dizer. Nem mais, nem menos: dizer-se, deixar-se dizer, entregando-se ao fluxo de verbalização a respeito da vivência própria, dos problemas, dificuldades e confíitos pessoais que, destarte, podem encaminhar-se para uma resolução. Esta, novamente, não se situa ao nível racional ou consciente, mas faz parte desle misterioso processo de simbolização que transcende a distinção entre consciente e inconsciente, entre racional e intuitivo, interior e exterior, e que se coaduna assim com o processo não menos misterioso da "eficácia simbólica" da qual tratamos no segundo capítulo. A linguagem, enquanto função diferenciadora da vivência e do real, põe em movimento a simbolização das experiências vividas por uma delimitação tríplice: ela diferencia o inferior do ex(erior (o "si mesmo" dos outros); distingue, na interioridade de si, entre a expressão desta interioridade (o pensamento) e a interioridade mesma (sobre a qual porta o pensamento); faz reconhecer-se, em sua expressão própria, pela sua forma, em relação com oufras formas possíveis, e singulariza, "individualiza" deste modo a forma que a pessoa (ou seja, o "indivíduo" que assim se repertoria, se "subjetiva") encontra para posicionar-se. A expressão pela fala, pois, é individualizante e promove relações de significação, estabelece "sentidos", ou melhor, cria as condições de possibilidade para que "sentidos" possam advir. Com efeito, para que algo faça sentido, seja significado, faz-se necessário que alguém o pense, debruçando-se sobre ele, com uma necessária distância, tanto física quanto temporal; desta for-
ma, o senlido surge "só depois", c sem que a coisa se faça presente. A linguagem liberta da coisa, cria a autonomia para diferenciar-se e opor-se à presença bruta do "em si"; graças a ela, o homem consegue também pôr-se em oposição a si mesmo, ganhar distância para consigo, e mediante a verbalização, "analisar" os conflitos que o habitam e o fazem sofrer (26). Quanto mais inconscientes (ou "profundos") estes conflitos, mais difícil torna-se a sua abordagem; encobertos defensivamente, a pessoa faz tudo para mantê-los fora da sua consciência e vivência, recorrendo preferencialmente a formas de agir que fazem com que continuem encobertos. Ora, o que se opõe à linguagem — que permite, precisamente, evocar os conflitos, trazè-los à baila pela mediação da verbalização, mesmo quando inconscientes — é a ação, a atividade motora e sensória; ela, no extremo, pode chegar a um ativismo desenfreado, quando a pessoa necessita literalmente fugir do confronto consigo mesma ("fugir para frente"). Entregar-se à ação para não ter que pensar, para não ter que refletir sobre si mesmo, sobre os próprios desejos, motivações e intenções para com os outros, significa então encobrir os seus problemas e "protegê-los" para que não incomodem mais. Ao agir desta forma, podemos viver na ilusão, por algum tempo pelo menos, de termos resolvido nossos problemas; conseguimos aboli-los momentaneamente e "fazer como se" nosso próprio equilíbrio fosse garantido, como se "aqueles problemas" não nos atingissem mais, porque estão fora do alcance da nossa consciência e da nossa ação.
l'or esta razão, cm psicoterapia não se "faz" nada, não se age, nem se atua — o fazer, aí, se reduz ao dizer, à verbalização, pela qual o material conflituoso pode ser evocado, tornado presente com e apesar de Ioda a sua ausência ao nível consciente; pode ser pensado e refletido apesar da distância, a linguagem servindo de elo mediador para "chamar" aquilo que se tornou problema e que, tanlas vezes, é desconhecido. Longe então de encobrir o que incomoda, a verbalização permite aproximá-lo, cercá-lo, analisá-lo e elaborá-lo — em uma palavra, simbolizá-lo, desencadeando lodo aquele processo de simbolização que, graças a ela, se torna possível, mas que sem ela fica fora do alcance da intervenção "terapêutica", por mais sofisticada que seja. "Simbolizar", no entanto, não significa que este trabalho se processe necessariamente ao nível de consciência, ou consista em "tornar consciente" o material inconsciente. A maior parte do processo de simbolização efetua-se de modo inconsciente; a conscientização pode ocorrer (depois de uma psicoterapia "bem-sucedida", a pessoa se conhece melhor, tem mais consciência de si), mas cia não é imprescindível para que o material conflituoso seja tocado, seja colocado em movimento, elaborado e reorganizado. Já frisamos que esta operação tem algo de misterioso; não é possível entender como a resolução dos conflitos procede exalamente, em que consiste e "onde" se desenrola; "dizendo tudo" e contando com as intervenções adequadas do terapeuta, o impacto dos conflitos inconscientes sobre a conduta da pessoa diminui, os sintomas enfraquecem, a sua vida se "despatologiza", a comunicação
86 87
intra e interpsíquíca flui cora menos entraves, a pessoa dispõe mais de si mesma. . . Eis a simbolização: não um processo automático, intelectual ou racional, mas um movimento de auto-integração tornado possível pela fala e pelo seu potencial de penetração nos recônditos da alma humana, transcendendo a clivagem entre consciente e inconscienle, entre racional e afetivo e contribuindo para a "cura" da pessoa, dos seus males íntimos, desde que sejam de origem psíquica. Cabe frisar, todavia, que a linguagem não é mágica: não é verdade que basta falar para que a pessoa seja "naturalmente" curada. Esla fala deve desenvolver-se no interior da relação psicoterápica, deve integrar-se neste trabalho muito específico que entre os dois se opera — e nem sempre ele realmente ocorre, sendo a possibilidade da sua ocorrência condicionada por uma série de variáveis. Estas serão abordadas em outros capítulos; aqui trata-se tão-somente de definir o instrumento da fala, condição sine qtta non (mas não suficiente) para que alguma elaboração se realize. A respeito do papel preponderante da linguagem em psicoterapia, encontramos cerfas objeçôes que voltam com frequência. Elas são, muitas vezes, baseadas em mal-entendidos, ou então em premissas ideológicas representando determinadas orientações, não necessariamente de acordo com os objetivos da psicoterapia. Assim o mal-entendido segundo o qual o trabalho psicoterápico residiria tão-somente num "falatório" ("bater papo"), onde interviria mais a persuasão ou, quando muito, reaçÕes de catarse, do que processos cientificamente fundamentados. Ou ainda, que é o terapeuta que, falando mais, com insistência e imposição, che-
garia a "fazer a cabeça" do paciente, sendo que a sua "cura" ou a sua melhora consistiria simplesmente na aceitação das novas diretrizes; estas poderiam desculpabilizá-lo ou tirar dele responsabilidades que não quer ou não consegue assumir, de sorte que se sente melhor.. . Uma outra objeçao, à qual já aludimos, diz respeito aos aspectos intelectuais e racionais da linguagem. Ê verdade que a linguagem é mais apta para expressar e transmitir pensamentos abstratos do que vivências, raciocínios mais do que sentimentos — mas nem por isso torna-se impossível existir um discurso carregado de afetos, emoções e sentimentos, transmitindo algo da vivência própria. Sem dúvida, nunca se chegará a uma transmissão integral da intimidade da pessoa; muito se opõe a isto, além das limitações da própria expressão linguística, notadamente a inviabilidade de um o dírelo à nossa interioridade: não dispomos de um contato imediato conosco, razão pela qual precisamos daquela mediação que a linguagem estabelece. Temos aí, aliás, um paradoxo que caracteriza a psicoterapia: o paciente está sendo convidado a "dizer tudo", possibilidade que, pela postura benévola do terapeuta, lhe é efetivamente oferecida; mas sabe-se de antemão que é impossível, humanamente, "dizer tudo", visto que a categoria do "tudo", da totalidade abrangente, não faz parte da existência humana: estamos e somos limitados em tudo, condição humana cuja aceitação nos custa muito, formando frequentemente um dos maiores conflitos psíquicos que temos que atravessar e resolver.
Não obstante esta impossibilidade intrínseca, aquele "tudo" que abrange o inconscienle pode ser locado indiretamente, O que em psicoterapia se visa e se torna praticável: a fala do paciente sempre veicula muito mais do que ele pensa ou pretende. As limitações da linguagem e da sua verbalização de maneira alguma são impedimentos para que elementos da sua vivência íntima se traduzam (ou se traiam), com ou sem a sua intenção, a sua "vontade" explícita. "Falando, chegamos lá", sendo que, evidentemente, outras condições têm que ser realizadas para que o processo psicoterápico se desenrole de modo a oferecer apoio e direcionamento ao trabalho de ambos. O que as palavras não dizem, deixa-se inferir pelo contexto da fala, pelas alusões que esta contém a materiais múltiplos, pelo conjunto da sua história — em suma, pelo não diIo que a atravessa e que faz parte dela, tanto quanto o dito. A propósito, o silêncio também faz parte da fala, faz parte da verbalização em psicoterapia; esta não consiste num falar ininterrupto, rmis tem os seus intervalos, as suas cadências, escansòes, poniuações e suspensões, pelas quais, novamente, é o contexto, são as implicações do não-dito que "estão dizendo algo". O silêncio, pois, é uma maneira muito particular de falar, e com eie todos os outros fenómenos que observamos nas sessões psicoterápicas, inclusive as expressões corporais, os gestos, mímicas e posturas: todos eles são maneiras de falar, embora não dispensem a agem pela fala, para que realmente haja aquela mediação para conosco mesmo que permite uma aproximação dos conflitos internos.
Uma outra objeção, de peso, apóia-se em considerações semelhantes sobre as limitações da verbalização, frisando em particular a falta de afetividade que caracterizaria a relação psicoterãpica, com as suas exigências de distância e de "tecnicídade". Em consequência, a fala do paciente seria meramente mecânica, sem calor humano, sem emoção e sem expressividade. Outras abordagens, menos racionais e dando mais espaço às emoções (e ao corpo) seriam portanto necessárias para que se desse livre expressão à sua intimidade, incluindo aí até os seus conflitos inconscientes e os problemas resultantes do seu ado, Várias formas relativamente recentes de psicoterapia seguem este raciocínio e preconizam abordagens "mais flexíveis", mais emocionais, ou que trabalhem mais com o corpo. Voltaremos a esta discussão no último capítulo. Frisamos aqui tão-somente que a ideia de "livre expressão", não isenta de fortes componentes ideológicos, é mais um sonho, um desiderato utópico (e obstinado) do homem, do que algo humanamente ível de realização: não conseguimos nunca sermos livres de nós mesmos, nem expressarmo-nos "livremente". Por outro lado, as regras que direcionam a relação psicoterãpica (e vimos anteriormente a sua justificação teórica) não impedem, em absoluto, que a verbalização do paciente seja mesclada ou mesmo sustentada por afetoí> e emoções — pelo contrário, se este seu discurso for somente racional (ou racionalizado, intelectualizado), devem surgir dúvidas sobre a relação psicoterãpica e a interação que, neste caso, sem dúvida, funciona mal. Ê altamente desejável (e perfeitamente possível) que a fala do pa89
ciente seja afetiva, tanto quanto possível. E ela o será, se a comunicação entre ambos se situar realmente ao nível da intimidade subjeliva que a relação psícoterápica requer. Se islo não ocorrer, c que algo está errado, embora não nos princípios teóricos (que já fizeram suas provas, inúmeras vezes), mas nas contingências concretas que presidem o desenrolar deste ou daquele caso particular. Contingências ligadas à pessoa do terapeuta, ao paciente, ã problemática, ao contexto e, portanto, à questão da indicação terapêutica {ver cap. 7), necessitando um exame aprofundado e certas medidas, como, por exemplo, uma mudança de técnica ou de terapeuta. Mas não cabe, por islo, incriminar as características da fala humana: nela a expressão emocional é realizável com facilidade. Ela ocorre na grande maioria dos casos, onde a relação psicoterápica se instala de modo a desencadear a comunicação do material subjetivo íntimo. E esta comunicação subjetiva sempre é uma comunicação vivida com muitos afetos, porque toca os sofrimentos presenles e ados da pessoa e, com eles, o conjunto de recordações que perfazem a sua história pessoal. Pois é desta que se trata: a história do paciente é, antes de tudo, a história de sua afelivicíade; falando de si, é dela que se fala, c quanto mais se aprofunda o próprio material subjetivo, mais a fala será carregada de afetos c emoções — e mais ela será verdadeira. A verdade da pessoa, para cuja emergência o trabalho psícoterápico se engaja, é uma verdade subjetiva e afeliva, e c pela fala que ela é tocada e se revela •— nunca totalmente, nunca diretamente, mas em aproxi-
mações sucessivas cujas cadências configuram o processo em pauta. Se o recurso à fala é imprescindível para uma ação psicoterápica em profundidade, ela detém ainda certas vantagens intrínsecas. Em particular, a fala permite que os conflitos que surgem no interior do próprio relacionamento terapêutico sejam verbalizados. Tais conflitos são normais: sentimentos de rejeição ou de incompreensão, agressividade aberta ou latente, dúvidas, desconfiança ou dissimulação fazem parte do trabalho psicoterápico e ocorrem tanlo no início quanto na fase de aprofundamento. Ao frisar que tais empecilhos são normais, participando regular e inevitavelmente de toda psicoterapia, queremos dizer que esta nunca corresponde a uma sinecura: vislo que "mexe" com a história ada do paciente, tentando reelaborá-la para resolver as problemáticas aí pendentes, os sentimentos negativos (tanto quanío, é claro, os positivos) tendem a reproduzir-se na situação de terapia, deslocados agora para a figura do psicoterapeuta. O importante é que possam ser ditos. Calados, camuflados ou escamoteados, farão estragos às vezes irreparáveis, levando, não raramente, à interrupção da terapia. Nomeados, torna-se viável a sua análise, podem ser trabalhadas as suas implicações, ramificações e significações latentes, cm benefício do próprio processo terapêutico. Cabe ao terapeuta, à sua "arte", à sua intuição, criar um clima propício para que o paciente consiga, em confiança, falar dos seus sentimentos a respeito do terapeuta, a respeito da situação íntima (e envolvente) que se cria entre ambos, à medida que cada vez mais material subjetivo se esgaravata, até que os sen-
timentos e desejos mais recônditos venham à baila. Se pode ser constrangedor revelar tais assuntos, "normalmente" calados, não deixa de ser libertador tocar neles e "dar nomes aos bois", oportunidade segura para que o trabalho prossiga com novo ímpeto. Podemos comparar, aliás, com a vida familiar: as coisas não ditas, omitidas e adas sob silêncio, continuam presentes e incomodam, ficam engasgadas e transformam-se aos poucos cm mentiras, sempre percebidas pelas crianças. Dizer a verdade pode assustar, pode encabular cada um de nós, mas alivia c limpa terrenos que se pode, desde então, escarafunchar com proveito. No entanto, é evidente que o psicoterapeuta tem que deter habilidade e maturidade suficientes para saber lidar com o material que chega assim a se verificar — sem se sentir agredido ou ofendido, sem situar estas erupções ao nível pessoal, mas utilizando-as, devolvendo-as de maneira criteriosa, abrindo novas facetas ao trabalho terapêutico. Ditos e analisados a dois, estes sentimentos negativos podem transformar-se em dicas valiosas, em aliados poderosos para aproximar-se mais dos objetivos do processo. Outrossim, a linguagem, enquanto instrumento de comunicação e de compreensão, constitui o campo onde os conflitos da pessoa podem aflorar, se manifestar com maior ou menor nitidez — c onde podem ser mantidos e trabalhados. Repetimos que esta possibilidade se esgota quando, ao invés de verbalizar, com paciência e persistência, se a direlamente para a ação; vivendo e atuando os próprios sentimentos e emoções, os conflitos aos quais estes se atam, esvaziam-se e desaparecem, pelo menos momentaneamente, enquanto a agem
pela faia permite mantê-los e evocá-los ao seguirem-se os meandros do fluxo verbal. Mesmo sendo, sem dúvida, ambíguo e plurívoco em sua expressão, como toda linguagem, este, não obstante, possibilita uma comunicação relativamente precisa — mais precisa, pelo menos, do que a linguagem corporal ou infraverbal —, capaz de focalizar (e simbolizar!) os conteúdos conflitantes. Dando aparentemente muitas voltas, a veibalização do paciente guarda contatos "estruturais" com os seus conflitos íntimos; estes, origem de seus sofrimentos, razão da sua estada em lerapia e alvo do seu trabalho, não se volatilizam como na atuação, mas ficam presentes, se cercam e se revelam nas entrelinhas das ambiguidades e equívocos de sua fala. Como outros modos de expressão também, esta sempre diz muito mais do que o explicitamente formulado. Em oposição a linguagens infraverbais, preserva este "algo mais", este não-dito e o desenvolve, vinculando-o, pela continuidade do relato, com a história da pessoa, com os seus pensamentos e afetos, e o tira, destarte, aos poucos, do seu sigilo patogênico. Eis, novamente, o processo de simbolização que configura os objetivos do processo psícoterápico. amos, num último subcapítulo, a defini-los melhor.
3.9. A definição dos objetivos psicoterápicos Já tocamos várias vezes na questão dos objetivos que se pretende alcançar em psicoterapia. Poderíamos ter começado a delimitação teórica de nosso campo definindo os objetivos, mas dei91
xamo-lo para o final, o que nos possibilita agora rever uma série de elementos já discutidos, comparando-os com a pergunta mais fundamental que possamos (e devemos) nos colocar: por que, para que fazer psicoíerapia? Reparamos a amplitude da pergunta e as suas implicações múltiplas, quando analisamos as diversas respostas que encontramos na literatura. O tema é ível de iodas as interpretações, onde se mesclam facilmente opiniões, preconceitos, convicções e ideologias, todos eles imbuídos, inevitavelmente, de elementos subjetivos. Não há dúvida, aliás, que uma definição objetiva esteja fora de a!cance, porquanto envolve a questão de valores e, por conseguinte, questões éticas e filosóficas. Estas correspondem às Weltanschauungen, às cosmovisões ou ideologias entre as quais nós todos nos situamos — embora muitas vezes sem nos darmos conta das nossas escolhas, das suas razões ou justificações e das numerosas influências, sociais c cullurais, abertas, sutis ou inconscientes que sofremos e que, de alguma forma, contribuem para nos condicionar.
que possa aí impor a sua visão, uma vez que o psicoterapeuta tem que tomar as suas decisões em seu foro íntimo, instituindo-se como a sua própria autoridade. Eis uma lías razões que tornam o exercício de sua profissão tão difícil c que acarreta tanta responsabilidade ética: ninguém pode decidir cm seu lugar quanto aos seus aios terapêuticos, ninguém pode justificá-los (nem, menos ainda, removê-los); apenas ele mesmo poderá assumi-los, deverá assumir-se em suas funções e responsabilidades de psicoterapeuta. Os objetivos que enumeramos cm seguida, serão, portanto, os nossos objetivos, pelos quais fizemos uma opção pessoal, em função da nossa imagem do homem e da nossa concepção daqueles valores engajados no trabalho psícoterápico. Isto, aliás, já transpareceu na definição dos conflitos inconscientes como constituindo o material sobre o qual se trabalha em psicoterapiít: refere-se à imagem do homem dividido entre consciência e inconsciente, o que deveras não é a única concepção do homem possível; mas a adolamos porque nos parece amplamente justificada, tanto pela experiência clínica quanto por considerações teóricas.
Sem querer entrar na discussão do livre-arbítrio ou do determinismo — temas filosóficos intermináveis — devemos, pelo menos, itir que as nossas opções não são totalmente livres nem, cm seus determinantes, totalmente conscientes; todavia, isto não nos parece ser um argumento para não ter que assumidas, tentando elucidá-las ao máximo e responsabilizando-nos pelas consequências que decorrem delas cm suas aplicações clínicas.
Cabe portanto a cada (futuro) psieoterapeuta optar pela concepção antropológíca que lhe parecer mais pertinente, escolher uma orientação teórica em consonância com a primeira (bem como com os seus valores existenciais pessoais), e definir os objetivos que se pretende (e que se deixam) atingir pelos métodos e técnicas decorrentes.
Mas, repetimos, não é possível chegar-se a uma definição única que, neste âmbito, seria necessariamente uma definição autoritária — e não há autoridade
Como primeiro objetivo geral fixaríamos o ideal de uma libertação da pessoa que, lutando com dificuldades de ordem intrapsíquica e interpessoal, nos consulta
92
à procura de uma solução. Mas "libertação" ou "solução" quer dizer o quê? Como consequência da nossa definição dos conflitos intrapsíquicos, torna-se obvio que não pode tratar-se de uma mera libertação dos sintomas —- mas libertar de que então? A palavra não é isenta de conotações ideológicas c pode, de fato, ser definida de maneiras bem diversas; digamos, para começar, que pensamos numa libertação interna que permita ao paciente dispor mais livremente de si, superando os entraves oriundos dos seus conflitos e divisões pessoais. Isto, no entanto, não significa que uma libertação total seja possível, ou que as suas divisões internas possam ser eliminadas — utopias que cabe afastar da visão tanto do terapeuta quanto do paciente! Teria a ver, do lado do terapeuta, com presunções (infantis) de onipotência, pelas quais acredita dispor de poderes extraordinários para levar o outro a uma "cura" completa; do lado do paciente, corresponderia a uma expectativa irreal de conseguir chegar a um estado paradisíaco sem tensões, sem conflitos e, quem sabe, sem limites. As duas perspectivas, numa tal situação, seriam portanto complementares, sendo que em ambas se acredita, magicamente, em um mundo limitado onde o indivíduo poderia, usufruir de uma liberdade plena, sem mais ser restringido pela "condição humana". Este não é o sentido da libertação que apontamos como meta do processo psicoterápico. O trabalho incluído neste processo não acabará com o fim da terapia, mas continuará no sentido de uma exigência permanente de se enfrentar a si mesmo, de avaliar c de efetuar então as opções que se impõem, com a maior
liberdade e com o maior grau de consciência possíveis. "Libertação", em nosso sentido, significa pois aumentar o campo da consciência — sem nunca chegar a uma plena consciência de si ou a um "esvaziamento" do consciente — e aumentar, por conseguinte, o leque de ações conscientes, responsáveis e assumidas; significa ampliar o autoconhecimento para viver menos num faz-de-conta de "como se", de autocamuflagem e de escamoteação dos verdadeiros problemas, tendências e desejos; significa desenvolver aquelas potencial idades que ficaram amordaçadas sob o peso das repressões e inibições; significa ainda, aumentar a capacidade de autocontrole e de disposição de si, para poder efetuar as escolhas vitais com conhecimento de causa. Não se trata de nenhuma libertação que transformaria o paciente num ser absoluto, soberano e aulo-suficiente — nem, sobretudo, em alguém capaz de sobrepujar-se aos outros, de os dominar ou os dispensar: a libertação que colocamos como objetivo, não visa tirar o indivíduo da sociedade, do convívio com os outros, mas integrá-lo melhor nela, em consequência de sua maior integração consigo mesmo. Pretende pois aproximá-lo dos outros, para chegar, nisso também, a encontrá-los com maior liberdade do que antes, livre agora das coaeões internas criadas no decorrer da sua história; não visa, contudo, libertá-lo das coações externas, daquelas que fazem inevitavelmente parte da vida social; a meta é levá-lo a enfrentá-las com maior facilidade e mais tolerância. Em outras palavras, ele tem que aprender a respeitar os outros sem se sentir ameaçado por eles (eis um outro aspecto da libertação), itindo as diferenças para
com os outros sem sentimentos de rejeição ou de exclusão. Para voltar à questão dos sintomas mencionada acima: a sua eliminação evidentemente faz parte dos objetivos da psicoterapia, mas não exclusiva, nem prioritariamente; pretende-se chegar a outras mudanças, mais profundas ou mais globais que, quando ocorrem, acarretam também a resolução dos sintomas. Uma tal concepção implica novamente uma determinada visão do ser humano e das suas patologias: os sintomas não são considerados em si como constituindo "o problema" do paciente, mas como representando-o, enquanto este se situa "alhures". Colocamo-nos, pois, claramente, em oposição à abordagem comportamental, por exemplo, que se restringe explicitamente a combater os sintomas, considerados como efeitos de aprendizagens erradas; eliminados os sintomas, cessa a intervenção do terapeuta comportamental e o comportamento do paciente fica "modificado". De sorte que não se distingue entre o manifesto e o latente, entre o que a pessoa mostra e o que ela "é", nem entre o comportamento e os seus determinantes intrapsíquicos. Sendo esta distinção sem nenhuma relevância (ou sendo mesmo negada), o comportamentalismo não fixará outros objetivos além daquele, funcional e facilmente "operacionalkável", de eliminar os sintomas: os sintomas suprimidos, o problema apresentado pelo paciente é considerado como resolvido. (V. Garfield & Bcrgin)(12). Este exemplo demonstra como a imagem do homem — unitária ou dualista, como superfície ou como interioridade — determina os objetivos da intervenção terapêutica. De fato, a eliminação 94
dos sintomas em si já é um objetivo apreciável que, às vezes, pode ser suficiente; mas não nos parece possível reduzir o homem ao seu comportamento, nem, tampouco, a psicoterapia a uma modificação comportamental — opinião ou "crença" na qual se reflete, evidentemente, a nossa visão do homem, a nossa opção pessoal quanto ao alcance e ao sentido da intervenção psicoterápica. No entanto, na literatura, é comum encontrar a distinção de três tipos de objetivos que podem coexistir, se suceder ou se isolar. Assim Wolberg(ll) (capítulo 7) acha pertinente distinguir entre o alivio dos sintomas, a mudança do comportamento e a mudança da personalidade, considerando-os como três ocorrências possíveis ao longo do processo psicoterápico. Justapor assim estas três mudanças, significa que todas as três são realizáveis e que a opção entre elas é não somente possível, mas ainda necessária, em função de determinadas variáveis, a definir mais adiante (ver capítulo 6). Eliminar ou aliviar os sintomas aí não se apresenta, portanto, como o único objetivo possível, mas como uma das libertações cabíveis, entre as quais o psicoterapeuta pode optar, negligenciando conscientemente as outras opções. Coloca ainda o objetivo da mudança da personalidade (ou da sua "reconstrução") como o objetivo mais complexo, mas também o mais difícil a atingir, representando uma espécie de ideal que, no entanto, nem sempre se deixa realizar. A noção de personalidade é muito discutida, até quanto à sua pertinência. Como conceito, representa um construto difícil de ser operacionalizado, visto que se refere a uma abstração não observável. Ele implica estruturas ou "instân-
cias" latentes, sejam elas hereditárias ou adquiridas; implica pois uma visão dualista do homem que nem todos os pesquisadores ou profissionais da área se dispõem a itir. . . Quanto a nós, colocamos como objetivo geral da intervenção psicoterápica a mudança, da estruturação inconsciente desta personalidade. Porém, ao sublinhar esta mudança intrapsíquica como essencial para que este processo possa ser considerado como bem-sucedido, enfrentamos a dificuldade de defini-la: sendo intrapsíquica, ela consiste em quê? Quais seriam os critérios para a sua avaliação? Percebe-se que esta dificuldade não existe a respeito da eliminação dos sintomas; em abordagens, todavia, que visam objetivos "mais profundos" ou "mais complexos", ela entrava seriamente a avaliação dos resultados, bem como o cotejo das diversas abordagens entre si. Mas não vemos razão, nisto, para abrir mão de objetivos que ultraam o alívio sintomático, ou mesmo a mudança do comportamento: o ideal de uma libertação interna, a mais ampla possível, persiste, podendo mesmo ser considerado como uma exigência ética. lunto com esta concepção, temos pois que assumir a subjetividade do processo de psicoterapia, da mudança de personalidade que nele se almeja, e da avaliação dos resultados. Quem tem que mudar (e tem que querer isto!) é o próprio paciente, e cabe a ele alcançar (com a ajuda do terapeuta, c claro), sentir e avaliar as mudanças que nele ocorrem. A dificuldade, portanto, de fixar e avaliar este objetivo, é inerente à complexidade da tarefa: se nós assumimos esta, temos que assumir também aquela, uma vez que não se deixa contornar como acidental.
Em outras palavras, a opção que fazemos tem que ter consistência interna, e ao fazc-la temos que saber os riscos que corremos, a respeito, no caso, do ideal de uma avaliação "científica", isto é, ohjctiva e generalizável: se ela não é possível, cabe desistir do empreendimento— ou então criar critérios que, embora subjelivos, tenham consistência interna. Voltaremos a este problema mais adiante, discutindo a avaliação dos resultados. Aqui resumimos que, apesar de todos os empecilhos, o objetivo ideal de uma transformação ampla da pessoa (ou de sua "personalidade") deve ser mantido para atingir aquela libertação autêntica (embora não máxima) que definimos acima, e que coincide, em nossa visão, com a resolução dos seus conflitos inconscientes, alcançada pelo próprio paciente. É interessante notar que a ideia de "libertação" da pessoa não é própria à psicoterapia das sociedades ocidentais modernas. Watts (1974) (25), notadamente, comparando a psicoterapia ocidental com os procedimentos psicoterãpicos orientais, assinala a proximidade dos objetivos que, em ambos os casos, preconizam uma certa libertação interna. A definição dessa libertação, no entanto, diverge bastante de um contexto cultural para outro. As psicoterapias orientais visam antes de tudo libertar o espírito dos seus entraves materiais, daqueles que exercem coerção sobre o livre desabrochar espiritual, em consequência da ligação limitadora com o próprio corpo e com a realidade material que nos cerca. Os métodos e técnicas utilizados aqui representam guias para conceder alforria aos acometidos dos males terrestres, mediante a meditação transcendental, a contemplação divina ou êxtase 95
místico. A libertação é, portanto, concebida como referente ao peso da existência material: despertando a orientação espiritual, a pessoa conseguiria livrar-se dos bloqueios decorrentes do seu condicionamento físico e atingir esferas superiores em seu desenvolvimento mental. O ideal de uma libertação do corpo, do e material da existência, não intervém nos objetivos da psicoterapia ocidental. Nela, pretende-se muito mais integrar corpo e alma da pessoa, melhorar o ent rosa mento para diminuir (mas não eliminar) os atritos entre ambos e chegar assim a solucionar os conflitos que existem entre estas duas vertentes da existência. No âmbito ocidental, pois, a concepção da libertação coaduna-se com determinados valores, em primeiro lugar com aqueles ligados à pessoa: a libertação será aquela de um sujeito cuja subjetividade e historicidade não são considerados como obstáculos, mas, pelo contrário, como valores a serem realçados e assumidos para que se aleance uma integração mais flexível e mais livre de sua personalidade. A grande maioria dos representantes ocidentais não considera o prazer do corpo, por exemplo, como um obstáculo para o equilíbrio da pessoa ou para o seu desabrochar espiritual mas, pelo contrário, como uma condição sitie qua non para a sua sã expansão existencial. Esta concepção —• que evidentemente tem evoluído muito desde a Idade Média, e continua a evoluir — determina as diversas orientações psicoterápicas no Ocidente e faz com que os seus objetivos gerais acerca da "libertação" tenham um denominador comum, bastante diferente daquele vigente no Oriente. 96
Finalizando, cabe frisar mais uma vez que o fato do psicoterapeuta ter convicções próprias que o levam a fazer determinadas opções entre as diversas linhas teóricas e os valores que implicam, não quer dizer que ele tenha que deixar-se dominar por elas, transformando-as em ideologias que, mais cedo ou mais tarde, poderá ser tentado a impor aos seus pacientes. Uma opção vira ideologia quando se apresenta como única, quando se radicaliza e esquece a presença de outras opções cabíveis — quando perde o respeito pela diferença dos outros. Neste sentido, o terapeuta, mesmo ficando firme em sua própria postura, tem que oferecer ao paciente a possibilidade de fixar ele mesmo os seus objetivos, tem que oferecer-lhe as várias opções que se apresentam, para que possa fazer uma escolha pessoal. Esta, sem dúvida, será facilmente influenciada pela "autoridade" do psicoterapeuta e pela linha teórica a qual pertence, em geral conhecida de antemão pelo paciente; não obstante, o terapeuta não deve embriagar-se com esta sua autoridade, mas excrcè-la com humildade, procurando o bem do outro e não a exaltação do próprio poder.
Chegamos ao término do nosso delineamento teórico. Com ele, definimos um conjunto de elementos teóricos, podendo constituir um sistema geral de referências, ível de orientar a nossa reflexão para saber o que possa, o que deva ser uma psicoterapia. Estes elementos dizem respeito aos Ires pólos da relação terapêutica (v. capítulo 1) e às suas múltiplas interaçÕes. Parece-nos imprescindível que estes três pólos — o pa-
ciente, 0 psicoterapeuta e a própria relação, o processo em que ambos se engajam — sejam claramente definidos, para que o (futuro) psicoterapeuta tenha plena consciência das implicações antropológicas, psicodinámicas e psicopatológicas da sua prática. No entanto, estas reflexões teóricas devem ser assimiladas pelo aprendiz para, em seguida, serem esquecidas, porquanto a prática clínica não consiste em teorizar e nem sequer em aplicações de uma teoria preestabelecida; para que a sua prática clínica seja autêntica e espontânea, sem que seja improvisada, ele tem que saber o que está fazendo, para que não se transforme em aprendiz-feiticeiro, criando males maiores do que os que pretende curar. A teoria, portanto, deverá estar presente de maneira permanente, mas como um jundo incorporado, assimilado pelo terapeuta para que possa nutrir-se dele durante a sua prática, mas não para que seja reflctida durante o seu exercício profissional. A reflexão teórica se processa então em dois momentos: durante a formação do futuro psicoterapeuta, quando toma conhecimento das implicações amplas da prática psicoterápica; na reflexão sobre a sua prática, quando se trata de proceder a uma elaboração teórica acerca das experiências acumuladas e dos novos questionamentos que daí surgem. Os elementos de uma teoria geral da prática psicolerápica aqui apresentados entendem-se pois como um instrumento útil e mesmo indispensável para esta prática c para a pesquisa que dela decorre, sendo que ambas não se deixam dissociar, se se quer manter um nível
de atuação científica e eticamente responsável. As teses desenvolvidas aplicam-se, é óbvio, à área geográfica ocidental, uma vez que é nela que se arraigam os critérios científicos e éticos referidos. Elas não têm nenhuma pretensão de universalidade. No Oriente, na África ou no Brasil indígena, outros critérios são vigentes e norteiam as práticas psicoterápicas segundo modalidades culturais próprias. Aplicadas pois à "realidade brasileira", elas têm valor apenas para a formação universitária (e pós-universilária) de psicoterapeutas profissionais que partilham da cultura ocidental; o "saber" contido nesta tese não substitui outros saberes, de origem popular, indígena ou afro-brasileÍTa, cujo valor e cujas práticas cabe reconhecer e aproveitar para fins terapêuticos, conforme as mais divergentes crenças das pessoas que as procuram. Sc a concepção aqui desenvolvida não deixa espaço para práticas mágicas, por exemplo, não significa que estas sejam em si condenáveis, mas tão-somente que não obedecem aos critérios que norteiam o nosso trabalho e a nossa ideia de teoria e prática psicoterápieas. Nas considerações esboçadas, evitamos propositalmente recorrer a termos técnicos ou teóricos específicos. Como se trata aqui de um esboço geral de uma teoria geral da psicoterapia, tais termos, ao nosso ver, não cabem; na medida que isto se faça necessário, eies serão introduzidos nos capítuios seguintes. Assim falamos, até agora, apenas de "relação" psicoterápica e não de "transferência", de "material psicológico" e não de sua "perlaboração" ou "interpretação", aspectos particulares que dependem de
uma determinada orientação leórica e das suas técnicas. O único conceito mais teórico que utilizamos foi aquele de "inconsciente", pelo fato de sua utilização ultraar a estrita teoria psicanalítica e participar de outras linhas psicoterápicas (se não da cullura geral), o que justifica, ao nosso ver, a sua inclusão em nosso delineamenlo. Este de modo algum visa uma doutrinação em benefício de uma ou ouira linha de atuação, seja ela psicanalítiea ou não, mas submete um conjunto de elementos à reflexão do (futuro) profissional, como incentivo para questionar-se sobre as implicações da sua prática. Acreditamos que destarte, ele será melhor preparado para ter consciência das dificuldades deste seu trabalho, para adquirir as qualificações desejáveis, e para poder exercer as suas funções de psicoterapeuta.
Bibliografia e notas í. Ver a respeito o livro de FRANK, J. D. Persuasion and Healing. A comparative Study of Psychotherapy. (Baltimore & London, John Hopkíns Press, 1973), onde O auior analisa as influências persuasivas (e moralizantes) operando em praticamente todos os processos de cura, opondo-se ã "desmoralização" sofrida pelos pacientes. 2. Desenvolvemos esta ideia num irabatho escrito em. comemoração ao centenário d;i "psicologia científica: "A Psicologia Científica: Realidade ou Mito?", publicado em: Psicologia, Ciência e Profissão (CFP), 1/1, pp. 11-37, 1981. 3- Sobre pesquisas em psicoterapia centrada no cliente, encontra-se amplo material bibliográfico nas seguintes obras: — HART, J. T. & TOMLINSON. T. M. (Eds.). New directions in ciient-centered therapy. Boston, Houghton Mifflin, 1970. — WEXLER, D. A. & RICE, L. N. (Eds.). Innovationi in clie/it-centered therapy. New York, Wíley, 1974.
4. A respeito do pesquisas em psicoterapia conjugal e da família, baseadas na teoria da comunicação, a seguinle obra oferece uma visão baslanle completa: GURMAN, A. S. & KNISKER, D. R, "Research on mental and family therapy: progress, perspective and prospect". Em: GARFIELD & BERGIN (orgs.}. Handbook of Psychotherapy and Behavior change: ãtl anpirical analysis. New York, Wiley, Í978. 5. Como obras que discutem as diversas abordagens praticadas no "mercado psí" e íveis na língua portuguesa, podemos citar: — COREY, G. Técnicas de Aconselhamento e Psicoterapia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1983 (Manual americano e prático, discutindo questões básicas e abordando oito linhas psicotfirápicas, comparando-as entre si). — FERREIRA, A. E. & CARNEIRO, T. F. (orgs.). Personalidade e Psicoterapia Hoje. Rio de Janeiro, Zahar Editores 1983 (discute cinco abordagens psicoterápicas numa visão americana, sem aprofundá-las). — BROWN, D. & PEDDER, J. Introdução à Psicoterapia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1981 (aborda apenas a linha psicoiiinániica, numa. visão americana). — FIORINI, H. J. Teoria e Técnica de Psicoterapías. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976 {título enganador: discute tão-somente a psicoterapia breve e as suas aplicações). — WOLMAN, B. B. (org.). Técnicas PsicanaVtticas (3 vol. 1. A Técnica Freudiana; 2. Freudianos e Neofreudianos; 3. As Técnicas Não-Frendi anãs e Técnicas Especiais) . Rio de Janeiro, Imago Editores, 1976 (obra já clássica, bastante aprofundada, mas com contribuições muito heterogéneas). — DEWALD, P. Psicoterapia — Uma Abordagem Dinâmica. Porto Alegre, Artes Médicas, 1981. —• I.ANGE, R. As bases da Psicoterapia. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984. — RIBEIRO, J. P. Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Pctrópolís, Vozes, 1986. Esta enumeração não se pretende exaustiva. A grande maioria destas obras representam
edições meramente comerciais, a ponto de os editores nem se preocuparem em traduzir a bibliografia citada: as obras de referência são sistematicamente citadas em inglês, mesmo quando não foram escritas em inglês (caso das obras de Freud, por exemplo), ou quando já existem traduções para o português ou para o espanhol. Porém, o que é mai<. grave (com execção do livro de Fiorini), é que tanto a concepção geral ito trabalho psicoterápico como os exemplos e estudos de casos se referem tão-somente à realidade americana; especificidades culturais c comparações transculturaís nem sequer são mencionadas. O valor destas obras para o iniciante brasileiro é assim bastante diminuto, a não ser que se queira aceitar o bram-morminu neo-colonialista... 6. BREUER, J. & FREUD, S. Studien iiber Hysterie. Leipzig & Wíen, Verlag Franz Deuticke, 1895. Trad. port.: ESBr., vol. II (1974). 7. JONES, E. Obra e Vida de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Zahar, 1975. 8. Trata-se de um dos "Artigos sobre Técnica", a saber "Zur Einleitung der Behandlung" (1913), em: Gcsammclte Werke VIII, 454. Trad. port.: "Sobre o inicio do tratamento", em: ESBr. vol. XII, pp. 164-187. 9. Ver, por exemplo: EYSENCK, H. J. Personality, learning and "anxiety", cm: EYSENCK, H. J. (org.). Handbook of abnormal Psychology (2nd ed.). London, Pitman, 1983; ou ainda a obra recente do mesmo autor, com um título significativo: The Decline and Fali of the Freudian Empire. London, Viking Pcnguin, 1985. 10. WOLMAN, B. B. (org.). Handbook of Clinicai Psychology. New York, McGraw Hill, 1965. 11. WOLBERG, L. R. The Technique o, Psychotherapy. New York, Grune & Stralton, 1967! (2 vol.). Assinalamos que este autor cita, no primeiro capítulo da sua extenua obra, nada menos do que 26 definições diferentes sobre psicoterapia, tiradas de obras de autores americanos que se estendem de 1942 até 1965.
12. GARFIELD, S. L. & BERGIN, A. E. (orgs.). Handbook of Psychotherapy and Behavior Change. New York, Wiley, 1978. 13. SCHRAML, W. J. & BAUMANN, U. (orgs.). KlMsche Psychologie. Band I: Theorie und Praxis; Bern, Vcrlag Hans Huber, 19J3*. Band II: Methoden, Ergebnisse und probleme der Forschung; id-, 1974. 14. PONGRATZ, L. J. (org.). Klinische Psychologie. (vol. 8 do "Handbuch der Psychologie"). 2 Halbbiinde. GÕttingen, Verlag fur Psychologie Hogreffe, 1917 e 1978. 15. SCHNEIDER, P. B. Propédeutique d'une Psycholherapie. Paris, Payot, 1976. 16. FIORINI, H. J. Teoria e Técnica de Psicoterapian. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976. 17. STROTZKA, H. (org.). Psychotherapie: Grundíagen, Verfahren. Indikationen. Miinchen: Urban & Schwarzenbcrg, 19782. (A opinião citada encontra-se na introdução do organizador do volume, representativo do pensamento do Instituto de Psicoterapia da Universidade de Viena; o autor a cita píira precisamente criticá-la). 18. MELTZOFF, J. & KORNRE1CH, M. Research in Psychotherapy. New York, Atherton Press, 1970. 19. Um autor como COREY (op. cit. na nota (5) ) ressalta involuntariamente esta ividade, quando recusa a noção de "paciente" por causa da sua "orientação iva", dizendo que prefere o "uso do termo cliente, ao referir-se à pessoa que recebe assistência psicológica", (p. 22). Ora, quem "recebe" assistência não é menos ivo do que o "paciente"; apenas se situa fora do campo médico ou clínico. 20. A título de exemplo da confusão entre psicoterapia e aconselhamento, podemos citar mais uma vez o livro de COREY (op. cit. na nota (5) )q»e, já pelo título, junta aconselhamento e psicoterapia. De fato, tenta precisar estas nomenclaturas, mas encontra dificuldades; aconselhamento {operado pelo "orientador" ou "conselheiro", traduções adotadas pelo tradutor brasileiro, v. nota da p. 17 da obra) refere-se, segundo o autor,
99
"ao processo através do qual se dá oportunidade aos clientes de explorarem preocupações pessoais", com o objetivo de "auxiliar o indivíduo a descobrir os recursos de que dispõe par;i «ma vida mais produtiva". Psicoterapia, no entanto, "focaliza processos inconscientes e preocupa-se com mudanças na estrutura da personalidade" (pp. 22-23). Ambas, no entanto, tratam de "crises existenciais particulares", sem referência à psicopatologia nem ao campo clínico. E o autor acrescenta: "muitas vezes uso estes termos juntos — e às vezes até mesmo tomando um pelo outro". O aconselhamento, nascido da linha humanista-existencial na psicologia americana, evita as referência clínicas e, como aparece no caso citado, nem as atribui à psicoterapía; invocar as crises existenciais como sendo situações de conflitos onde aparecem as micro e macropatologias de cada um está fora de moda, poderia chocar,.. Um outro trecho da mesma obra deixa islo claro: "cada vez mais, o aconselhamento e a terapia são encarados como veicuios de aulo-exploraçáo, a fim de assistir pessoas 'normais' na realização mais plena de suas potencial idades. Minha clientela é constituída sobretudo POT uma população relativamente sadia..." (p. 19). Tais afirmações de um profissional não deixam de chamar a atenção — como se o "anormal", o patplógico não fizesse parte do campo psicológico e psicoterápico. Podem-se encontrar exemplos semelhantes em outros trabalhos sobre aconselhamento. 21. Ver a respeito: ROCHEBLAVE-SPENf.E, A. M. Psicologia do Conflito. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1974. A autora apresenta uma análise histórica da concepção conflituosa do homem, em linhas filosóficas, psicológicas e psicanalíticas. 22. Ver a respeito: BUCHER, R. O valor estrutural do "Complexo de Édipo". Aller — Jornal de Estudos Psicodinâtnicos (Brasília) 12/1, pp. 25-44; 1982. Neste trabalho, seguindo as ideias desenvolvidas por E. ORTIGUF.S no seu "Édipo Africano" (Paris, Plon, 1966), analisamos o complexo de Édipo em suas implicações psicoló100
gicas e antropológicas, no que diz respeito à sua presença na cultura c na clinica de hoje. As abordagens psicológicas do Édipo, focalizando os sentimentos, as atitudes ou as fases genéticas, tentaram contornar a dificuldade de FREUD cru fundamentar melhor a sua teoria, devido à insuficiência da ideia de simbolísmo social da qual podia dispor em. sua época — contorno pelo qual se pagava o preço do abandono da especificidade do inconsciente, instituído pelo Édipo. É a concepção estrutural, baseada no simbolismo social da linguística e da etnologia, que permite a elaboração teórica do alcance antropológico do Édipo c da sua conexão com a linguagem. O valor estrutural do Édipo consiste nisso: estruturar o advir do sujeito e a sua convivência em sociedade. 23. Ver a respeito: ARGELANDER, H. Das Etttinterview in der Psychotherapie. Darmstadt: Wisscnschaftliche Buchgescllschaft, 1970. O autor distingue entre três fontes de informação, objeliva.s, subjetivas e situativas e desenvolve a partir daí considerações interessantes sobre a dinâmica e a "psico-lógica" que intervêm nesta "situação de diálogo descomum". 24. Concernente à noção de desejo na psicanálise, Indicamos: — GARCTA-ROSA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1984, em particular os capítulos III (O Discurso do Desejo: A Interpretação de Sonhos) e VI (O Desejo). — CARIOU, M. Freud e o Desejo. Rio dá Janeiro, Imago Editores, 1974. 25. A este respeito, consulte-se com proveito; WATTS, A. W. Psicoternpiii Oriental e Ocidental. Rio de Janeiro, Record, 1974. 26. A respeito da importância da linguagem no desenvolvimento humano, consulte-se com proveito — LADRIÈRE, J. A Articulação do Sentido. São Paulo, EDUSP, 1978. — ORTIGUES, E. Le Dhcours et !e Symbote. Paris, Aubier-Montaigne, 1962. — LEMAIRE, A. Jacques Lacan — Uma Introdução. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1979. (Sobretudo partes 1 e 2).
1
Capítulo 4
As diversas relações psicológicas e psicoterápicas
Após a nossa tentativa de delinear teoricamente, islo é, como princípios gerais e sem referência direla à prática, a relação psicoterápiea como ela "deveria" funcionar, cabe-nos agora a tarefa de comparar estes princípios com a realidade clínica que nos circunda. Todavia, 86 o nosso esboço geral lem alguma pertinência, implica certas consequências: não devemos nos ater apenas a comparação com aquilo que exíslc ao nosso redor, mas proceder também a uma avaliação das diversas relações psicológicas e/ou psicoterápicas, para ver até onde elas correspondem à nossa definição. Não se traia nislo de uma petitio principiam, mas da mais coerente aplicação possível das ideias e desenvolvimentos anteriores à atuação clínica do profissional em psicologia, para que esta corresponda aos critérios mínimos de cientificidade c ética que chegamos a definir. Com efeilo, exislem em nosso "mercado psi" muitas atuações diferentes c que nem sempre se coadunam com os princípios que discutimos. Não preten-
demos incriminá-las, afaslando-nos de qualquer veleidade moralista. Não obstante, faz-se mister proceder a esta comparação e avaliação no interesse de itma delimitação clara das diversas formas de atuação clínica, bem como das suas possíveis interfaces ou, ao confrário, oposições. Trata-se de reconhecê-las quando existem, em proveito de desempenhos coerentes e responsáveis, já que não é possível mesclar quaisquer princípios ou, pior ainda, querer abrir mão deles totalmenle. Neste sentido, pois, podemos dizer que a relação psicoterápiea que idealizamos, corresponde a uma relação extrema ou "pura" que nem sempTe está presente nas diversas relações psicológicas. Distinguiremos uma série de nove relações interpessoais. Veremos que somente a última combina plenamente com as nossas esiipulações sobre a relação psicoterápiea como sendo uma "relação interpessoal subjetiva". Apoiamo-nos nesta análise na obra de Schneider(l), mas dis101
Capítulo 6
O processo psicoterápico
Repetidas vezes falamos já do processo ou dos processos que se desenvolvem nas diversas relações psicológicas ou psicoterápicas. Cabe agora definir o que emendemos por processo especificamente psicoterápico — especificidade que, esperamos, ficou clara a partir das características estipuladas para que haja relação interpessoal subjeíiva. Para proceder a esta definição, nada melhor do que analisar as implicações "processuais" destes três termos, bem como de todos os lermos invocados anteriormente na tentativa de esmiuçar os ingredientes da relação psicotenípica.
6.1. Definição de "processo" e sua aplicação à psicoterapia No capítulo 3, propusemos alguns delineamentos do campo psicoterápico, a serem completados agora com vistas à mais precisa apreensão possível daquilo que efetivamente "se a" na prática clínica. Refletir sobre a noção de "pro-
cesso", comumente usada hoje em dia, nos oferece esla oportunidade. De fato, se esta noção se tornou corriqueira para designar as diversas práticas psicológicas, não quer dizer que o seu sentido e as suas implicações sejam realmente claros. É o caso notadamente dos famosos "processos de mudança", vocábulo que se alastrou e se impôs para caracterizar o conjunto das "intervenções" objetivando modificações, seja do comportamento, seja de determinadas atitudes ou mesmo da "estrutura da personalidade". Para que não se torne, pois, um chavão impertinente, faz-se mister defini-lo adequadamente. Semanticamente, a noção de processo c complexa e implica desdobramentos que merecem a nossa atenção. Deixando de lado os aspectos jurídicos ou físicos, salientamos, em primeiro lugar, o aspecto dinâmico: processo é algo ativo, algo em marcha, em curso para uma determinada meta. Por conseguinte, inclui uma determinada temporalidade, uma duração ou um prazo, isto é, uma "su137
cessão de estados" que comporta uma conotação evolutiva e, de fato, já alguma referencia a mudanças. De acordo com o Aurélio, processo representa "uma sequência de estados de um sistema que se transforma", o que envolve, além das noções de evolução e de mudança, aquela de um conjunto organizado ("sistema") que sofre alterações dentro de uma certa continuidade. A este conjunto pertencem fatos que detém uma certa unidade, incrementando fenómenos caracterizados por um certo ritmo, uma regularidade mais ou menos previsível e uma lógica (evolutiva) interna. Um processo não é, pois, um fenómeno aleatório. Ele obedece a leis que determinam sua ocorrência e a regras que presidem o seu desenrolar efetivo. Ele se deixa estimular, desencadear ou dirigir mediante determinados métodos ou técnicas — deixa-se pois manipular de fora, embora se desenvolva segundo uma lógica própria, que limita o impacto da manipulação externa. Por conseguinte, sua evolução detém uma certa autonomia, relativa, c verdade, mas que é preciso respeitar se se quiser atingir mudanças autênticas — isto é, mudanças que se coadunam intrinsecamente com a natureza íntima do conjunto sistémico que sofre a intervenção. Aplicando estas considerações abstratas agora ao ser humano, portador dos processos de mudança em pauta, podemos dizer, cm primeiro lugar, que o conjunto organizado, que inicia movimentos sequenciais, consiste na unidade bíopsicossocial do homem. Para que uma mudança seja autêntica, essa unidade, portanto, tem que ser respeitada em suas características íntimas, ou seja, antropológicas, no sentido mais amplo. Encon138
tramos, assim, mais uma vez a importância da imagem do homem, subjacente ao imenso leque de intervenções realizadas sobre o homem; deixamos para a reflexão de cada um estimar até que ponlo estas diversas intervenções respeitam tanto a complexidade quanto a dignidade humanas, provocando aqueles processos de mudança prelensamentc benéficos para e l e . . . Em seguida, podemos dizer que, no ser humano, a dinâmica dos seus processos psíquicos (porque podemos tratar apenas destes, e não dos processos biológicos ou sociais, embora interdependentes) pressupõe todo o movimento existencial do conjunto histórico de sua vida. Ela está inserida, pois, inevitavelmente, entre os pólos ontológico e ônlico de sua existência e participa da transitoriedade que o caracteriza como ser finito e histórico (v. acima, 5.3.). Isto deverá ser levado em conta quanto ao acompanhamento (ou eventualmente à direção) desles processos era psicoterapia. Veremos mais adiante as propriedades desta transitoriedade nas três fases específicas do seu desenrolar. Fará que haja realmente um processo na psicoterapia, nos sentidos dinâmico, evolutivo c modificador, esta, sustentamos, tem que se engajar como relação interpessoal subjeliva. Melhor: esta relação tem que obedecer a certas regras (mínimas) para que se inicie aquele processo que chamamos (por falta de uma palavra mais adequada) de "curativo". Esmiuçando, chegamos então à conclusão (óbvia, mas a ser reafirmada com força) de que este processo só será desencadeado se: 1.°, se estabelecer uma relação (psicológica) entre os participantes que se comunicam; 2°, se esta rela-
ção não se limitar a contatos superficiais, como trocas òe informações, amenidades sociais ou conversa de atempo, mas tornando-se realmente "interpessoal", possibilitando intercâmbios profundos (embora assimétricos); 5,°, se chegar a tocar e mobilizar a subjetividade de cada um, propiciando o afloramento do material conflituoso subjetivo do paciente e proporcionando atitudes de intervenção adequadas da parte do terapeuta. Sc estas três condições são reunidas — e pode custar muito para se chegar a isto •— então um processo curativo pode iniciar-se. Podemos falar assim de pré-requisitos formais, indispensáveis para que haja processo de mudança, isto é, para que haja um processo verdadeiramente psicoterápico que leve a mudanças profundas, que provoque alterações incisivas na existência da pessoa, na maneira de se enxergar a si mesma, de perceber os outros e de descobrir (novos) sentidos de vida.. .
tar disposto a se relacionar, mas tem que se ser também capaz de fazê-lo! E isto, o paciente na maioria das vezes não o é; pelo contrário, é por causa das suas dificuldades em se relacionar com outrem, da sua "carência relacional" que procura em geral a ajuda da psicoterapia. . . Esta capacidade, no entanto, nunca falta totalmente, como já frisamos, e se deixa desenvolver, mediante estimulações pertinentes por parte do terapeuta; a partir de uma disposição básica de se trabalhar (isto é, de se questionar a si mesmo) e de um mínimo de "rclacionabilidade", o trabalho (mas talvez não ainda o processo) psicoterápico pode iniciar-se e pode lentamente crescer, um volume de trocas e qualidade de conteúdos.
Preenchidos, pelo menos parcialmente, estes pré-requisilos básicos, é que o acordo pode ser selado, de modo informal, primeiro, e mais formal em seguida (sob forma de "contrato terapêutico", ver b.2.). Este acordo consiste no conDe maneira menos formal, podemos sentimento mútuo em trabalhar juntos, afirmar que somente haverá processo cada um dando o melhor que puder papsicoterápico, se existir uma disponibili- ra que este trabalho seja bem-sucedido. dade de ambas as parles para trabalha- Este "bem-sucedido", no entanto, referem juntas e para se engajarem pessoal- re-se aos objetivos a serem alcançados mente, com um máximo de abertura e na reta final da terapia; cabe portanto de sinceridade por parte do paciente, defini-los no interior do acordo que se com um máximo de aceitação e de serie- esboça, para que ambos concordem quandade profissional por parte do psicote- to ao rumo geral que tomará o trabalho. Este se desenvolverá dentro de um derapeuta. Embora respeitando os papéis terminado campo de realidade, que tem, específicos de cada um, esta disponibilisem dúvida, uma consistência própria, dade básica para se relacionar em procspaço-iemporal, mas que não consiste fundidade tem que estar presente em amem uma redoma — não deve consistir bos para que se chegue a um acordo nisto para não correr o risco de afastar e, em seguida, a um contrato. o paciente demasiadamente do seu amEste acordo, no entanto, é dificulta- biente habitual. Em suma, para não aliedo por causa de uma premissa que ra- ná-lo mais ainda, visto que já denota diramente está preenchida: não basta es139
fículdfldes específicas cm se relacionar em sua vida cotidiana. Apresentado deste modo, percebe-se que o processo psieolerápico não pertence a uma realidade radicalmente "outra", isolada do "resto" da vida do paciente. Ele não visa subtraí-lo dos seus afazeres comuns, oferecendo-lhe um ambiente particularmente aconchegante ou acomodador, nem a prometer-lhe facilidades nas tarefas de manter <; desenvolver os diversos aspectos de sua integração social. O que nele e graças a ele se torna possível, é o auloconjwnto do paciente; aí ele estará protegido das consequências nefastas que um tal confronto poderia acarretar se ocorresse em uma vida comum, mas nem por isso estará vacinado quanío ao sofrimento que ele implica.
no desenvolvimento deste autoconfronto, ritmado segundo as possibilidades do próprio paciente, ou seja, nas sequências dinâmicas do seu trabalho contínuo de se revelar a si mesmo, de se entregar, de se abrir, de se questionar e se esquadrinhar para chegar à meta geral, aquela, simultaneamente, de se libertar dos seus conflitos mais íntimos, de se conhecer melhor e de melhor se integrar consigo mesmo. Parece-nos difícil definir melhor o que "é" o processo psicoterápico. A definição que apresentamos é ampla e descritiva, mas baseia-se em todas as nossas reflexões anteriores acerca da "essência" do trabalho que, nela, idealmente se efetua. "Processo", pois, está intimamente ligado a esta noção de "trabalho" que já discutimos repelidas vezes -— o que significa que., na ausência deste trabalho (na mera "curtição", por exemplo), não se instaura aquele processo pelo qual o material conflituoso 6 tocado e elaborado, segundo encadeamentos próprios a cada psicoterapia, naquele "caminhar juntos" tão singelo que a torna efetíva e eficiente.
De fato, se o campo de realidade do processo psicoterápico oferece uma certa proteçào contra invasões alheias, ele não é um campo asseplizado, e muito menos um campo cor-de-rosa, mas propriamente um campo de batalhas, a serem travadas peio (e contra) o próprio paciente. . . Há processo, de fato, a partir do momento em que o acordo entre Vejamos então o que "se a" nas os dois existe, em que há um entendidiversas fases que se deixam distinguir, mento recíproco para proceder a este esquematicamente, em todas as psicoteconfronto — a partir do momento, pois, rapias. em que há disposição para verbalizar "tudo", inclusiva o mais recôndito e o mais subjetivo, e, de oulro lado, em ouvir tudo, em aceitar todo e qualquer ma- 6.2. A fase inicial do processo psicoterápico terial proveniente do paciente, sem discriminação, sem preconceitos e sem julMuito se tem escrito sobre a fase gamentos. inicial da psicolerapia, cm particular soMas se é desta forma que o processo bre as entrevistas iniciais. Como a litepode iniciar-se, ele consíte em quê? Eis ratura sobre entrevistas psicológicas é pois a definição do processo psicoteráabundante(l), ressaltamos aqui apenas pico que estamos devendo: ele consiste alguns aspectos que nos parecem rele-
vantes quanto à situação clínica de tais entrevistas, aspectos não ou insuficientemente abordados nas publicações do género. Discutiremos três aspectos: a entrevista clínica propriamente dita, a questão do psicodiagnóstico, o contrato terapêutico. Um quarto aspecto, capital, aquele da indicação para psicoterapia, merece ao nosso ver um capítulo a parte. Os primeiros contatos entre um psicoterapeuta e um candidato à psicoterapia nem sempre têm as características formais de uma entrevista clínica. É possível tratar-se de um encontro ocasional ou meramente informativo. Mas, se o candidato insistir em seus desígnios, eles terão que chegar a uma entrevista mais formal, de caráter exploratório, aprofundado e subjetivo. Eís talvez a propriedade decisiva para que uma entrevista psicológica possa ser considerada como clinica: que atinja a dimensão subjetiva do candidato (que doravante podemos chamar de paciente), ultraando o nível da polidez social ou aquele da objetividade, desejável em entrevistas de seleção ou outras. Eis, evidentemente, a nossa visão da entrevista clínica. Outras abordagens enfatizam a necessidade de se chegar a um máximo de dados objetivos, recusando ou negligenciando os fatores subjetivos e a interação entre os atores. Valorizar este ou aquele fator, corresponde a uma opção do profissional, realizada cm função do seu credo pessoal. De fato, em toda entrevista deixam-se distinguir três tipos de informação (v. Argelander) (2), sempre presentes, mas cuja utilização depende dos valores e interesses do entrevislador. Trata-se de in-
formações objetivas, subjetivas e situativas. As informações objetivas relacionam-se com fatos: dados pessoais, biográficos, acontecimentos da história de vida, características salientes da personalidade etc. Estes dados se deixam comprovar e podem ser estabelecidos com relativa precisão. O reconhecimento, no relato do paciente, de certas constelações de dados, repetições, ciclos, periodicidades e conexões, permite determinadas inferências psicológicas. Estas, baseadas na experiência clínica e no saber teórico do praticante, correspondem a hipóteses acerca da origem e do sentido da problemática apresentada pelo paciente. Tais indagações evidentemente são plurívocas, embora com um grau variável de pertinência lógica, dependente das combinações efetuadas entre os dados (certos) e as inferências (conjecturais). A imagem da personalidade, a afeiçoar a partir das informações objetivas, constitui mais uma reconstrução, um "clichê" do que uma imagem fiel e personalizada do paciente. As informações subjetivas contidas no relato do enlrevistante referem-se a vivências, experiências, recordações e impressões subjetivas, sem nenhuma possibilidade de comprovação objetiva. Os dados invocados são incertos. O que conta são as significações pessoais que o paciente lhes atribui. A categoria de certo ou errado é aqui inoperante, uma vez que não existem critérios externos para julgar: o paciente "senle" que tal ou tal evento de sua vida tem para ele tal ou tal significação, e sobre significações pessoais não cabe discutir. Ademais, as significações que as constelações do ado detém para ele fazem precisamente
140 141
parte da problemátíea pela qual está à procura de uma ajuda e de uma mudança; cabe ao processo de terapia promover esta mudança, a ponto de alíerar as significações que atribui a sua vida, mas não cabe ao enirevistador discuti-las. Não se trata, pois, de querer convencê-lo quanto a inadequação de sua visão de si mesmo, de sua vida e do mundo — disto ele próprio frequentemente tem consciência, sem que consiga mudá-la. Somente a investigação em conjunto permite esclarecer os ponfos conflitantes desta sua visão e a não convergência do objetivo e do subjetivo, da quaí resulta a sua psicopatologia pessoal. Esta é tarefa não das entrevistas iniciais, mas da psicoterapia a seguir. As informações subjetivas, portanto, não são comprovadas, mas elas são unívocas: para o paciente, "é isso aí" que está sentindo (por exemplo, que sua mãe nunca o limou. . .), c não há dúvida quanto à realidade subjetiva desta sua queixa; porém, eis todo o problema do estatuto desta realidade "interna", ou seja, da "realidade psíquiea"(3), entronizada por Freud como campo de atuação clínica da psicanálise, mas também da psicoterapia como nós a entendemos. Mais uma vez, pois, a valorização do subjetivo (ou não), das suas significações, desejos e fantasias, decorre da opção pessoal do profissional — só que não se pode negar a importância das significações pessoais para o próprio paciente sem que lhe seja feita violência. . . As informações situaiivas são ligadas ao eenário, à situação ambiental, ao conlexto global da entrevista. Elas contêm poucos dados, são dominadas pela vivência atual, "aqui e agora" e, deste modo, não se podem reproduzir, sendo que ca142
da situação de entrevista (ou cada sessão de terapia) é inevitavelmente única. Para que se possa falar em informações, faz-se necessária sua captação, o que se torna possível através da personalidade do enirevistador, da sua experiência clínica e de sua perspicácia quanto às mensagens infraverbais transmitidas pelo paciente, além ou aquém dos seus propósitos explícitos. Tais informações, quando perceptíveis, são produto dircto da interação que se estabelece, e contém indicações valiosas sobre a capacidade relacional do paciente. Todavia, tais indicações também não devem ser superestimadas, uma vez que a situação de uma primeira entrevista é altamente constrangedora, podendo suscitar bloqueios diversos e, por conseguinte, dificultar a expressão mais livre e espontânea do paciente. As Ires fontes de informação são complementares e, de fato, indispensáveis se se quer chegar a uma imagem abrangente, tanto da pessoa quanto de sua problemática. Quando cias são integradas, a fidedignidade e o valor das informações crescem, permitindo que o entrevistador tire conclusões pertinentes quanto ao diagnóstico e à indicação terapêutica. Voltando à questão das dificuldades do paciente em se "abrir" e se "entregar" nas primeiras entrevistas: insiste-se muito, hoje em dia, sobre a importância da habilidade do entrevistador, de sua empatia, de seu calor humano para ajudá-lo a superar inibições ou reticências. Este aspecto nos parece bastante relativo, representando mais uma duvidosa faea de dois gumes do que um instrumento realmente eficaz. Sem dúvida, o entrevistante tem que ehegar a superar
nas entrevistas iniciais, de modo que a suas dificuldades, mas não pode ser forlinha teórica adotada determina necessaçado, e nem sequer "seduzido", para riamente a condução destas. que consiga isto, A entrevista clínica Em termos gerais, defendemos, porcorresponde a uma situação "livre", ontanto, a concepção da não-diretividade, de os bloqueios do paciente merecem rescomo sendo a mais adequada para a peito, tanto quanto as suas verbalizaatuação do psicólogo clínico na entreções. Não se trata pois de invadi-lo com vista. Contudo, existem várias maneiras o intuito de "ajudá-lo" ao máximo; a ati- de praticá-la, em concordância com a tude de uma expectativa prudente é mais personalidade do profissional, com a siadequada, ficando-se à sua disposição, tuação concreta da entrevista (pacifica, respeitando os seus silêncios e tentando agressiva, angustiante...), com a proentender os sentidos das difieuldades que blemática, a idade, a especificidade do apresenta. paciente e assim por diante. Deste moNo entanto, a decisão quanto a uma do, não parece possível, nem desejável, atitude mais ativa ou mais iva, mais estabelecer regras sobre a forma de atuar intervencionista e "ajudante", ou mais nas entrevistas iniciais •—• além daquela, de expectativa, dependerá de uma deci- fundamental, de estar disposto a ouvir o são mais fundamental, teórica e tecnica- outro. Como, concretamente, esta dispomente, a saber, quanto a uma aborda- sição se exterioriza, eom maior ou megem diretiva ou não-diretiva. Este últi- nor participação, distãneia, calor ou inmo termo fez sucesso a partir da divul- tervenção, cabe a cada profissional degação das ideias de Rogers (4) sobre a cidir, sendo que esta sua decisão vai sem importância da "não-diretividade" no tra- dúvida mudar de uma entrevista para outo com o cliente (posteriormente trans- tva, mesmo com um arcabouço teórico formada cm "terapia centrada no clien- firmemente estabelecido. te"). Contudo, historicamente (mas tamUm aspecto particular das dificuldades bém teoricamente), a não-diretividade imque enfrenta o paciente nas entrevistas plica mais, a saber, o afastamento que iniciais decorre da questão da confiança. Freud operou da sugestão e da hipnoNo início, esta raramente é total, mas se (5), à procura de um instrumento mais condicionada pela expectativa geral quaneficaz (e mais ético) de intervenção psito à pessoa do psicoterapeuta, quanto à coterápica. sua competência, sua seriedade ou sua Bem antes de Rogers, a não-dirclivida- reputação. O crescimento desta confiande correspondia pois à mudança profun- ça não pode ser forçado; o terapeuta da introduzida por Freud, coincidindo tem que merecê-la, o que não é uma (ver 3.2.) eom a preocupação por uma questão de sedução, nem de empatia, aiuação psicoterápica científica. Até ho- nem de sugestão. Nenhum artefato será je, então, a opção pela abordagem di- capaz de conquistar a confiança de maretiva ou não significa uma opção em neira duradoura; ela será determinada termos teóricos, antropológicos e éticos, pela autenticidade da postura do teracom conseqiiêneias cruciais para a intera- peuta — e esta não se deixa adquirir ção entre psicoterapeuta e paciente — mediante técnicas de treinamento, de consequências estas que se delineiam já 143
persuasão ou de "relações humanas". Neste sentido, o aprendizado técnico do candidalo a terapeuta encontra limites, estabelecidos pelas características pessoais necessárias para o exercício destas funções (ver 3.6.). Se é verdade que ninguém nasce psico terapeuta, não é menos verdade que a autenticidade de sua postura corresponde a uma questão de personalidade que não st; deixa adquirir. Na atitude do entrevistador (ou do terapeuta) diante do entrevistante, a disposição de aceitá-lo integralmente, de ouvi-lo e de trabalhar com ele futuramente é fundamental. Idealmente, pois, o clínico não deveria operar nenhuma seleçfio entre os candidatos a terapia. Não deveria ter preferência, preconceitos ou ideias preconcebidas que poderiam enviesar a sua disposição em aceitar todos aqueles que o procuram. Mas um tal ideal de perfeição e de abertura incondicional não existe: o clínico é um ser humano, com todas as suas falhas e defeitos. Estes nunca se deixam eliminar totalmente, mas ele tem que ter consciência deles, tem que se conhecer mediante o longo processo de sua formação pessoal, e tem que aceitar os próprios limites. .. Se é possível treinar esta disponibilidade, ela encontra limites na fronteira de sua personalidade, ou seja, no ser humano que ele é •— mas estes limites são elásticos, e cabe a ele alargá-los na medida do possível, para que possa realmente colocar-se à disposição dos pacientes que o consultam. No entanto, "colocar-se à disposição do outro" não significa ter que se envolver com ele. As nossas reflexões sobre distância e dependência deixaram isto claro. Toda disposição autêntica em 144
aceitar o outro é criadora de uma relação humana autêntica, base, como já vislumbramos, de todo processo terapêutico verdadeiro. Se há em toda relação troca de afetos e envolvimento afetivo, isto se efetua sempre muito mais do paciente para o terapeuta, sendo que este, para poder dirigir o trabalho dos dois, tem que controlar a sua própria afetividade, mesmo que esta esteja tocada profundamente. Não se traia pois de "mergulhar fundo" a dois para que haja um "pleno encontro humano", mas de garantir a assimetria com vistas à iniciação de um processo psieoterápico que confronte o paciente consigo mesmo; ao invés de querer implementar gratificações para ambos, a postura do entrevistador-terapeuta é responsável pela implementação de condições de possibilidade para um futuro trabalho terapêutico. Uma vez assegurada a disposição básica, faz parte das funções do entrevistador, alem de ouvir atentamente —• sem querer fazê-lo demonstrativamente, como para demonstrar que "está disposto" a aceitar tudo —- a escuta seletiva, operando a triagem entre os vários tipos de material aos quais já nos referimos. Assim, a discriminação entre o consciente c o inconsciente, entre o real e a fantasmático, entre o presente e o ado é indispensável para discernir a problemática do paciente, em suas vinculações íntimas com sua personalidade c sua história de vida. Se esta escuta deve operar ao longo do processo psieoterápico, ela se reveste de uma importância particular nas entrevistas iniciais, pois tem que levar o entrevistador a um diagnóstico, um prognóstico e uma indicação terapêutica.
Para estabelecer o diagnóstico, a investigação da história de vida do paciente é fundamental. Com efeito, é através da ilnamnese, não somente dos seus distúrbios psicopatológicos, mas do conjunto das suas vivências, que vai ser possível chegar a uma visão abrangente, importante em particular quanto à concatenaçao entre o desenvolvimento histórico do paciente (e dos conflitos que aí se arraigam), e os seus sintomas e queixas. Há várias maneiras de praticar esta anamnesc: sistematicamente, superficialmente ou dinamicamente adaptada aos relatos do próprio entrevistante. Os três tipos de informação mencionados oferecem, juntos, pistas para proceder a esta investigação, em combinações variáveis segundo as atitudes diretivas e não-dirctivas do entrevistador. Contudo, mesmo optando prioritariamente pela concepção não-diretiva, a anamnese requer algumas investigações mais diretivas, sobre a composição familiar e os antecedentes, por exemplo, se se quer chegar a uma visão razoavelmente completa. Cada entrevistador terá que fazer a sua "mistura" pessoal, no que tange às duas atitudes e suas combinações. Dependendo da linha teórica do entrevistador, o seu diagnóstico será descritivo, nosográfico ou estrutural, será baseado mais nos sintomas apresentados ou nos conflitos inferidos, ou será mesmo inexistente... De fato, é possível justificar, mediante certas acrobacias argumentativas, a inexistência de um diagnóstico ao final de uma avaliação inicial, apresentando-o como desnecessário ou supérfluo. Porém, ao proceder desta forma, esquece-se da importância de um procedimento rigoroso, tanto na avaliação diagnostica
quanto na condução da psicoterapia a seguir; esquece-se que para que haja um plano terapêutico possível, precisa-sc de indicações nítidas e de visões, se não claras, pelo menos bem delimitadas; esquece-se, afinai, que não existe nenhuma psicolerapia abrangente, capaz de tratar todos os pacientes e todas as problemáticas como se dispusesse de uma chave universal, de uma panaceia para todos os males oriundos da soltura da caixa de Pandora. Uma tal crença, além de frisar a irresponsabilidade, decorre de uma superestimação dos próprios poderes, o que muito tem a ver com a onipoténeia infantil, mas pouco com uma atitude madura e reflexiva de discernimento — além de descobrir, muitas vezes, uma falta grosseira de competência clínica. Em nosso entender, pois, o diagnóstico necessariamente faz parte do pensamento clínico, também em psicologia. Não vemos nisto nenhuma contaminação pelos ideais médicos, mas uma consequência lógica da nossa definição da atividade psicoterápica como pertencente ao campo clínico — que ultraa as aplicações da medicina, como insistimos acima (ver 3.4.). Como concrelamcnle este diagnóstico se efetua, dependerá de cada linha teórica e dos critérios estabelecidos pelo seu rigor interno, razão pela qual não insistimos sobre os diversos procedimentos possíveis. No âmbito da psicologia clínica, este diagnóstico será sempre um psicodiagnóstico. Todavia, esta palavra tem uma conotação especial, uma vez que se tornou sinónimo de "diagnóstico por testes psicológicos"(6). Estes representam hoje uma ampla área de pesquisa e de aplicação, eslendendo-sc da psicometria aos 145
(estes projetivos e às situações lúdicas. De maneira informal, a entrevista inicial faz parle do psicodiagnóstico, visto que consiste na investigação e exploração da problemática e da personalidade do consuitante, com afenção especial dirigida para a anamnese. Mas, como não recorre a instrumentos particulares para chegar aos seus objetivos, não se encaixa nas técnicas formais desenvolvidas a partir de pressupostos teóricos próprios.
lídade da existência do paciente, ada pelo crivo dos critérios da avaliação clínica. Indicação terapêutica e prognóstico dependerão da pertinência desta reflexão, assegurada quando baseada em alicerces teóricos firmes e solidamente assimilados. Bstes representam a melhor garantia para que não se chegue a um mero ato de rotulação.
Como último elemento da fase inicial A discussão destas técnicas de exame do processo psicoterápico, faz-se necesou avaliação psicológica ultraa nossário discutir a questão do contrato. Se sos propósitos. Remetemos à abundante o acordo entre ambos representa a conliteratura especializada no assunto. dição sitie t/ua non para que se inicie Enfatizamos tão-somente que estas técnicas, quão válidas que sejam, não ultra- um processo psicoterápico -— acordo que am o valor de instrumentos auxilia- nunca é puramente intelectual, mas tamres na tarefa de investigação clínica. bém afetivo, tocando profundamente a Elas nunca substituem as entrevistas pes- dimensão da identificação —, o contrasoais, com todos aqueles ingredientes to representa a face externa deste entenque constituem a sua riqueza humana. dimento mútuo. Ele visa regularizar o Como esta riqueza subjetiva é sempre trabalho a ser empreendido pelos dois, prejudicada pelas falhas que fazem par- em uma sintonia que inicialmente já pote desta mesma situação, o recurso a de ser grande, mas que precisa de um técnicas especializadas sem dúvida se enquadramento solidamente estabelecido justifica — mas eis uma questão pes- para aturar as tormentas a vir, ou seja, soal a ser decidida pelo profissional in- para continuar a servir como base afedividualmente. A resposta a esta questão tiva da relação terapêutica. dependerá, mais uma vez, da linha teóO contrato estipula certas condições rica adotada, de sua personalidade, dos do tratamento, as condições mínimas, seus interesses e da situação particular por assim dizer, espaço-temporais e sodeste ou daquele paciente. ciais. Toda terapia de fato dcsenvolveUma coisa, no entanto, nos parece -se dentro de uma determinada tempoóbvia: com ou sem técnicas psicodiag- ralidade e dentro de um espaço, físico nósticas, a avaliação inicial nunca deve- e afetivo. Determina-se onde a psicoteraria desembocar em uma wtulação do pa- pia será efetuada, em que lugar e em ciente. Diagnosticar não consiste em ro- que ambiente. Fixar um ambiente físico tular, mas numa reflexão sobre a pro- estável c importante para a familiarizablemática apresentada. Esta reflexão po- ção e o crescimento da confiança do paderá ser reducionista — embora não o ciente, uma vez que é vivido como uma seja necessariamente — mas tem que extensão do próprio corpo. Neste sentiabarcar, tanto quanto possível, a globa- do, representa um importante elo de liga-
Em casos mais graves, mudanças do espaço físico são vividas como perdas importantes ou como mutilações do próprio corpo. De fato, o espaço físico nunca é "neutro", mas toca sempre a imagem inconsciente do corpo c, como prolongamento, determinadas fantasias condicionadas por esta. Para não estimular tais fantasias — que sempre envolvem também o corpo do terapeuta — é importante que o espaço físico não seja demasiadamente aconchegante: ele tem que sè-lo suficientemente para o paciente poder sentir-se à vontade, graças a um ambiente discreto e acolhedor, mas não deve querer oferecer conforto ou luxo que faça esquecer a exigência de trabalho, em proveito de "curtições" regressivas quaisquer,
gustiante para ele, inevitavelmente, uma vez que não sabe o que vai acontecer, qual o procedimento, as "normas" do "fazer psicoterapia"; não sabe, em suma, o que "se a" nas sessões que o esperam. Fixar horários contribui, junto com a garantia do ambiente físico estável, para diminuir esta angústia, criando-se assim um continente espaco-temporal seguro e delimitador. De chofre, as sessões transformar-se-ão em algo mais familiar, algo "seu" de que poderá se apropriar progressivamente. Por outro lado, fixar a duração das sessões de psicoterapia — da maneira mais flexível possível — as insere no campo da realidade, cotidiana do paciente: ele sabe que depois de meia hora ou hora inteira, voltará aos seus afazeres comuns, que não ficará "preso", nem será totalmente entregue aos cuidados do psicoterapeuta, com todas as fantasias que esta entrega pode comportar. A continuidade com a sua vida habitual será pois assegurada, as fantasias de ser entregue aos poderes ocultos de um ícrapeuta-curandeiro contidas. . . Simultaneamente, pela fixação da frequência das sessões, será definido o ritmo do trabalho a empreender, estabelecendo aquela continuidade intermitente da qual o processo terapêutico depende para deslanchar.
O segundo fator a ser determinado tange ao aspecto temporal. Podemos distinguir uma micro e uma macrotemporalidade. A primeira diz respeito à fixação das sessões: horário, duração, intervalos, frequência. Determinar estas modalidades, de fato, é uma banalidade, mas detêm significações importantes para o paciente prestes a iniciar a sua terapia. Este início comporta algo de an-
A definição da macrotemporalidade coloca outros problemas, ligados mais aos objetivos da psicoterapia. Fies dizem respeito ã duração global da terapia a iniciar, questão à qual ninguém pode responder com precisão. Com exceção da terapia breve, o termino da ação terapêutica não pode ser previsto, nem pelo mais experiente psieoterapeuta. Se a pergunta do paciente sobre a duração de
ção afetiva entre o terapeuta c o paciente. A sua estabilidade é fundamental para o aprofundamento do processo; cada mudança de lugar, ou mesmo de cenário, de decoração, da disposição dos móveis, pode induzir reações contraproducentes por parte do paciente. Tais reações (por exemplo, sob forma de atuações) sem dúvida se deixam trabalhar, mas podem atrasar o desenvolvimento do processo, ou servir de pretexto para regredir, para justificar reticências particulares e assim por diante.
146 147
sua terapia c compreensível, ela não se deixa responder (a não ser aproximadamente: dois a três anos, por exemplo) e tem que ser devolvida para ele, como símbolo do risco que tem que correr entranhando-se em psicoterapia. Como esta não deixa de corresponder a uma certa aventura, o final não se deixa prever, nem quanto à data, nem quanto à configuração que a existência da pessoa ará a adotar naquela altura. Esta indefinição da duração pode assustar o paciente. Cabe tranquilizá-lo a respeito da continuidade da sua vida habitual ao longo do processo terapêutico: este não fará parar sua vida, não representa um período morto em sua trajetória existencial e nem um desperdício quanto ao tempo global de sua existência. É muito importante, pois, que o vínculo com a sua realidade cotidiiina seja mantido. Só paulatinamente o processo psicoterápico introduzirá mudanças nesta sua realidade, muitas vezes até imperceptíveis "a olho nu", sendo elas mais senlidas do que observáveis. Recusando-se a responder à pergunla da duração do tratamento, o psicoterapeuta recusa-se também a endossar a posição de um saber universal ou mágico que o outro lhe atribui. Querer responder com exatidão sobre a duração, significaria postular-se como vidente, o que pode ser uma tentação, mas que tem que ser evilada, aceitando-se (e enfatizando-o diante do paciente) os limites do exercício da profissão, em oposição a qualquer pretensão de paranormalidade. No contrato, devem ser disculidos mais alguns fatores, de cunho mais social ou de conveniências. Assim a questão das ferias, das interrupções eventuais da terapia, das faltas, voluntárias ou involun148
tárias, e das possibilidades de reposição. Isto tem a ver com o pagamento, questão de alta relevância para o profissional, mas que faz sofrer o paciente; nem por isso deve ser omitida. Cabe discutir abertamente o pagamento das sessões, tanlo o preço quanto as modalidades, para evitar dúvidas futuras, mas também para situar o assunto desde o início com clareza, impossibilitando (ou pelo menos dificultando) qualquer manipulação futura. O princípio fundamental a ser respeitado na fixação do pagamento é que a psicoterapia tem que custar algo ao paciente. Como qualquer outra situação de serviço profissional, ela implica uma treca entre alguém que dá e outro que recebe. Que a situação psicoterápica seja específica quanto ao conteúdo do material inlercambiado, não muda nada neste princípio, mesmo se encontramos sérias dificuldades em definir o que, de fato, é dado e recebido. Enquanto relação interpessoal subjetiva, as trocas efetuadas têm a ver com material afetivo íntimo, mas c precisamente o pagamento que a distingue da relação amorosa. Ouírossim, a retribuição paga, além de caracterizar a relação profissional de trabalho, tem ainda o significado de atenuar a dependência do paciente, de lhe permitir desvendar mais facilmente sua problemática pessoal c de diminuir seu sentimento de culpa — sempre presente —- de receber atenção e afeto sem o merecer. A psicoterapia tem que custar algo, também para que seja valorizada pelo próprio pacienlc. Porém, este argumento, se é válido, tem que ser relatrvizado. Ele não significa que a terapia tenha que custar necessariamente muito
caro, como entendem alguns. O que determina os preços que o psic o terapeuta cobra dos seus pacientes, deve ter a ver com o sen senso de responsabilidade social e com a sua ética, e não com uma exigência, construída artificialmente, segundo a qual a terapia "tem que custar caro". Em nosso entender, pois, o psicolerapeuta deve levar em conta as possibilidades financeiras dos candidatos à psicoterapia, isto é, deve cobrar honorários de maneira flexível. Dentro de certos limites (uma vez que ele tem que viver do seu trabalho), é necessário que se adapte às dificuldades reais dos pacientes — sem evidentemente cair no outro extremo, aquele de oferecer seus serviços gratuitamente ou de se deixar manipular ou chantagear pelos seus pacientes. Dentro do conjunto da realidade social, o mundo da psicoterapia constitui uma parcela muito pequena. Não se pode esperar dos seus representantes uma revolução desta realidade, mas achamos que o idea! da ibilidade da psicoíerapia a todos deve ser manfido, apesar de todas as práticas que se inscrevem contra este ideal. Pelo menos o psicoterapeuta deve ter consciência dos problemas que o cercam, para não afastar toda c qualquer problemática social dos seus pacientes, como se fossem meros pretextos ou elaborações fantasmáticas: nem tudo é mundo interno; o mundo externo existe e faz sentir a sua presença de maneira virulenta, a ponio de impedir muitos candidatos de realizarem sua vontade de ingressar em psicoterapia. O processo psicoterápico, dissemos acima, implica um certo sofrimento, do qual o pagamento evidentemente faz par-
te. Pelo alo de pagar, quitamos as dívidas contratadas com os outros — a começar pelos pais, representados, eles também, pela figura do terapeuta. Pagar, portanto, significa não receber de mãos vazias, mas retribuir as dádivas da vida inteira e inscrevê-las no rol das antecedências assumidas. Porém, o sofrimento ultraa, é claro, o ato cie pagar. Angústias, medos e pânicos mais profundos assaltam o paciente no decorrer do processo psicoterápico. Isto é inevitável se se quer aprofundar a sua problemática e tocar nos seus conflitos íntimos. Mas ele tem que ser preparado para isto, tem que saber que não é uma sinecura que o espera, que os sintomas possam, inicialmente, aumentar em intensidade (como podem fambém, pelo contrário, desaparecer), que o processo será flutuante, com altos e baixos imprevisíveis, e que não se dispõe de uma receita tranquila quanto a um prosseguimento "normal". A extensão desta preparação — que faz parte da fase inicial e do contrato — varia de um para outro, mas ela deve corresponder a certas exigências mínimas para assegurar a entrada no processo. Faz parte deste preparo a instrução para o trabalho a iniciar, necessária — aqui também em termos mínimos — para que o paciente saiba como situar-se na terapia, o que fazer — seja tão-somente naquele sentido cio "dizer tudo e fazer nada" a que já nos referimos. Como o conteúdo destas instruções é determinado pela orientação teórica de cada praticante e pelas técnicas que esta condiciona, desistimos de apresentá-las aqui em detalhes.
6.3. A fase de trabalho A fase de trabalho, ou fase intermediária, representa a fase do processo propriamente dito. Aí se desenvolvem as interações psicológicas que se organizam em um conjunto dinâmico de investigação, de elucidação, de recordação e de "perlaboração", com vistas ao reconhecimento e à resolução dos conflitos íntimos do paciente (no caso de uma psicoterapia descobridora). Mesmo partindo dos sintomas, no início do processo ou nas sessões cotidianas, o objetivo será sempre de cingir as razões destes sintomas, ou seja, os seus determinantes inconscientes. Mas islo leva tempo, porque numerosos obstáculos opõem-se à aproximação dos núcleos conflituosos, tanto as famosas "resistências" do paciente quanto os diversos mecanismos de defesa que o protegem. Não entramos em discussão detalhada destes mecanismos e resistências (7). Ambos são "normais" e se manifestam em todas as relações terapêuticas, nutridos, em parte, pelas concepções antropológicas arcaicas que referimos no primeiro capítulo. A proteção que eles asseguram à pessoa, c, de fato, ambígua: eles a protegem contra a interferência do material conflituoso em sua vida consciente e, simultaneamente, protegem também diretamente estes conflitos para que não sejam revelados ou tocados. Eis, em suma, a função da resistência no processo psicoterápico: opor-se a mudanças que poderiam colocar em xeque o precário equilíbrio conseguido através de compromissos entre as instâncias que se incompatibilizam. Se c por causa da precariedade deste equilíbrio que a pessoa procura ajuda pela 150
terapia, ela também está temerosa quanto às incidências dos desvelarncntos, paulatinamente realizados, sobre seu equilíbrio instável. Cabe ao psicoterapeuta e ao enquadramento da situação terapêutica oferecer uma segurança afetiva suficiente para superar estes temores e resistências, sem, no entanto, cair no extremo de um aconchego que elimine os sofrimentos psíquicos •— e as motivações para mudar — mediante gratificações tranquilizadoras. Estas, sem dúvida, podem fortalecer o equilíbrio preexistente, mas impedirão mudanças mais profundas e mais radicais; impedem, em suma, a procura persistente de um novo equilíbrio. Falamos acima de "perlaboração", neologismo criado por Freud para designar o trabalho incessante e repetitivo da travessia do material conflitante (8). Se esta noção se aplica mais especificamente à psicanálise, ela serve também para designar o amplo trabalho de elaboração do material subjetivo que caracteriza a fase processuai da psicoterapia. Em psicoterapia, esta elaboração processa-se de modo diferente daquela da psicanálise, mas algumas semelhanças merecem ser assinaladas. Em ambos os empreendimentos, efetua-se um determinado trabalho psíquico, como já vimos várias vezes. Sem este trabalho, não haverá eficácia terapêutica em profundidade, isto é, não se irá além de melhoras sintomáticas. Tampouco haverá cessação das repetições, neuróticas ou compulsivas, que esterilizam a vida do paciente. Mas esta eficácia somente surgirá se o trabalho se inscreve na relação psicoterápica, seja esta definida como transferência, em psicanálise, seja como relação interpessoal subjetiva, em psicoterapia.
Em outras palavras, a perlaboração pressupõe as inleraçõcs no interior desta relação: ela não se pratica sozinha, embora subentenda funções e papéis bem definidos para ambos os atores. Assim, é o paciente que "trabalha" a sua própria problemática para, com o tempo, chegar a esvaziar a insistência repetitiva das formações oriundas dos seus conflitos inconscientes. Se o psicoterapeuta participa deste trabalho, cie o faz de maneira indircta, utilizando certos recursos para incansavelmente relançar o paciente cm sua tarefa de autu-enfrentamento e desvelamcnto. Entre estes recursos, cabe citar a interpretação, arma capital — tanto em psicanálise quanto em psicolerapia — para superar as resistências c para provocar o confronto do paciente consigo mesmo. Em um sentido estrito, a perlaboração seria então a tarefa específica do paciente, em seguida a uma interpretação pertinente, tenha esta sido aceita ou recusada: em ambos os casos, ela suscita resistências, a serem elaboradas, para que o efeito da intervenção ultrae a aceitação intelectual ou a recusa defensiva. Voltaremos à especificidade da interpretação mais adiante. Queremos discutir aqui algumas junções do psicoierapeuta que se relacionam diretamente com o processo e a perlaboração. Em primeiro lugar, cabe a ele dirigir este processo. Isto não quer dizer dirigir o paciente, mas o trabalho efetuado pelos dois. Para isto, ele tem que controlar a distância para que seja adequada ao trabalho; tem que ficar vigilante para que a dependência do paciente não atrapalhe demasiadamente o prosseguimento do mesmo; tem que aumentar o apoio, por uma pre-
sença mais afetiva ou mais aliva, quando o outro atravessa fases mais difíceis; tem que assegurá-lo quanto ao sentido do trabalho, quanto à necessidade de ter paciência consigo mesmo ou com o andamento da própria terapia. Desta forma, sua direção, firme, segura c flexível ao mesmo tempo, tem que controlar todos os parâmetros que intervêm no processo e dos quais o paciente não tem consciência, ou não a tem inteiramente. Esta tarefa é complexa, e é grande a responsabilidade do terapeuta pelo andamento do processo. Ele tem que fazer o possível para que este "ande para a frente", manejando os diversos parâmetros, na medida em que se apresentem e que determinadas intervenções se tornem necessárias. Porém, se ele é responsável, não quer dizer que seja onipotente para conseguir, em todas as situações, garantir o prosseguimento. No trabalho clínico, nem todos os parâmetros se deixam controlar, e muitas vezes as situações são tão adversas que mesmo o terapeuta mais experimentado vem a falhar. Portanto, ele tem que tentar dirigir este trabalho da melhor maneira possível. Mas tem que saber também, de antemão e com humildade, que não existe certeza de conseguir cumprir esta sua tarefa. Contingências múltiplas interferem e a dificultam, razão pela qual sua cautela é essencial para que não superestime seus próprios recursos — o que poderá aumentar estas dificuldades mais ainda, pela sua própria cegueira diante delas. As noções de direção e de controle do processo psicoterápico são, portanto, bastante relativas. Em particular, elas nada têm a ver com direlividade ou con151
trolc no sentido de manipulação de determinadas variáveis, segundo os procedimentos das técnicas comportamentais. De fato, trata-se mais de uma questão ética do que técnica, a saber, aquela da responsabilidade profissional quanto à condução do tratamento. Se o psicoterapeuta não é onipotente para conduzi-lo de modo perfeito, cie tem que saber, por outro lado, que pode errar, que existem erros e falhas graves pelos quais tem que se responsabilizar — e que é preciso prevenir, na medida do possível, por um senso agudo de autocrítica e de permanente avaliação da própria conduta. A supervisão por colegas mais experimentados é imprescindível para diminuir ao máximo tais falhas humanas e, se ocorreram, para tirar lições delas para o futuro. Uma outra função a ser preenchida pelo terapeuta na fase u*e trabalho, já foi chamada de "função de espelho", A expressão não nos parece muito feliz, uma vez que evoca o narcisismo e a relação imaginária enganosa. Não é disto que se trafa nesta função, embora toque à dimensão da identificação. Porém, o paciente não tem que se identificar com o psicoterapeuta — querer induzir isto seria uma pesada falha ética, pelo fato de assim se apresentar ao outro como modelo. O sentido é muito mais de o paciente conseguir se identificar consigo mesmo através da presença do terapeuta, que funciona então como um espelho refletindo a imagem do primeiro. A presença refletora do profissional deve permitir que o paciente possa refletir sobre si mesmo, adquirindo assim, aos poucos, no desenrolar do processo — que sempre também é um processo identificatório —, maior consistência e 152
uma configuração própria na qual ele mesmo possa confiar. Reconhecendo 1 figura do psicoterapeula como sendo confiável, segura c estável, ele conseguirá se reconhecer e conler a sua desorienlação, suas angústias, temores c inseguranças. Esla função, portanto, muito tem a ver com uma função de apoio (identificatório). Mas ela intervém em todas as relações psicológicas, não somente na relação de apoio. Nesta, ela se torna essencial para confortar o paciente em suas dificuldades particulares; nas outras relações, ela representa a base da interação de confiança enírc os dois atores, enquanto dimensão humana compartilhada pelos dois. Ela se consiitui, pois, na mola mestra do processo, c é a condição sine qua non para que se efetue um trabalho psíquico entre ambos. A função explicativa tem que intervir quando surgem determinados obstáculos no processo, de cunho bem real. Esta função difere fundamentalmente daquela da interpretação, porque não visa conteúdos inconscientes, mas situações concretas que se levantam como empecilhos para o prosseguimento do trabalho. Explicar certos funcionamentos, certos pragmatismos importantes para a vida social, familiar ou profissional, não significa, no entanto, abandonar a reserva terapêutica e ingerir-sc nos afazeres do paciente; ou melhor, pode significar isto, mas não necessariamente, dependendo da sutileza da explicação e do caráler impositivo, "catedrático" ou não, cia intervenção. Se a explicação faz parte do processo terapêutico, ela deve inserir-se como uma parte deste percurso, sem a pretensão de um alcance totalízante (e muito menos
totalitário), mas visando um ponto limi- a indagar, perguntar, interpretar, expliIndo, cuja compreensão escapa ao pa- car, cortar. .. Em oulras palavras, em ciente. Levantado o obstáculo — que, qualquer momento ele tem. que saber o de fato, pode referir-se tanto à própria que está fazendo, e tem que se responterapia quanto à realidade externa —, sabilizar pelo que está fazendo. cabe novamente deixar espaço para ouOs momentos decisórios permeiam, tras funções, ligadas a atitudes mais re- pois, o processo em permanência. Mas servadas, mais de expectativa e menos eles se tornam mais cruciais na medida de intervenção. em que abordam questões de relevo, coIsto significa que "ordinariamente", o mo o corte da sessão, propostas de muterapeuta não se situa em uma posição de dança de ritmo, de frequência, de hosaber, não intervém afirmativamente, norário ou até de tipo de terapia (pasnão é assertivo em suas colocações, mas sando, por exemplo, para uma terapia antes de tudo indagativo: questionando de apoio ou, ao contrário, para uma o paciente a respeito do material mais psicoterapia mais descobridora). diverso que levanta, o primeiro tem que Quanto a intervenções interpretativas, operar indagações sulis que levem o é de suma importância julgar a sua oporoutro a so questionar a si mesmo, a se tunidade, julgamento que somente o perscrutar, ou, melhor ainda, a se tocar próprio psicoterapeuta poderá fazer. Asem seus pontos nevrálgicos, colocando sim sendo, ele está totalmente só nesta assim em movimento novo material as- sua responsabilidade decisória: ninguém sociativo c aproximando-se mais um pou- pode ajudá-lo ou substituí-lo, e a ninco dos seus conflitos pessoais. guém ele pode recorrer (a não ser a posPercebe-se pois que a intervenção ex- teriori, na supervisão, para prestar conplicativa deve ser uma exceção; senão, ta de sua decisão). ela corre o risco de fixar o psicoteraEsta solidão no tocante às decisões a peula em uma posição de saber (mais serem tomadas pode tornar-se uma torou menos imperativo), que pode ser contura, em particular para o iniciante, ou fortável para ele (ou para ambos), mas quando problemas pessoais o afligem que corre o risco de paralisar o pro(por exemplo, após entrada prematura, cesso. despreparada, no exercício da profissão). Uma quarta função geral, presente ao longo da fase de trabalho, refere-se às Ela toca ao âmago da dificuldade de ser decisões a serem tomadas pelo respon- psicoterapeuta, por causa da responsabisável pela direção tío tratamento. Isto, lidade intransferível que marca suas atuamais uma vez, nada tem a ver com dirc- ções, mesmo em seus aspectos mais rotitividade. A função de decisão participa neiros. A entrada na rotina pode aplacar de todas as intervenções: cm qualquer o que esta responsabilidade tem de tormomento, a respeito de qualquer tipo de turante — mas a rotina não deve transintervenção, o psicoterapeuta tem que formar-se em um refúgio defensivo para decidir, em seu foro íntimo, o que vai ar inquietações inerentes à profisfazer e como vai fazê-lo. Pode decidir- são. Estas nunca se deixam totalmente -se a ficar calado, a falar isso ou aquilo. eliminar, fazendo parte da dignidade hu153
mana do seu trabalho, da sua alteza e dos seus limites. Na fase de processo, o trabalho que visa à elucidação do material inconsciente conflituoso pode proceder de duas formas (9). Ele pode desenvolver-se dentro de uma abordagem históríco-genélica, com o propósito de reconstruir a constituição histórica dos conflitos e dos sintomas subsequentes. o a o, pretende-se assim seguir fielmente a trama das dificuldades cía pessoa, com todas as suas ramificações, até chegar àqueles momentos iniciais, traumáticos ou não, que podem ser considerados como responsáveis pela evolução psicopatológica posterior. Nesta reconstituíçao, os eventos reais, oriundos da realidade externa, observável, são investigados e avaliados quanto ao seu impacto na vida psíquica c relacional do paciente, para que, rememorados através do processo psicoterápico, possam ser remanejados, perdendo então o seu poder patogènico. A abordagem estrutural segue um caminho diferente. Não dá muito valor à realidade externa c à sequência dos eventos reais, mas atém-se à realidade psíquica do sujeito. Tenta discernir aí as formações relativas dos acontecimentos esternos, as elaborações defensivas, os desejos, fantasias, reivindicações e expeclativas que cercam os conflitos e produzem os sintomas. Tenta ver, pois, como a pessoa se situa hoje diante dos seus próprios conflitos, constituídos historicamente, mas permanentemente atuajizados em sua vida fantasmática. Desta forma, prefende-se levá-la a mudar seu posicionamento diante dos conflitos antigos, mediante o cíesvelamcnto das fantasias implicadas. O trabalho 154
aplicar-se-á portanto aos desejos inconscientes, aos benefícios alcançados e aos movimentos defensivos, para, desta forma, induzir mudanças profundas nas constelações intrapsíquicas do sujeito. Em ambas as abordagens — na maioria das vezes a serem combinadas entre si — o importante é que os conflitos, inconscientes ou não, recebam novas significações para o paciente. Através do trabalho contínuo, ou seja, da perlaboração, ele desenvolverá melhores condições para perceber certas ligações entre materiais psíquicos dispersos; persislindo em seu autoconfronto, ele chegará a visões mais do conjunto do que parciais, e poderá assim, aos poucos, superar as divisões de sua realidade interna em compartimentos estanques. A meta essencial do processo psicoferápico, pois, é restabelecer a comunicação interna, reconstituir as ligações interrompidas entre as parcelas conflitantes, eliminar estes compartimentos artificiais e alienantes e abrandar assim o seu impacto patogènico na vida concreta do paciente. Se este conseguir atribuir novas significações, pessoalmente elaboradas e assumidas, a "pedaços" anteriormente isolados de sua personalidade, cie poderá se reestruturar c se libertar das suas calcificações patológicas — o que constitui o objetivo mais amplo da psicoterapia. Esperamos ter transmitido uma ideia, senão clara, pelo menos aproximativa do processo psicoterápico e da obra que se efetua, idealmente, na fase do trabalho. Na medida em que este alcança êxito, aproxima-se da fase final da terapia, que discutiremos a seguir quanto às suas incidências práticas, clínicas e teóricas.
6.4. A fase final do processo psicoterápico O fim da psicoterapia faz parte integrante do seu procedimento e está presente, como ideia e como fantasia, desde os primeiros contatos. Como já vimos, a perspectiva do término da relação interpessoal subjeliva a diferencia de outras relações subjetivas, como aquelas de amor e de amizade. Ela representa um objetivo a atingir que define todo o desenrolar e marca todas as interações entre ambos os atores: quão profundas sejam, estas sempre terão matizes de provisoriedade, sendo a sua transiloriedade inscrita no próprio projeto que lhes deu origem. Isto não é o caso de outras relações psicológicas, como aquelas de manutenção ou de certas terapias de apoio, indefinidas quanto à duração. Estas, evidentemente, também serão confrontadas com limites, mas eles serão mais flexíveis, visto que a separação final não está nitidamente explicitada como um dos objetivos do trabalho em conjunto. O sentido destas relações c outro, o que produz repercussões na profundidade e na intensidade das interações — mais superficiais e muito menos subjetivas •— e nas posturas respectivas. Desta forma, o curso do trabalho será muito diferente e com ele a temporalidade na qual mergulha o processo, isento da referência direta ao nosso ser-para-a-morte, ou seja, da referência a mortalidade e à finitude como fazendo parte das representações-metas diretas da psicoterapia propriamente dita. Isto significa que nesta, a fase final tem conotações sombrias, vinculadas a evocação, inevitavelmente, não somente
do fim da terapia, mas do fim da vida. A separação da terapia, isto é, da figura do psicoterapeuta, prefigura, pois, quer queira quer não, a separação final. A este respeito, fais-sc com muita pertinência de um trabalho de luto, necessário para elaborar a perda que constitui o rompimento com o terapeuta. Este trabalho de luto — noção introduzida por Freud, que o opõe ao processo melancólico IÍO) — com certeza se prolonga depois da psicoterapia; para que seja bem-sucedido, para que a perda seja elaborada de tal maneira que o (ex)paciente consiga desligar-se do seu apego ao terapeuta, desfazendo o seu investimento libidinal a ponto de tornar-se capaz de investir em novos "objetos" de valor e de amor — para isto, pois, a separação tem que ser preparada, o que é precisamente a tarefa da fase final da terapia. Mesmo presente desde o início, a perspectiva da separação c sempre inquietante, podendo atingir certos paroxismos, dependendo da fase e da temática do trabalho empreendido; mais uma determinada fase é regressiva, mais a ideia da separação transforma-se em espectro de abandono, cujo veneno o psicoterapeuta tem que saber destilar. Se a angústia do paciente chega a um tal clímax, evocando, por exemplo, experiências de abandono infantil, cabe ao terapeuta assegurá-lo quanto ao prosseguimento do trabalho, quanto à permanência e estabilidade do vínculo entre os dois c quanto à sua "fidelidade" —• sem nunca perder de vista, nem para ele, nem em suas intervenções, que o término da relação é pautado como elemento essencial e que não adianta "fazer como se" esta fosse eterna. 155
Em outras palavras, a questão da separação é delicada e exige um manejo de muita sensibilidade, mas também de muita firmeza por parte do psieoterapeuta. Eie representa o guardião da meta que norteou o início do processo e da qual não deve se desgarrar nos meandros da perlaboração que constitui a sua trama; a ideia do fim da terapia e da separação apresenta-se, pois, como o fio vermelho ao longo do qual o processo se desenvolve, com toda aquela dinâmica específica que caracteriza a problemática subjeliva do paciente. Se este processo é às vezes altamente angustiante, o terapeuta não pode se deixar coniaminar pelas aflições da pessoa que se confiou a ele —- não para ficar juntos "mima boa", com a fantasia de um vínculo perene, vacina antiabandônica para sempre, mas para que conduza àquele trabalho libertador que o paciente almeja, mas ao qual também resiste, e que implica a separação como pedra de toque da autonomia conquistada.
midade com a sua procura de um desfecho global. O psicoterapeuta sabe que esta síntese nunca será total, que ela é propriamente impossível, pe!o falo de não haver terapia completamente terminada. O material subjelivo, íntimo, é inesgotável. Ele fará parte da vida do paciente também depois cio término da terapia, e cabe a ele continuar a elaborá-lo permanentemente, embora sem a presença do outro. Toda síntese, pois, será sempre provisória e incompleta...
Acontece lambem com alguma frequência que, na fase final, os sinlomas am por uma recrudescência. Não há nada nisto para se assustar: representa apenas uma das manifestações do medo e da apreensão do paciente diante da perspectiva de encerrar a sua terapia (ou ainda, de continuá-la doravante sozinho...). Trabalhar esta apreensão e a falta de confiança em si mesmo que ela demonstra, faz parte da fase final. De fato, D aumento dos sinlomas, em intensidade ou frequência, ou até o surO ideal a atingir é que ambos con- gimento de sinlomas novos, devem ser cordem quanto ao prazo final. Esla con- entendidos como expressão de um recuo, cordância, no entanto, raramente será de uma revolta diante do encerramento unívoca; muitas vezes, o psicoterapeuta iminente da terapia. A recrudescência de tem que exercer uma certa pressão pa- sintomas simboliza então a recusa da ra que a ideia de terminar a terapia faça separação e a regressão defensiva diano seu caminho, seja elaborada e final- te da perspectiva, ressentida como ameamente aceita. Ocorre então, com frequên- çadora, cie perder o vínculo afelivo com cia, que a fase final reproduz o con- o ajudante — cuja relativização muitas junto do processo já percorrido, reven- vezes não foi suficíentemeníe praiicada do-se o principal material que fez a sua para que se consiga cogitar uma vida trama com o propósito de chegar Q uma sem a assistência dele. "síniese final". Mas esta não deve ser a Nestes casos, a fase final poderá proproposta do terapeuta: o desejo de uma longar-se bastante. A aceitação da sepasíntese (asseguradora da futura estabiração não pode ser forçada; ela tem que lidade. ..) é compreensível, mas cabe ser conquistada pelo próprio paciente. ao próprio paciente tentá-la, em conforMas para chegar lá, ele tem que traba156
lhar consigo mesmo, o terapeuta exercendo a sua pressão interpretativa (mas não persuasiva) para facilitar este trabalho. Se a fase de perlaboração foi profunda o suficiente, isto é, se se chegou realmente perto da fase final, então a recrudescência dos sintomas se deixa aproveitar para efetuar uma "revisão geral" com vistas ao encerramento do trabalho. O luto sem dúvida é doloroso e angustiante, mas ele faz parte, integralmcme, deste mesmo trabalho, e sòb nenhum pretexto se deixa escamotear. Isto significaria renegar os princípios que o guiaram, significaria abdicar da posição de terapeuta, ou ainda, não confiar no trabalho realizado... Uma outra situação apresenta-se com menor frequência, a saber: o paciente insiste para terminar a sua terapia apesar da opinião contrária do terapeuta. Aí, este tem que fazer jogo limpo e dizer as razões pelas quais acha o encerramento prematuro. Contudo, não deve querer persuadir ou mesmo forçar o outro a permanecer em terapia; se este quer demonstrar a sua auto-suficiêneia, pondo a suposta autonomia adquirida à prova, ele tem que poder fazê-lo, embora informado sobre o eventual preço a pagar. É esta informação que o terapeuta tem que transmitir, mas respeitando as decisões do primeiro. De qualquer forma, tais divergências fazem parte da fase final e se deixam trabalhar, na maioria dos casos; em particular, cabe promover a conscienlização do paciente, quanto a atitudes de auto-afirmaçao ou de desafio pelas quais pode tentar barrar o confronto com um material subjetivo particularmente penoso ou resistente; superadas tais barreiras, o cami-
nho para a verdadeira fase final será mais livre. Pode acontecer que a interrupção da psicoterapia seja forçada por razões externas: mudanças na vida do paciente, viagens, dificuldades económicas, pressões diversas. . . Nestes casos, estas razões devem ser questionadas, nas sessões restantes, quanto a sua objetividade; elas podem funcionar mais como pretextos para fugir da terapia, mas podem também ser verdadeiras. Em ambos os casos, esta elaboração final apressada terá como função transmitir ao paciente, através deste questionamento, certas reflexões para que o acompanhem como um víático, seja para confortá-lo a respeito da separação sofrida, seja para que continue a se interrogar ele mesmo sobre as razões de sua partida. Em casos de razões de força maior, o apoio efetivo e a maior proximidade do terapeuta deverão tentar compensar a perda a sofrer, não no sentido de suprimi-la, mas de torná-la mais tolerável. Cabe discutir uma última eventualidade, rara, mas que ocorre: a situação onde o próprio psicoterapeuta se opõe ao término, apesar de se ter percorrido todo o caminho da perlaboração e o processo ter madurado o suficiente para encerrar-se. Sem dúvida, o fim de uma terapia sempre é unia perda para ambos, mas é claro que o "agente" deve ser capaz de aturá-la — c até bem melhor do que o paciente — e de não precisar da presença contínua do "seu" paciente. Falhas na preparação profissional e pessoal, ou ainda na supervisão que efetuou (ou não), serão responsáveis por um tal estado de apego, implicando problemas éticos sérios. Acreditamos não ser necessário insistir mais sobre a gravidade de tais casos: 157
O paciente nao pertence ao profissional, e tampouco o procurou para satisfazê-lo; ele se confiou ao profissional porque confiou nele — e esta confiança seria Iraída com a dita evolução, nem sempre isenta de conotações sadomasoquistas, mascaradas pelas dependências recíprocas. . . Mais uma vez desponta aí o problema crucial dos limites, presente durante todo o processo, mas emergindo com maior acuidade na fase final, colocando à prova o senso ético e a responsabilidade profissional, senão a abnegação do psicoterapeuta.
6.5. Momentos cruciais do processo psicoterápico Se é verdade que o essencial do processo psicolerápico, no sentido da elaboração dos conflitos íntimos do paciente, se desenrola no interior deste, de maneira não observável, não é menos verdade que determinados momentos se destacam neste processo. Eles merecem uma discussão ã parte, sem que seja possível entrar em um exame pormenorizado dos principais elementos que nele apontam. Isto vale em particular para a interpretação. Muito tem sido escrito sobre ela, seja no âmbito da técnica psieanaIítica, seja em crítica literária ou em filosofia (11). Não nos interessa aqui o sentido técnico de que a interpretação se reveste na psicanálise. Tomada em seu sentido global, de revelação da significação latente do material relatado pelo paciente, ela se destaca como um momento particular na elaboração deste, embora acompanhando todo o curso do trabalho, em decorrência da atitude geral, "interpretativa", do psicoterapeuia. 158
Sem querer entrar nos meandros da discussão filosófica ou literária sobre a hermenêutica e seus segredos, ressaltamos que esta atitude gera! do terapeuta refere-se, implicitamente, à sua concepção da divisão do ser humano entre a sua superfície, onde se apresenta o seu comportamento observável, os seus sintomas e as suas queixas, e o seu "núcleo", seja este definido como for. Sem esta distinção entre um manifesto e um latente, não faz sentido falar em interpretação — muito embora seja verdade que mesmo o cientista mais aferrado na defesa do empirismo e dos princípios neopositivistas, não pode abrir mão do recurso à interpretação, quando determina a significação dos fatos constatados. Interessa-nos aqui, pois, a interpretação como instrumento de trabalho para elucidar os conflitos pessoais, sobretudo inconscientes, do paciente, isto é, como ferramenta para ultraar o manifesto e atingir o desconhecido. Este, vinculado à historicidade do sujeito e tornado inconsciente em função dos seus próprios mecanismos defensivos, detém um potencial particularmente patogênico pela pressão e interferência constantes que exerce em sua vida consciente. A operação de desmascaramento deste desconhecido operante e de sua incidência no sofrimento da pessoa, se ela constituí toda a trama da perlaboração, conhece, não obstante, momentos singulares pela intensidade da vibração afetiva e pela revelação de significações latentes insuspeitadas. Por uma intervenção interpretativa feliz do terapeuta, o outro conseguirá atribuir significações a fatos que anteriormente não as tinham; consegue vislumbrar vínculos enírc constelações aparentemente (e defensivamen-
te) desvinculadas; consegue entrar em contato com material conflitante inconsciente de que nunca tinha cogitado; consegue operar certas reconstruções nas sequências esquecidas de sua história pessoal; consegue reestrulurar-se para chegar a um funcionamento psíquico mais integrado c menos segmentado em comportamentos estanques. . . Mas para que se chegue a tais momentos "felizes", é necessário um árduo trabalho preparativo. Interpretações "geniais" são raras, como é raro o efeito imediato de uma intervenção pertinente. O que é preciso é a perlaboração contínua do material emergente, dirigida pelas indagações interpretativas incidentais do psicolerapeuta, emitidas em função de sua percepção de ocorrências significantes nas peripécias das verbalizações do sujeito. Lembramos aqui nossos comentários acima (ver 3.7.) acerca dos deslizes que as intervenções do terapeuta tendem a introduzir nas seqiiências relatadas pelo paciente, deslizes que já tem uma função interpretativa iatu sensu. De fato, pelo seu aspecto de deslocamento do foco de atenção, eíes aludem a algo além do conteúdo manifesto no discurso, algo que se relaciona com o material latente sobre o quai se quer induzir um reparo diferenciador. Conseguindo isto, induzem-se brechas nas atitudes defensivas, levando o paciente a se questionar mais sobre eventuais significações latentes de sua fala. Neste sentido, a interpretação raramente é afirmativa; ela corresponde mais, dentro do processo psicolerápico, a uma hipótese de trabalho lançada de modo indagativo para talear o terreno incerto das constelações inconscientes
conflitantes. Ela exige, pois, muita cautela e perspicácia, bem como muita paciência por parte do terapeuta: precipitada, ela não surfirá efeito, mas poderá acirrar as oposições e defesas do paciente, capaz de reagir com indignação diante de certos deslizamentos insinuantes que achar provocantes ou impertinentes. A interpretação deve ser proposta no momento oportuno, no momento kairos —• a oportunidade sagrada e cheia de graças da qual falam os gregos — mas para que ocorra, tem que ser preparada através de mil indagações, questionamenlos e interrogações. Portanto, ela será fruto mais do labor contínuo do que da intuição fulgurante do terapeuta; esta pode ocorrer, mas mais vale não contar com ela e persistir na tarefa da perlaboração, até que a interpretação feliz, amadurecida pelo longo trabalho que precedeu, venha a calhar, apropositada dentro do contexto evolutivo da conscicnlização do paciente, sendo para ele relevante quanto às dificuldades cujas raízes ignora. No entanto, a interpretação não deve pretender uma aprovação entusiasta da parte do paciente: é mais importante tocar fundo do que suscitar entusiasmo. O efeito de uma intervenção pertinente poderá surgir "só depois" (12), através de mudanças na conduta da pessoa, através de reações inesperadas, de material novo que surge, de oposieÕcs exacerbadas ou, pelo contrário, de concordâncias livremente consentidas. A tomada de consciência, de fato, não é essencial; ela pode ocorrer aos poucos, muito mais tarde ou nunca. . . Ela não é o critério decisivo de uma mudança na estruturação intrapsíquica, tendo um 159
valor mais acidental (embora gratificante, em geral, para ambos) no caminho do autoconhecimento crescente e da libertação progressiva dos conflitos que dividem o paciente. Integrar-se é mais importante do que tomar consciência, se bem que podem se completar. . . A interpretação consiste em uma atividade verbal que se refere às verbalizações do pacienle, seja àquilo que ele relatava imediatamente antes, seja a colocações disseminadas sobre um longo trecho do trabalho. Portanto, ela não se aplica ao comportamento observado. Se o terapeuta achar necessário intervir quanto a aspectos do comportamento que chamam a sua atenção — no caso de atuaçôes, por exemplo — ele recorrerá a outros tipos de intervenção, como o questíonamento direío ou indírefo, a injunção, a explicação ou mesmo a advertência... O leque das intervenções do terapeuta é assim bastante amplo; cabe a cada um desenvolver o seu estilo pessoal de intervir, conforme sua orientação teórica, experiência clínica c pessoal, ponderações e intuição. Não é possível estabelecer regras fixas para isto: aqui também o terapeuta está só, e tem que se responsabilizar pelas decisões que está a tomar. Não obstante, dentro deste leque amplo, a interpretação detém o privilégio de visar o latente, além ou atrás do manifesto, de ser capaz de tocá-lo e de servir assim de alavanca para levantar o material conflitante, de forma a encaminhá-lo lentamente rumo aos objetivos da psic o terapia. Um outro momento essencial do processo psicoterápico diz respeito à identidade do paciente. Disseminado sobre o curso do processo — a ponto de poder 160
falar também de uma "temática" — o trabalho sobre a identidade conhece às vezes momentos particularmente dramáticos ou particularmente fecundos, cujo aproveitamento é capital para a sua otimização. Identidade, de fato, implica identidade sexual, mas nem sempre é a identificação com o próprio corpo sexuado e com o papel sexual que está no primeiro plano da problemática. Isto é o apanágio mais do neurótico, e deverá ser trabalhado então no contexto das dificuldades de identificação com o pai do mesmo sexo, sejam estas "edipianas" ou não, c das sequelas de constelações precoces desfavoráveis ou mesmo traumáticas. A identidade, em um sentido mais amplo, refere-se à imagem que a pessoa tem de si mesma, ando pela imagem de corpo e implicando sempre o investimento narcísico do "amor próprio". Este, quando radicalmente insuficiente, provoca os diversos quadros de distúrbios narcísicos, podendo ir de afecções psicossomáticas até as psicoses mais graves. Em todos eles, a questão da identidade, ou seja, a insegurança quanto à própria identidade, está no primeiro plano. Esta insegurança poderá tornar-se especialmente aguda quando, no processo psicoterápico, a questão da origem desta falha narcísica estiver sendo tocada. Este toque poderá ser sentido como se se mexesse em uma ferida sempre aberta, mas encoberta graças a uma cícatrização precária, embora autoprotetora. Porém, se se quiser trabalhar o problema de fundo desta insegurança de identidade, tocar nesta ferida será imprescindível. Somente assim será possí-
vel aumentar a segurança quanto a si mesmo; para chegar a ser quem ele é, o paciente tem que saber, tem que descobrir quem ele é, tem que aprender a se amar, a se valorizar, apesar e contra iodas as experiências anteriores que lhe inculcaram a certeza do contrário. No momento ou na fase onde se trabalha mais intensamente toda esta problemática, a figura do psicoterapeuta, ou seja, a identificação com ele, pode auxiliar o paciente como uma muleta momentânea para ar o confronto com as suas feridas identificatórias. Mas não significa que o terapeuta tenha que se apresentar como um modelo: ele nunca é, nem deve querer ser um modelo para o seu paciente, mas uma muleta na qual este poderá se apoiar quando precisar, e uma tela na qual se refletirá à procura de si mesmo. Se a identidade é determinada pelo outro, ela será autêntica apenas no caso de ser conquistada, assimilada e integrada pela própria pessoa. Uma vez a identidade reconhecida e consolidada, o terapeuta tem que se retirar, tem que desaparecer abrindo mão de sua função de referência, para que o outro consiga verdadeiramente ser quem ele é, acreditando em si, se apreciando e se valorizando. Este trabalho em geral é demorado; somente quando levado a cabo com paciência e perspicácia, é que o processo pode progredir rumo à independência do paciente. Um terceiro momento crucial refere-se a ocorrências mais amplas, podendo emergir em toda e qualquer psieoterapia: a emergência de urna crise durante o processo. Elas são tão corriqueiras que se pode dizer que jazem parte do próprio desenrolar psicoterápico. Se ela re-
prcsenla um momento difícil e doloroso a ar, ela não é nenhuma anomalia, mas o índice de se ter atingido um ponto crucial —• ou precisamente, um ponto crítico. Em outras palavras, ela significa que, provavelmente, o trabalho dos dois tenha ido fundo, tenha tocado constelações altamente significantes do histórico do paciente, tenha mexido numa ferida meio aberta e provocado, assim, angústia e pânico, pela veemência das próprias reações ou pelo susto de uma descoberta insuspeitada. Estas reações podem diferir muito de um caso para outro. Uma das mais comuns, além da angústia, é a reaçuo depressiva, a ser atravessada até se ver luz no final do túnel. De fato, a depressão acompanha uma boa parte do trabalho terapêutico, à medida que ideais superdimensionados são aos poucos reduzidos a tamanhos mais adequados e mais condizentes com as possibilidades reais — redução esta que sempre está sendo vivida como uma perda, apesar do cará ter irreal daquele ideal. Esta fase do trabalho, por assim dizer "iconoclásiica", é propriamente deprimente, porque toda perda acarreta depressão, às vezes severa, a ser elaborada cm conjunto. Ela pode ainda se repetir, como já vimos, no final da terapia, que representa, neste sentido, um outro momento crítico. O que importa cm tais momentos, é que o psicoterapeuta não se deixe contaminar pelo desânimo do seu paciente, dirigindo o trabalho — que deve continuar — com compreensão, mas também com firmeza, para que os fatores responsáveis pela depressão possam ser reconhecidos c descartados, em proi da reconstrução adequadamente dimensio161
nada dos ideais e valores do paciente. Os objetivos de libertação dos conflitos internos incluem a necessidade de atravessar momentos depressivos, se aquela quiser ser duradoura.
quer tentativa de melhorar as bases do trabalho. Sc uma tal crise chega a se extremar, vale mais propor ao paciente a interrupção da terapia, deixando aberto o retorno posterior. Este raramente acontecerá; na maioria dos casos será melhor recomendar a continuação com outro profissional, da escolha do paciente.
As crises durante a psicoterapia podem conhecer outras razões, em particular razões externas. Se não é possível influenciá-las, cabe ficar atenlo à sua incidência na vida intrapsíquica e sobre o Quando falamos aqui em crise, a en"ânimo" do paciente; em conformidade tendemos em um sentido diferente dacom as oscilações dus fatores externos, o quele de Moffat (13) ou de BelJak (14). terapeuta terá que oscilar na distância Nós nos referimos a crises durante o traque mantém para com o paciente; ele po- balho psicoíerãpico, enquanto esles dois derá mesmo ser levado a ar para uma autores se referem a situações de emerrelação mais de apoio, sabendo que pode gência, resultantes de crises existenciais se tratar de uma mudança momentânea internas e/ou externas. Estas exigem que não implica o abandono dos obje- abordagens especializadas, em cuja distivos inicialmente pautados. De qual- cussão não entramos. quer forma, ele tem que tentar discriUm quarto e último momento crucial minar permanentemente os fatores exdurante o processo psicoterápico diz resternos reais, apresentados pelo paciente peito à tomada de consciência. Já assicomo obstáculos, ou mesmo como impenalamos acima qye esta não é indispendimentos para a lerapia, e os fatores sável para que haja efeilo terapêutico. invocados como pretextos para dissimular crises de origem interna, vinculadas No entanto, a conscientização caracteriza momentos privilegiados de toda psicom a própria terapia. coterapia. Ela nunca será total, mas perUm outro aspecto de crise relacionatence ao processo de desvelamento, no -se com a questão da confiança no psicoterapeuta. Esta pode ar por pro- sentido do paciente ser, no final, mais vas particularmente tenazes, de origem consciente de si. Ele "se conhecerá meexterna (por exemplo, comentários sobre lhor", sendo o autoconhecimento um dos ele ou calúnias) ou, com maior frequên- objetivos da terapia. cia, interna. Neste caso, a dificuldade, percebida pelo terapeuta ou verbalizada pelo paciente, deverá ser abordada com tato e cautela. Nem sempre, enlrctanto, se deixará resolver: a confiança, quando estremecida, custa a ser restabelecida; a própria falta de confiança — mesmo se funciona como pretexto ou desculpa para evitar o autoconfronto — boicota qual162
Se a conscientização — chamada por aiguns de insight (15) — não é responsável pelos efeitos terapêuticos, ou pelo menos não por todos, ela merece um destaque particular. Tomar consciência, em geral, se faz de maneira surpreendente, embora precedido por um longo trabalho em profundidade; ela pode ser momentaneamente angustiante, ou suscitar um efeito depressivo mais demorado,
mas representará sem dúvida uma aquisição importante. Todavia, de forma alguma ela coincide com o final da psicoterapia: as tomadas de consciência devem ser integradas na vivência do paciente, devem contribuir para mudanças profundas e não se prestar a deleites superficiais, no sentido "agora sei, e basta!" Além disto, as conscientizações não representam vacinas contra recaídas, contra novos mergulhos em trevas, "fossas", depressões e desánimos; elas correspondem a momentos de luz dentro de um processo no qual se alternam com muitas sombras — ambos fazem parte dele. Mas a luz continua sendo um incentivo para aturar e atravessar as sombras. ..
Apresentamos sumariamente como entendemos o processo psicoterápico, seu desenrolar, seus ingredientes, suas fases. Não pretendemos ter esgotado o assunto. Este processo não deixa de ter algo de misterioso, de insondável, tanto quanto a própria símbolização. O seu efeito não reside na tomada de consciência, nem no desaparecimento dos sintomas, nem em mudanças de atitudes ou conduta. Tudo isto pode ocorrer, e de fato ocorre em geral, mas não representa a "essência" deste processo. Ele se a a nível inconsciente, questionando o nosso entendimento científico, a nossa vontade de dissecar e explicar tudo, o nosso desejo de saber... Ele se a entre os dois, mola e fruto das interações e trocas que perfazem o conjunto da elaboração psicoterápica. Mesmo o psicoterapeula mais perspicaz e mais experimentado deve concor-
dar quanto ao caráter insondável daquilo que acontece entre ambos os protagonistas, e que não se deixa codificar satisfatoriamente. Mas será que é preciso codificá-lo, explicá-lo pormenorizadamente? Em termos de transmissão do know-how psicoterápico, isto parece desejável — mas nem tudo se deixa transmitir de modo operacionalizado, quando se trata de seres humanos e de suas complexidades psíquicas e sociais. Eis mais um dos limites, mas também uma das riquezas do trabalho de psicoterapia, sobre o qual o candidato a este exercício profissional deve meditar antes de fazer as suas opções. Os estudos teóricos, as discussões técnicas e as supervisões no início de sua carreira poderão orientá-lo. Mas ele tem que itir — e tem que correr o risco -— de contar, em primeiro lugar, com a sua própria pessoa, sem poder recorrer a instrumentos externos seguros e eficazes em todas as situações. E tem que itir que para entender o mistério destes processos, tem que começar pelo autoquestionamento, sem nunca poder abrir mão d e l e . . .
Bibliografia e notas 1. Citamos algumas obras sobre entrevistas psicológicas em geral: ASSUMPÇÃO, T. M. L. Estruturação da Entrevista Psicológica. São Paulo, Ed. Atlas, 1977. LODI, J. B. A Entrevhia. Teoria e Prática. São Paulo, Livraria. Pioneira, 1974. Rf BEIRO, J. P. Teorias e Técnicas Psicoterápicas. Pctrópolís, Vozes, 1986 (o capítulo sexto trata da entrevista). ZARO, J. & ai. I/itroituçiio à Prática Psicoterapêuiica. São Paulo, EPU-EDUSP, 1980 {a segunda parte trata da entrevista clínica).
163
ABUCHAEM, J. O Processo Diagnóstico no Adulto, na Criança e no Adolescente (Tomo 2). Porto Alegre, Ed. Lszzatto, 1987 (ver o Tema n,° 6). 2. ARGELANDER, H. Das Erstinterview in der Psychotherapie. Darmstad: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1970. (O autor analisa especificamente a entrevista inicial na situação clínica.) 3. LAPLANCHE, J. & PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo, Martins Fontes, 1970. (Ver artigo sobre Reall' ilade Psíquica.) 4. ROGERS, C. Psicoterapia e Consulta Psicológica. Lisboa, Moraes Ed., 1974, 5. FREUD refata esta mudança em várias obras suas, de cunho autobiográfico; ver. por exemplo: Contribuição à História do Movimento Psicanalílico (1913); Edição Standard Brasileira, XIV, pp. 16-82. Rio de Janeiro, Imago, 1976. 6. Historicamente, vale mencionar que o livro no qual H. RORSCHACH apresentou o leste que desde então tem o seu nome, leve exatamente este título: Psycliodiagnostik (1921). Assinalamos que o vol. 6 do Handbuch der Psychologie, intitulado Psychologische DiBgnOStik (Gòttingen: Verlag fiir Psychologie, 1981), (em mais de mil páginas, o que transmite uma certa ideia sobre o desenvolvimento desta disciplina. 7. Ver a respeito: LAPLANCHE, J. & PONTAL1S, J. B. Vocabulário da Psicanálise, verbetes sobre Resistência e Mecanismos de Defesa. K. Idem, verbete Perlaboração, 9. Mencionamos a respeito o trabalho, aplicável também á psicoterapia e hoje ainda atual, de A. GREEN, A Psicanálise diante da oposição da história e da estrutura
(1963), em: Psicanálise: Problemas Metodológicos. Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 100-112. 10. Ver Vocabulário da Psicanálise, item Trabalho de Luto. Ver fambem o trabalho original de FREUD a respeito: Luto e Melancolia (1917). 11. A obra de referência a respeito constitui sem dúvida o livro de RICOEUR, P, Da Interpretação. Ensaia sobre Freud. (1965) Rio de Janeiro, Tmago, 1970. 12. Esta noção de "só depois" ou de "posterioridade" representa uma noção teórica e técnica importante na obra de Fieud, mas que a muitas vezes despercebida, em consequência de traduções inadequadas. Ela se refere a concepção da causalidade psíquica inerente á psicanálise, a saber, que determinadas experiências ou impressões podem ser transformadas em função de experiências posteriores, a partir das quais o sujcílo reinterpreta as significações das primeiras. Ver a respeito o Vocabulário da Psicanálise, verbete Po.iterioridade. 13. MOFFAT, A. Terapia de Crise (Teoria temporal do psiquismo). São Paulo, Cortez Editora, 1933. 14. BELLAK, L. & SMALL, L. Psicoterapia de Emergência e Psicoterapia Breve. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980. 15. Insight e "tomada de consciência" têm acepções semelhantes, mas preferimos o "último termo, ou então, ''conscientização", por ser português. Além disto, o termo inglês não rende Iodas as implicações e riquezas do lermo alemão Einskht, muito comum nesse idioma, onde não detém nenhuma conotação técnica especial. Esfa lhe foi atribuída depois pelos autores ingleses, sem nenhuma indicação de Freud neste sentido.
Capítulo 7
A questão da indicação para psicoterapia
A indicação corresponde a um momento privilegiado da investigação preliminar. Finalizando as entrevistas iniciais, cabe tirar as conclusões das diversas modalidades utilizadas nesta investigação, a saber, além das entrevistas propriamente ditas, a anamnese, o psicodiagnóstico, exames complementares (somáticos ou psicológicos). A partir dos dados assirr. colhidos, lemos que elaborar uma avaliação geral que possibilite uma síntese. Esta deve permitir uma indicação que, para ser pertinente, tem que levar em conta uma série de fatores, em particular três: o estado psicopatológico do paciente, a sua motivação, determinados fatores secundários (1). A partir daí, será possível esboçar um prognóstico, com toda cautela é claro... Antes de discutir estes três parâmetros, uma palavra sobre os diversos procedimentos íveis de levarem à indicação terapêutica. Ao falar de "indicação terapêutica", não há dúvida quanto à referência, a saber, o modelo médico. Este tenta objetivar ao máximo a sua coleta
164
de dados, para chegar a um diagnóstico com provável, idealizando o mais objetivo tratamento possível. Este procedimento, aplicado tanto em medicina velerinária quanto em medicina humana, deixa totalmente de lado o aspecto do sujeito, o seu sofrimento subjetivo, os seus motivos, os seus desejos, a sua globalidade psicossomática. Portanto, o critério diagnóstico, quão importante que seja, é insuficiente para a indicação em psicoterapia, porque negligencia as dimensões subjetivas da problemática a ser "tratada". Por esta razão, outros critérios devem ser levados em conta, embora todos eles contenham armadilhas de unilateralidade. Isío vale em particular para aquele procedimento que se esforça em considerar (e satisfazer), em primeiro lugar, as "necessidades" do cliente, a começar pelas suas necessidades afetivas. Se este critério prevalece, toda demanda emanente de um cliente em potencial será atendida, sem questionar o estado psicopatológico, sem testar a motivação profunda, 165
sem sequer indagar sobre a pertinência de uma psicoterapia. Nestas circunstâncias, o cliente terá muita dificuldade cm se engajar, em se motivar para o trabalho, para a penosa tarefa de perlaboração. Isto, no entanto, não excluirá a "curtição" do aqui e agora, onde uma série de necessidades afetivas podem encontrar satisfação, de ambos os lados, cora gratificações recíprocas, mas com pouca elaboração psicoterápica. Porém, se esta não está operando, não seria isto decorrente de uma indicação improcedente, ou de ela ter sido descartada em benefício de outros objetivos? O critério de "benevolência absoluta" do terapeuta, portanto, não é o mais judicioso para proceder a uma indicação pertinente. O seu contrário o é lampouco, a saber, o que podemos chamar de modelo conformista da "seleção" do paciente. Aí, os pacientes são aceitos para psicoterapia não em função da demanda que apresentam, mas da demanda do próprio terapeuta, isto é, do seu interesse pessoal em trabalhar (ou não) com um determinado candidato à terapia. Se este interesse é importante, ele não pode constituir-se em critério único para o ingresso em psicoterapia; senão, corre-se o risco de transformar a etapa de avaliação e indicação em uma simples seleção, destinada a atender às necessidade.; do terapeuta, afetivas, financeiras, científicas ou outras. Desta forma, cie operaria a seleção para que possa desenvolver o seu trabalho, em conformidade com o paciente "ideal" previamente idealizado, mas em detrimento dos pacientes "reais" que a ele se apresentam. Se porventura um candidato corresponder à idealização arquitetada, ele terá a sorte de ser "selecionado" •— mas pairará sempre uma dú166
vida sobre a aceitação plena e incondicional da sua pessoa concreta, o que poderá pesar muito no desenrolar futuro da relação. Por outro lado, podemos nos questionar se esta "aceitação plena e incondicional" existe, se ela é humanamente possível. Acreditamos que não: ninguém é totalmente transparente para si mesmo, nem totalmente "bom" frente ao outro, razão pela qual cabe desconfiar tanto da própria bonança, no acolhimento aparentemente pleno do paciente, quanto do próprio egoísmo, disfarçado sob argumentos mais ou menos astuciosos, quanto a interesses científicos ou técnicos particulares. Percebe-se que o ideal do procedimento indicatório consiste em um acordo negociado, levando em conta todos os aspectos acima mencionados. Somente pela conjugação das considerações sobre diagnóstico, sobre interesse (ou demanda) do candidato e interesse do psicoterapeuta, será possível promover um processo adequado de indicação e de prognóstico e, por conseguinte, de ingresso {e de prosseguimento) em uma terapia. Sem a interação destes elementos, a indicação será enviesada demasiadamente para permitir um jogo equilibrado entre os diversos enfoques e interesses — jogo este que se prolongará durante toda a psicoterapia e que deve dispor, desde o início, de condições ótimas para desencadear o processo de elaboração rumo aos objetivos propostos. Para que esta interação seja efetiva, é claro que elementos essenciais como confiança, simpatia ou até empatia recíproca devem estar presentes. Todavia, estes não se deixam criar artificialmente; se a tonalidade prevalente é de antipatia —•
unilateral ou mútua —, deve-se desistir de querer iniciar um trabalho em conjunto. Esta situação ocorre com uma certa frequência e não deve ser escamoteada pelo terapeuta, quando a percebe; melhor será então encaminhar o candidato a outro profissional, invocando as razões que ihe parecerem mais plausíveis — sem mentir, mas também sem ferir desnecessariamente a susceptibilidade do outro. O "entusiasmo terapêutico" raramente corresponde a uma postura adequada e madura diante do paciente; ele decorre facilmente de uma superestimação de si mesmo, ligada a ideias (juvenis) de onipolência (terapêutica) e de auto-suficiéncia, que não se coadunam com os meios reais, isto é, limitados, dos quais dispõe o terapeuta em sua atuação profissional. O desejo de ser um "grande terapeuta", se não um "terapeuta perfeito", é compreensível, mas é contraproducente e contém mais armadilhas do que meios eficazes de intervenção. Isto dito, não se quer dizer que a "fé" do clínico em seu trabalho não seja importante: ele tem que acreditar no que faz, tem que ter consciência por que optou pela sua profissão, mas tem que ficar realista e demonstrar permanente autocrítica. Não é verdade, em nosso entender, que "toda psicoterapia é boa, desde que o psicoterapeuta seja bom", como já foi afirmado. Primeiro, é difícil definir o que é um "bom" psicoterapeuta e, cm seguida, é certo que mesmo os "melhores'' terapeutas conhecem fracassos, independentemente de sua atuação (ou ainda, cometendo erros), tão grande é o número de variáveis que intervêm no complexo jogo destas inleraçôes. Nem todas esías variáveis se deixam controlar
— o psicoterapeuta não é demiurgo, nem taumaturgo, mas uma pessoa humana limitada. Como tal, tem que se esforçar ao máximo, mas sem perder a modéstia. amos em seguida a enumerar as principais variáveis que participam do processo indicatório.
7.1. O eslado psicopaíológico Colocamos a questão da psicopatologia em primeiro lugar, em conformidade com a nossa definição do campo psicotcrapèutico como fazendo parte do campo clínico. E pertinente distinguir aí entre as queixas apresentadas pelo paciente, a sintomatologia e as estruturas psicopatológicas subjacentes. Em nosso entender, é insuficiente referir-se apenas à sintomatologia enumerada pelo primeiro ou percebida pelo terapeuta. Inúmeros são, hoje em dia, os quadros assintomáticos (os chamados "transtornos de personalidade"), devido à evolução "metablética"(2) dos distúrbios psicopatológicos e de suas expressões. Além disto, é sempre interessante reparar, no discurso do paciente, nas eventuais discrepàncias entre as suas queixas e os seus sintomas; ele pode, por exemplo, enumerar estes últimos sem se queixar deles. Considerá-los como sinónimo seria precipitado. Por outro lado, a consideração das estruturas subjacentes — nas quais acreditamos — nos parece de suma importância para uma primeira triagem, segundo as grandes categorias nosográficas, e para uma avaliação correta quanto à indicação da abordagem psicoterápica e da conduta {ou estratégia) terapêutica a adotar. Nesta primeira operação de triagem, ainda grosseira, cabe distinguir entre as 167
categorias nosográficas de neurose, psicose e psicopatia. Isto não significa querer excluir a categoria da "normalidade", mas como a sua definição continua altamente problemática, e como a delimitação entre neurótico e normal é fluida, não faz muito sentido discutir aqui esta categoria, supostamente a mais comum. . . Ademais, ao discutir sobre a indicação para psicoterapia, supõe-se ainda que pessoas "normais" raramente consultam à procura de psicoterapia; se isto ocorrer, no caso de artistas por exemplo, não se correrá grandes riscos, aplicando o "princípio de cristal" de Freud (3), em assimilá-los aos neuróticos, o que não terá nada de pejorativo se pensarmos na presença de micro, se não de macropatologías na vida (íntima) de todos nós... De maneira muito esquemática, podemos formular que os diversos quadros neuróticos são mais indicados para psicoterapias profundas (ou "descobridoras"), com exceção das chamadas neuroses "atuais" e de distúrbios leves; que os estados psicóticos podem ser trabalhados psieoterapicamente, mas sob formas de terapias de apoio ou de manutenção, paralelamente com terapias medicamentosas; que os quadros de psicopatia não são íveis (ou raramente) à abordagem psicoterápica, requerendo então medidas sócio-educativas. A distribuição diferencial destes quadros, aliás, é ilusírada pela piada bem conhecida em cursos de psicopatología, segundo a qual o neurótico procura terapia por ele mesmo, enquanto o psicótico é levado pela família e o psicopata pela polícia... Se esta distribuição é procedente, ela exige diferenciações bem mais acuradas. Em particular, os estados psicopatológi168
cos nunca podem ser discutidos de maneira abstraía, isto é, sem referência à personalidade do paciente, à sua motivação e aos fatores secundários (ver abaixo). Estes elementos juntos fornecem o relevo concreto de sua problemática. Se o diagnóstico considera — fiel ao modelo medico — unicamente o quadro psicopatológico, investigado da maneira mais objetiva possível, cie é insuficiente para uma indicação adequada; somente o conjunto das variáveis que dizem respeito ao paciente (e não somente à sua "doença") poderá nos fornecer uma base mais segura para indicar a psicoterapia que parece adequar-se mais ao seu caso. Mesmo assim, esta indicação será sempre conjecturai e nunca objetiva, exata ou precisa. Erros de indicação, portanto, são sempre possíveis e, de fato, acontecem com frequência, também porque delimitações nítidas não existem, como já vimos, entre as diversas formas de psicoterapia. Não obstante, faz sentido discutir as indicações prioritárias que decorrem da consideração da psicopatologia. Iniciamos pelas neuroses, de longe os quadros mais frequentes pelos quais se procura psicoterapia. No entanto, cabe distinguir entre as neuroses atuais (ou traumáticas, ou ainda, as "reações neuróticas") e os conflitos neuróticos ("desenvolvimentos neuróticos" ou "psiconeuroses"). As primeiras são limitadas no tempo e obedecem a uma causalidade dircta entre um evento patogêmco ("traumático"), relativamente circunscrito, e os sintomas subsequentes, aparecendo logo em seguida àquele evento. Tais quadros representam uma boa indicação para breves psicoterapias de apoio, focalizando as reações desmedidas quantitativas e/ou qualítati-
vãmente ao evento, sem pretender qualquer aprofundamento. Nesta abordagem, tenta-se então (e em geral se consegue) provocar uma "reação catártica" pela qual as tensões oriundas do choque traumático são descarregadas. O quadro evidentemente se complica, se uma tal reação neurótica se enxerta em uma personalidade já razoavelmente neurotizada, caso em que se deve pensar em uma psicoterapia mais prolongada, após a remoção dos sintomas atuais — se a pessoa o desejar... Quanto aos conflitos neuróticos, eles se caracterizam pela sua historicidade, ou seja, correspondem a desenvolvimentos problemáticos desde a infância (embora possivelmente com intervalos de latÊncia). Eles representam as indicações clássicas para psicoterapias aprofundadas, isto é, descobridoras, idealizando o objetivo de uma resolução ampla dos conflitos (inconscientes) com vistas a uma libertação, ampla ela também, dos entraves criados em consequência daqueles conflitos ou das lutas defensivas que desencadeiam. Para que ocorra a perlaboração (e a simbolização) de maneira satisfatória, precisa-se em geral de um prazo bastante grande; porém, certas problemáticas, mesmo já de longa duração, se deixam resolver por psicoterapias breves específicas, quando indicadas (ver os critérios de Malan (4), por exemplo) e quando bem conduzidas. Não entramos aqui nesta discussão, que foge ao nosso tema geral. Não se pode querer prescrever, de maneira concreta, indicações de determinadas formas de psicoterapia para determinadas perturbações neuróticas. Aventamos tão-somenfe que quanto mais grave
ou mais cronificado um quadro neurótico, mais ele requer uma terapia aprofundada e, em geral, prolongada; ao contrário, formas de terapia que não visam um aprofundamento da problemática, ou que nem sequer se questionam sobre eventuais conflitos profundos envolvidos, preferindo desenvolver a atuação ao nível do "aqui e agora", do corpo, das poteneialidades ignoradas da pessoa, de sua racionalidade inoperante, dos seus sistemas de interaçao deficientes, ou mesmo, símplesmenle, das carências afetivas apresentadas — todas aquelas terapias pois que trabalham mais a superfície e os contatos cotidianos do cliente, podem ser indicadas para o tratamento de problemáticas neuróticas não demasiadamente graves, ou seja, que não hipotecam demasiadamente o funcionamento psíquico e a integração social do portador. É muito comum, hoje em dia, distinguir entre neuroses sintomáticas (grandes histerias, hipocondrias, fobias, neuroses obsessivas...) e neuroses sem sintomas caracterizados (neuroses de caráter, personalidades neuróticas, transtornos de personalidade. . . ) . As segundas, sem dúvida, estão aumentando nas últimas décadas, sendo que as mudanças sintomáticas exigem também mudanças terapêuticas, em particular no que diz respeito a perturbações narcísicas (5). Contudo, em nosso entender, as mudanças dos quadros psicopatológicos em geral requerem mais mudanças técnicas, no interior de formas psicoterápicas já constituídas, e não têm repercussões dirctas sobre a questão da indicação — a não ser no sentido, já mencionado, de eles tenderem cada vez mais para a cronificação, o que evidentemente afeta também a indicação. 169
Neste contexto das mudanças sintomáticas e até nosográficas, cabe lembrar logo os estados depressivos, hoje em franca ampliação. As suas formas são múltiplas, as suas "causas" controvertidas, as suas terapêuticas também... A indicação principal é aquela da psicoíerapia de apoio, em particular nas fases depressivas agudas. Este apoio, no entanto, pode evoluir para um trabalho mais aprofundado — aproveitando os intervalos menos marcados pela depressão — visando à elaboração do problema de dependência {ou simplesmente, dos elementos neuróticos . . .) que, em geral, caracterizam a personalidade depressiva. Mas qualquer que seja a inclinação do terapeuta, nunca deve-se esquecer a importância da medicação an ti depressiva. Isto vale ainda para as "depressões mascaradas" ou camufladas, isto é, sotnatizadas, bem corno para o amplo leque das afecções chamadas psicossomáticas. Nestas últimas, porém, será muitas vezes indicado iniciar o trabalho terapêutico por uma abordagem corporal, incluindo sobretudo relaxamento, sob suas mais diversas formas. Dependendo dos resulíados (e, como sempre, da motivação em continuar e aprofundar), pode-se ar paulatinamente para uma forma mais psicoterápica, ou até mudar de terapeuta, se parecer conveniente. As queixas que focalizam problemas sexuais exigem uma atenção particular por parte do entrevistador. Ele tem que distinguir entre sintomas sexuais ligados a desenvolvimentos neuróticos, e distúrbios sexuais isolados. Porém, é duvidoso que existam realmente tais distúrbios isolados, isto é, sem ligação com conflitos de ordem neurótica — a não ser que se 170
trate, evidentemente, de problemas orgânicos. Eis que a indicação para uma terapia especificamente sexual, ou para uma psieoterapía "geral", depende da demanda do paciente. Se ele coloca em foco apenas o distúrbio sexual, de alguma forma desconectado do conjunto de sua vida, ele será mais inclinado por uma terapia sexual (comportamcntal, bioenergética, corp o r a l . . . ) ; caso contrário, interessar-se-á por uma abordagem mais ampla, para trabalhar os conflitos subjacentes às queixas sexuais.
ciem consciente mente (primeiro) para terapias individuais. A ideia de uma abordagem em conjunto pode caminhar, durante os processos individuais, e um dia desembocar em uma demanda explícita. Os diversos quadros de deficiências físicas e mentais, congénitas ou adquiridas, são indicações seguras para terapias de reabiliiação ou para treinamentos educativos, em particular na linha comportamcntal. Avaliações cuidadosas deverão, no entanto, apurar a origem e a extensão destas deficiências, e investigar se não se irata de pseudo-afecções, notadamente em crianças e adolescentes, necessitando então de abordagens propriamente psicoterápicas.
Estas serão então consideradas como sintomas quaisquer, isto é, não essenciais em si, mas representantes dos desenvolvimentos conflituosos remontando à infância. Não é supérfluo, aliás, lembrar que segundo as concepções da psicanálise, as perturbações sexuais mantém uma relação íntima com as neuroses; estas, em suas mais variadas ramificações, sempre afetam a esfera sexual, ou melhor, psicossexual da pessoa, o que produz facilmente sintomas ao nível da função sexual. Disfunções sexuais não neuróticas sem dúvida existem, mas elas nos parecem representar uma minoria.
As jarmacodependências de todos os tipos, inclusive de álcool e de fumo, sem falar dos medicamentos, raramente são boas indicações para abordagens "clássicas", isto c, rigidamente estruturadas, com frequências e procedimentos ritualizados. Tais pacientes poderão chegar a tais tipos de terapia em uma fase posterior, mas no início, será necessário oferecer-lhes uma assistência mais envolvente, mais afetiva do que técnica — sem no entanto perder de vista o objetivo terapêutico. Em consequência das oscilações da motivação destes pacientes, as psicoterapias — com ou sem período de desintoxicação hospitalar — raramente lerão uma continuidade dírcta, mas serão intermitentes, o que exigirá uma grande flexibilidade e disponibilidade da parte do psico(erapeuta(ó).
Diante de conflitos conjugais e familiares, a indicação que se impõe, teoricamente, é a terapia conjugal ou familiar — se os protagonistas o desejam. Se não há um consenso a respeito, a psicoterapia recai em geral sobre o membro da família diagnosticado como paciente, em detrimento da interação entre todos os membros ou entre os cônjuges. Cabe ao entrevistador incentivar, quanto possível, a aceitação de uma forma de psicoterapia grupai (de base analítica, sistémica ou mista), a não ser que os cônjuges ou outros membros da família se pronun-
Numerosos são hoje em dia os "estados limítrofes'", denominação bastante cómoda que dispensa dacidir quanto ã neurose ou psicose. . . Digamos que se trata de personalidades desestruturadas, com uma
I
grande fragilidade narcísica, com uma importante problemática de identidade e com descompensações periódicas, depressivas ou de despersonalização. A indicação psicolerápica, se não a melhor, pelo menos a menos eontra-indicada, é aquela de uma psicoterapia interpessoal subjetiva a longo prazo, ando por várias etapas de reconstrução da imagem de si (o sei}), até possibilitar um funcionamento mais integrado da personalidade{7). Os estados psicóticos, em seguida, representam tradicionalmente indicações para o tratamento psiquiátrico. Porém, muitos pacientes psicóticos podem aproveitar, além da terapia medicamentosa, de um acompanhamento psicoterápico. Neste é possível focalizar aspectos particulares das dificuldades enfrentadas, como as crises de angústia, a falta de comunicação com os outros, o apragmatismo, problemas profissionais etc. Evidentemente, este acompanhamento terá que se restringir às fases de acalmia, sendo que nas fases de surto, prioridade terá que ser dada à medicação ou mesmo à internação. Em muitos casos de psicose, a abordagem familiar é a mais indicada, sobretudo quando o clínico percebe a presença de ligações simbióticas que, no seio da família, exercem um efeito psicotizante sobre um dos membros. A terapia familiar tentará, em tais casos, provocar uma redistribuição dos papéis na família e das interações que estes determinam, para tirar o paciente do seu papel de bode expiatório, ou seja, de "paciente diagnosticado". Em outros casos, embora raros, será possível desenvolver psicoterapias profundas a longo prazo, removendo ou, 171
pelo menos, tornando tolerável o núcleo psicótico do padente. Quanto às diversas formas de psicopatia, elas não representam, tradicionalmente, boas indicações para psicoterapia, a começar pela falta de interesse em se engajar em um tratametnto, ainda que a curto prazo. Como a grande dificuldade do psicopata — delinquente ou não — consiste em respeitar a lei, cie será sempre rebelde contra qualquer autoridade, inclusive aquela, muito relativa é verdade, do psicoterapeula: ele não será inclinado • se questionar a si mesmo sobre os problemas que enfrenta na vida, mas procurará sempre respostas fora dele para se justificar, isto c, para acusar os outros, as autoridades, a sociedade... Este quadro, no entanto, muda, quando elementos neuróticos (ou mesmo psícólieos) participam da conduta psicopata, situação na qual um interesse pela abordagem psicoterápica pode surgir, a partir de sentimentos de culpa, de traços obsessivos ou perversos que incomodam, ou ainda, de crises de angústia ou de compulsividade que conduzem a atos anti-sociais. Mas tais casos "limítrofes" são mais raros e não mudam a dificuldade geral de propor — ao invés de impor — um tratamento a esta clientela muito especial. amos assim, rapidamenle, em revista, os grandes quadros psicopatológicos, cuja diferenciação mais acurada não nos compete aqui. Para definir indicações psicoterápicas com pertinência, o entrevistador clínico tem que dispor de conhecimentos aprofundados em psicopatologia, bem como de uma experiência clínica ampla. Esta só se adquire com o tempo, de sorte que a realização de estágios, de 172
supervisões e de práticas interdisciplinares é indispensável para desenvolvê-la. Acrescentamos apenas a observação seguinte: todo quadro psicopatológico, mesmo com o maior comprometimento orgânico — como no caso de psicoses exógenas, ou de alcoolismo, por exemplo — é ível de melhora através de psicoterapias adequadas, de apoio ou de manutenção, desde que estas sejam conduzidas com cautela, com modéstia e pleno conhecimento dos seus limites, seja tão-somente como forma terapêutica auxiliar. Impregnado deste espírito, o psicoterapeuta será capaz de oferecer ajudas mais eficientes e mesmo mais duradouras, até em casos considerados como desesperadores, do que movido por ambições grandiosas ou pelo furor sanandi de querer curar a Iodos...
7.2. A motivação do paciente
muflando hesitação, ambivalência, ou simplesmente receio em se engajar na "aventura" psicoterápica. Enumeramos quatro tipos, seguindo aqui as ideias de Schneider(8). Em primeiro lugar, certos paeientes apresentam uma motivação somática, isto é, baseada em achaques físicos (pressão alta, distúrbios digestivos, cardiopatia ete), cuja relação com conflitos psicológicos não se deixa evidenciar. Muito pelo contrário, estes são negados, não existindo então nenhuma razão para pensar em uma psicoterapia. Tais pacientes (ou "doentes funcionais") procuram, por conseguinte, mais o clínico geral ou algum médico especialista — mas, após várias consultas c andanças, são com frequência encaminhados para uma psicoterapia, sem que sejam pessoalmente motivados ou mesmo capacitados para um tal empreendimento (ver acima, 3.6.).
Se o estado psicopatológico representa um fator objetivo que pesa na indicação, a motivação se constituí em um fator subjetivo cuja avaliação decidirá sobre a indicação efetiva. Considerando somente o primeiro falor, chegaremos a uma indicação, talvez ideal, mas inevitavelmente abstraía e totalmente insuficiente para engajar uma psicoterapia. Esta, ninguém pode prescrever ou encomendar para ouíra pessoa, à distância ou magicamente; é o próprio sujeito que tem que querer fazê-la, uma vez que consiste em um tratamento subjetivo, que o paciente não recebe, mas faz. A sua motivação é, portanto, fundamental para uma indicação pertinente e realista.
Em alguns destes casos, porém, é possível suscitar um interesse pelíi abordagem psicológica, sensibilizando o paciente para a dimensão intrapsíquica e para eventuais conflitos ali alojados, Como já frisamos, esta sensibilização será facilitada iniciando-se o trabalho com uma abosdagem corporal, na linha do relaxamento; mesmo assim, no entanto, "Ia será bem-sucedida somente em uma minoria de casos: a remoção da mera motivação somática e de sua couraça defensiva é uma tarefa árdua. Como não é possível convencer alguém da inadequação de sua própria convicção, se esla lhe serve para fins defensivos, faltam instrumentos adequados para mudar a motivação, no senlido de suscitar um interesse ou mesmo uma demanda por psicoterapia.
Podemos discernir vários tipos de motivação com características defensivas, ca-
A motivação intelectualizada representa um outro obstáculo para um ingresso
prometedor cm psicoterapia. Aí, o paciente apresenta-se com uma demanda psicológica muito bem formulada e até superclaborada, mas carece de uma verdadeira motivação interna, de um "desejo" em se "submeter" a uma psicoterapia. Às vezes, ele quer impressionar o outro com os seus conhecimentos psicológicos ou com proezas de auto-análise, às vezes quer francamente competir com o terapeuta, tentando convencê-lo de dispor de uma visão adequada ou mesmo perfeita dos seus próprios conflitos (explicando, por exemplo, longamente, o complexo de Édipo do qual estaria padecendo. . .). fi claro, no entanto, que não basta ter uma visão intelectual ou racionalizada das próprias dificuldades psicológicas para engajar-se em uma terapia, uma \cx que esta não consiste em uma discussão teórica. Em tais casos, é aconselhável fazer várias entrevistas para testar a motivação do sujeito, para descobrir se existe um desejo pessoal em se questionar e cm desvendar o que a intelectualízação encobre — ou se existe a convicção de já dispor de todas as respostas, tornando qualquer questionamento supérfluo. Neste caso, a psicoterapia será contra-indicada; na primeira eventualidade, a intelectualização se deixa contornar ou neutralizar aos poucos, com um manejo hábil da relação psicoterápica, mas para que isto seja possível, exige-se muita experiência da parte do psicoterapeuta — até para não cair ele mesmo na armadilha da discussão teórica. Podemos falar de motivação deslocada, quando a pessoa se apresenta sob pressão ou para agradar a uma outra pessoa. Tais candidatos "querem" fazer psicolerapia, mas nas entrevistas percebe-se que a motivação é superficial, adquirindo al175
guma consistência apenas em consequência da ligação afetivu com a pessoa incitadora. Com esta, descobre-se existir uma dependência acentuada, problemática sem dúvida a ser trabalhada em terapia, mas que arrisca, por si mesma, impossibilitá-la, uma vez que se tem de colocar em questão o laço de dependência. Em tais casos, pois, a demanda não é autêntica, mas é oriunda da oulra pessoa. Tomando consciência desta situação deslocada, o paciente pode chegar a manifestar sua motivação pessoal ou pode desistir da ideia, até que o parceiro a inculque novamente. .. Hm quarto lugar, cabe falar da pseuáomotivação, ocorrendo quando a. pessoa é mandada por uma autoridade. Ela aceita, então, submeter-se a uma psicoterapia em obediência a este mandato, ou simplesmente porque espera obter algumas vantagens com esta sua "docilidade". Porém, não existe um desejo pessoal em engajar-se em uma terapia — ou melhor, aceita-se esta "submissão", mas por interesses que não são íveis de uma elaboração psicoterápica. Esta, tomo já vimos, não consiste cm uma ividade submissa, razão pela qual, a rigor, ninguém "se submete" a uma psicoterapia, mas a jaz, aíivãmente, junto com o psicoterapeuta, mas também, de alguma forma, "diante"' dele, mas nunca "abaixo1' dele. No caso de uma pseudomotivação, não há conflitos psicológicos reconhecidos, base indispensável para uma motivação pessoa! e uma demanda de terapia. Na maioria das vezes, também não há um sofrimento pessoal; se este existe, ele não é reconhecido, é negado ou, ainda, é atribuído a outros, seja em suas causas, seja em seus efeitos. Desta maneira, o ingres174
so em psicoterapia formalmente c possível; sem a cautela do entrevistador, tais ingressos chegam realmente a se efetuar, mas à revelia daquelas condições que, imprescindíveis, permitirão o desenvolvimento e aprofundamento da relação psicoterápica. A partir de uma reflexão descritiva, é fácil distinguir estes quatro tipos de motivações defensivas. Contudo, na prática, esta distinção se torna mais difícil, uma vez que não existe motivação "pura": todo pedido de psicoterapia contém alguma ambiguidade, hesitação e ambivalência, decorrente do medo diante da incógnita que representa a psicoterapia — medo que coexiste mesmo com as mais apuradas motivações, as mait, conscientes e as mais decididas para se questionar, se enfrentar e se descobrir. Mas os conflitos psicológicos profundos são tenazes e não se deixam pôr em xeque por disposições conscientes; aqueles acompanham estas, são sublíminarmente percebidos c provocam medo e recuo, apesar de toda a "boa vontade" de entrar em terapia. Cabe, pois, ao entrevistador, operar com discernimento circunspecto a avaliação da demanda do paciente, levando em conta o grau de motivação, bem como o peso dos benefícios (primários e secundários) que tira de sua problemática psicopatológica e de suas atitudes defensivas, já mais ou menos incorporadas ao seu caráter e ao seu modo de vida. Se, nesta avaliação, nenhum dos quatro tipos mencionados se sobressai, a motivação pode ser considerada como válida e suficiente para um ingresso em psicoterapia. E possível traçar uma outra diferenciação entre tipos de motivação, tocando desta vez às expectativas do paciente para
com a terapia, e sobretudo para com a figura do terapeuta. Em todas as motivações humanas, intervêm elementos infanlis. Contudo, se estes prevalecem, estamos diante de um pedido de psicoterapia impregnado pelo pensamento mágico. Aí, o terapeuta é colocado em uma posição de onipotência e onisciência, a partir da qual se espera que transmita ao paciente parte de seu saber e de seu poder. A atitude do paciente será iva e submissa, embora ávida de ''receber' do outro —• mas de receber o quê? No extremo, de receber tudo, e em particular de receber a "cura" de Iodos os males e achaques que o perseguem. Percebe-se como esta expectativa é infantil, como ela acredita no poder mágico do terapeuta e como ela conta com a intervenção milagrosa daquele todo-poderoso. . . Poderá ser grande então a tentação deste de entrar neste círculo, onde se lhe atribuem poderes tão extensos e tão gratificantes, e onde lhe é oferecido um pedestal do qual poderá influenciar ou simplesmente dominar os outros. Portanto, ele não deverá sucumbir a esta tentação, mas desfazer esta expectativa mágica, através de um verdadeiro trabalho de desmistijicação, tanto do processo psicoterápico quanto da sua própria pessoa — trabalho que se confunde com o trabalho da psicoterapia em si, de lal maneira que não é possível, com certeza, liquidá-la nas entrevistas iniciais. Não obstante, é importante avaliar a extensão deste pensamento mágico; de alguma forma, ele sempre estará presente. Mas se ele domina sobremaneira, o ingresso em psicoterapia será impossibilitado. Quando predomina o pensamento mágico, os conflitos afloram dificilmente,
porque ficam relegados ao inconsciente: desta forma, haverá engajamento pessoal insuficiente, com pouca motivação paru (se) trabalhar e se tornar autónomo. isto vale ainda para um segundo tipo de expectativa, embora siluando-se aos antípodas do primeiro, a saber, a demanda racionalizada. Este tipo de paciente vem com uma motivação muito intelectualizada: ele já "sabe tudo" e vem mais à procura de uma aprovação, até para que seja dispensado de um esforço de desvelamento maior. Assim, ele tentará convencer o entrevistador ou o terapeuta de como as suas teorias sobre seus problemas são bem-fundadas e pertinentes •— pelo que sabe evitar o conflito, apresentando tudo de maneira racional e lógica. Este sistema racional, elaborado de modo defensivo, protege os pontos fracos, até diante de uma intervenção terapêutica cuja necessidade pode ser sentida, mas que inspira medo. Cabe testar a solidez destas barricadas defensivas, mediante certas indagações, colocando em dúvida o bem-fundado da argumentação do paciente, lançando mão de uma interpretação "de ensaio" para ver a reação. Desta forma, será possível checar a presença de uma motivação verdadeira (ou não) "atrás" da fachada racional; será possível ver, também, até que ponto o paciente tem consciência dos seus conflitos, ou se está pelo menos disposto a elaborá-los. Se há uma negação total de tais conflitos, "já resolvidos", no entender do paciente, não haverá base suficiente para ingressar em um trabalho psicoterápico a médio ou a longo prazo. Podemos invocar um terceiro tipo de motivação, afeíiva mais do que intelectualizada. Ela representa a expectativa 175
ideal para o início de um trabalho psicoterápieo, quando combina a consciência da problemática pessoal com a motivação, ou seja, o desejo de "se tratar", de se confrontar consigo mesmo. Neslas condições, o trabalho é aceito, apesar de todas as suas exigências, durezas c sofrimentos; ele é aceito, porque a pessoa tem consciência de sua necessidade e acredita nele, como sendo capaz de levá-la a um maior conhecimento de si mesma e, ademais, a uma libertação, pelo menos parcial, dos seus conflitos. Este tipo de motivação, profunda, refletida e decidida — na medida do possível, uma vez que nunca se eliminam todas as hesitações e ambívalências —, merece ser chamado de ajetivo, pela predisposição que implica de desenvolver um vínculo afetivo no trabalho com o psicoterapeuta. Ela representa a base da possibilidade de trabalhar juntos, em interação e com intercâmbios subjetivos. Se isto não representa uma garantia para que o trabalho seja bem-sucedido, constitui pelo menos a base mais segura que se possa encontrar ao nível da motivação inicial. Se o psicoterapeuta consegue delectar a presença deste lipo de motivação, ao menos parcialmente, cie pode proceder com segurança à indicação de uma psicoterapia propriamente dita. Não é raro, aliás, que, em tais casos, já as primeiras entrevistas tenham valor de psicoterapia, graças à intensidade do engajamento do paciente, à densidade humana que as caracteriza, c ao material subjetivo que emerge e já começa a ser trabalhado. A transição entre a fase de avaliação e as sessões psicoterápicas se torna então nalural, à condição, evidentemente, que seja 176
o mesmo profissional que dê continuidade ao trabalho.
Discutiremos aqui alguns fatores que não se revestem da importância da motivação e do estado psicopatológico, para proceder a uma indicação pertinente, mas que devem ser considerados para completar o quadro de indícios. Mencionaremos quatro fatores: a idade, o nível sócio-cultural, a inteligência e a estrutura da personalidade.
dências familiares, não (ou insuficientemente) resolvidas. A fase do jovem adulto corresponde, pois, a uma nova fase crítica, após a da adolescência. Porem, em oposição a esta, aquela se distingue pela presença de uma autocrítica — às vezes até aguda demais — que precisamente faz falta na juventude. Por conseguinte, aumenta a consciência quanto aos próprios problemas: as razões destes não são procuradas fora de si, nos outros, ou no sistema social em geral, mas são localizadas dentro de si, condição sine qua non, como já vimos, para que haja algum interesse por psicoterapia.
Se não existe uma idade ideal para se fazer psicoterapia, existem indicações bastante específicas para as diversas faixas etárias. Contudo, cabe lembrar mais uma vez que o processo indicatóiio não corresponde a um procedimento exato: ele será sempre aproximativo, conjecturai e, portanto, ível de erros ou pelo menos cie imprecisões, É necessário contar com estas que, de fato, são corrigíveis —• à condição do processo ser levado a cabo com competência e seriedade.
Nestas condições, o pedido de psicoterapia c frequente, representando uma boa indicação, cm geral, para uma abordagem descobridora — se é que há real motivação para tanto. Psicoterapias de grupo, no entanto, correspondem aí a uma alternativa interessante, uma vez que incluem a possibilidade de novos contatos humanos que podem torná-las mais atraentes do que as terapias individuais. Isto, de fato, vale também já para a própria adolescência.
Há duas faixas de idade onde se manifesta uma maior demanda de psicoterapia, a saber, entre 20 e 30 anos, e depois entre 40 e 50 anos. A primeira faixa corresponde à idade onde o jovem adulto se fixa profissionalmente e afetivamente Mas, muitas vezes, ao sair de casa e enfrentar o mundo externo, aparecem dificuldades, até aí escamoteadas e encobertas pela convivência familiar. Posto à prova fora da família, manifestam-se então inseguranças, inibições, desadaptações e outros sinais de conflitos internos, oriundos, em particular, de fortes depen-
Na faixa dos 40 a 50 anos, a situação já c outra, com problemáticas diferentes segundo o sexo. Entre 40 e 50 anos, o homem chega, de regra, ao apogeu de sua vida soeíal c profissional, com poucas perspectivas quanto a progressos ou mudanças substanciais. Com isto, ele inevitavelmente começa a meditar mais sobre a vida, sobre o sentido de sua vida, sobre a sua fase descendente, o declínio, a mortalidade. .. Os objetivos idealizados e ainda não realizados aparecem então como mais distantes, as possibilidades do futuro diminutas, as expectativas de grandes sucessos frustradas. . .
7.3. Fatores secundários que pesam na indicação
Tradicionalmente, o sucesso profissional é mais importante para o homem do que para a mulher. Apesar das grandes mudanças que ocorreram a este respeito na sociedade moderna, a mulher continua a ter um vínculo privilegiado com a maternidade e com a educação dos filhos. Ora, é durante a faixa etária dos 40 aos 50 anos que este vínculo aforuxa, que os filhos saem de casa à procura de sua própria realização, social, profissional e afetíva. A mulher-mãe se vê então diante da tarefa de dar um novo sentido, um novo conteúdo à sua vida, seja se aconchegando mais à unidade conjugal (se não aos afazeres domésticos), seja ampliando os seus contatos sociais. De qualquer forma, esta fase representa para ambos os sexos uma fase de mudança, implicando um estreitamento (tanto real quanto imaginário) do espaço vital e, por conseguinte, frequentemente, uma autodepreciação, cujos efeitos deprimentes devem ser aturados. Em outras palavras, trata-se de fazer o trabalho de luto pelas perdas sofridas, pelo ado evanescente e pelo futuro que se restringe. Aos sentimentos depressivos, juntam-se, então, aqueles de impotência, inutilidade e solidão crescentes, com o que aumenta a procura de ajuda psicoterápica. Esta se desenvolverá de modo diferente daquela do jovem adulto, visto que será mais difícil chegar a uma reestruturaçao global da personalidade, ou seja, à mais ampla resolução possível dos conflitos profundos. Cabe ao terapeuta avaliar, nesta segunda fase de grande demanda, o grau de restrição do campo vital da pessoa, a sua motivação, a menor ou maior flexibilidade de sua personalidade, as suas perspectivas de engajamento futu177
ro, para optar seja por uma psicoterapia de apoio, circunscrita à elaboração dos problemas concretos ligados àquela faixa etária, seja por uma psicoterapia descobridora e profunda, seja ainda por uma terapia "existencial". Quanto às psicoterapias indicadas durante a injância e a adolescência, cabe frisar a sua especificidade. Ambas contêm um fator de complicação, que é a presença dos pais, da família, que interferem no desenrolar da terapia ou fazem diretamente parte dela. Desta forma, esta terapia será mais complexa (ainda) que aquela do adulto, onde tradicionalmente a família está ausente •— a não ser no caso de pacientes psicóticos —, participando somente através de seus representantes interiorizados. A psicoterapia da criança e do adolescente corresponde pois a uma especialização, necessária lambem pela intervenção de outros instrumentos terapêuticos do que a verbalização, em particular o brincar, o dramatizar e outras formas não-verbais. Como não podemos discutir aqui os ingredientes desta formação especializada, remetemos o leitor à literatura específica sobre o assunto(9), lembrando que a distinção entre psicoterapias encobridoras e descobridoras se aplica também ao trabalho com crianças e adolescentes. A /unção pedagógica será sein dúvida maciçamente presente, particularmente nas técnicas derivadas da teoria da aprendizagem; não obstante, o divisor de águas quanto às duas formas mencionadas continua sendo o reconhecimento (ou não) da presença e da importância de conflitos inconscieníes. Partindo do pressuposto de que estes estão atuantes já na infância e na adolescência, torna-se claro que eles podem ou mesmo devem ser tra178
balhados, cabendo esta opção mais uma vez ao psicoterapeuta, em conformidade com a sua opção teórica e a sua posição ética. As psicoterapias com pessoas mais idosas devem adaptar-se às particularidades concretas destas faixas etárias. O que mencionamos a respeito da faixa dos 40 aos 50 anos, vale (mutatis mutandis) também para idades mais avançadas: a plasticidade dos processos psíquicos raramente será suficiente para uma terapia profunda. Salvo casos especiais, a indicação será prioritariamente para psicoterapias de apoio, focalizando dificuldades específicas (fases depressivas, ansiosas, de agitação, doenças. . .). Sem dúvida pode ser indicado praticar uma "terapia de manutenção", mas, na maioria dos casos, será suficiente um apoio temporário, até que a dificuldade em pauta seja suficientemente contornada, as perspectivas sombrias desanuviadas. No que tange à questão do nível sóciu-cultural, cabe frisar, em primeiro lugar, que ela não deve ser confundida com o nível económico. A condição económica da pessoa intervém eom certeza, uma vez que a classe socialmenfc favorecida tem mais o a informações sobre psicoterapia. Desta forma, cia pode mais facilmente interessar-se pela perspectiva terapêutica, ou mesmo chegar a bater na porta de um psicoterapeuta; mas dispor de informações não implica ainda se sentir motivado para iniciar uma psicoterapia; para isto, precisa-se de outras condições, que mais têm a ver com o nível sócio-cultural da pessoa (c com a sua personalidade, é claro) do que com o seu nível económico ou financeiro. Hm outras palavras, a pessoa não tem que ser abastada, mas tem que ser dife-
renciada, para que se inferesse por psieoterapia. Isto diz respeito não à riqueza material, mas à riqueza interna, no sentido de dispor daquelas características cuja presença é indispensável para possibilitar uma psicoterapia (v. acima, 3.6.), Esta diferenciação implica, pois, determinadas qualidades humanas, pelas quais a pessoa detém capacidade introspectiva e interesse pela dimensão psíquica da existência — qualidades estas que independem da classe social. De fato, não é raro encontrar pessoas que pertencem à população de baixa renda e que demonstram tais qualidades, como também é comum que pessoas oriundas das classes média e alta não as tenham. A dificuldade maior reside no o dos primeiros às informações sobre psicoterapia, e em seguida, aos próprios profissionais, para que um desejo de tratamento possa se concretizar. Percebe-se, desta forma, como é importante o psicoterapeuta não somente trabalhar em consultório particular, mas também em instituições (ambulatório, clínica social, hospital. . .), para que seus serviços sejam íveis à população menos afortunada. . .(10) Quanto à questão da indicação, o profissional tem que avaliar o nível sócio-cultural do paciente com referência a esta diferenciação interna, para concluir (ou não) sobre a possibilidade de uma psicoterapia. Nesta avaliação, iníervêm aspectos éticos no que tange à responsabilidade (social) do terapeuta. Ele nunca deveria perdê-la de vista, embora não seja possível regulamentá-la: cada um terá que decidir em função de sua própria consciência, se quiser dar a sua contribuição à melhora da justiça social . . .
Podem-se tecer considerações semelhantes sobre a questão da inteligência. Ela não depende da classe social à qual a pessoa pertence, mas, mais uma vez, da diferenciação interna desta. E clara que um mínimo de inteligência, ou melhor, uma inteligência média é necessária para poder aproveitar uma psicoterapia ou, simplesmente, para interessar-se por ela. No entanto, é muito mais uma questão da qualidade da inteligência do que do seu grau; não é raro encontrar pessoas intelectualmente brilhantes, mas com remoto interesse por psieoterapia c com remotas chances de poder tirar proveito dela. Isto vale em particular quando se trata de inteligência do iípo operacional, executiva ou técnica, onde se atribui pouco valor à introspecção ou aos valores humanos no sentido afetivo. Uma psicoterapia, como já vimos, não é apenas um empreendimento técnico ou formal, não se deixa operar por computador, mas implica a capacidade relacional da pessoa. . . Esta esíá afetada também em representantes de uma categoria psicopatológica que muitas vezes dispõem de inteligência aguda, mas que os desserve quando se trata de se questionar a si mesmos, a saber, as personalidades paranóicas. A sensibilidade afetiva c até uma certa humildade são sem dúvida mais importantes, para a indicação psicoterápica, do que uma inteligência superior, visto que a superestimação de si mesmo não prepara para um ingresso prometedor naquela relação interpessoal subjetiva que se trata de desenvolver. No caso de pessoas que apresentam um baixo grau de inteligência — estados limites ou franca debilidade mental — não se trata de indicações para psicotera179
pia, a Vo ser, evidentemente, os casos t!e pset dodebilidade. Uma avaliação pormenorizada, sobretudo com crianças, permitirá na maioria das vezes decidir esta questão. Se a deficiência é realmente "pseudo", islo é, devido a razões neuróticas ou depressivas (ligadas em geral ao contexto familiar), então a indicação para psicoterapia é clara. Se não, a abordagem terapêutica terá que focalizar muito mais a reeducação do que a psicoterapia propriamente dita, colocando em obra as técnicas que se coadunam com este objetivo(ll). Em último lugar, a questão da estrutura de personalidade. Todos os fatores que discutimos permitem uma avaliação apenas aproximativa, o que é mais nítido ainda neste último item. Certos profissionais preferem até nem tocar na questão da estrutura, achando-a supérflua... Não obstante, acreditamos que ela faz sentido e que sua apreciação, mesmo sumária, é relevante. Em particular, trata-se de avaliar a sua rigidez ou, pelo contrário, a sua flexibilidade. Pessoas rigidamente estruturadas, ao nível das chamadas jormações de caráler, encontram muitas dificuldades em se adaptar à situação psícoterápica. Muitas -vezes, elas tentam convencer o psicoterapeuta de que elas "têm razão", tentando Iransformá-lo em um aliado, ao invés de aceitar a sua imparcialidade (relativa, é verdade) para questionar e enfrentar a si mesmas, com o concurso dele. Um mínimo de flexibilidade é imprescindível para que o desejo de fazer psicoterapia seja seguido de uma colaboração efetiva. Se a rigidez é forte demais, a simples "boa vontade" fica inoperante, e os dois esbarram permanentemente com a 180
dificuldade de transformar a compreensão — perfeitamente possível — do ma.teria! patogénico em aproveitamento pessoal, ao nível da conduta e de mudanças mais globais da personalidade. Se esta dificuldade aumenta com a idade, ela pode estar presente, cm evoluções desfavoráveis, já no início da idade adulta, representando um modo particular de defesa ("pelo carãfer") diante dos próprios conflitos. Da mesma maneira, personalidades egocêntricas ou "narcísicas" encontrarão grandes resistências em aceitar as "regras do jogo", em "entregar" o seu material mais íntimo, em "entregar-se" no relacionamento psicoterápico e em se questionar diante do outro, cuja posição "de superioridade" é ressentida como ofensiva e humilhante... Estes tipos de personalidade são às vezes denominados de "egonsíntônicos", no sentido de viver em perfeita sintonia com o próprio eu. Nestes casos, o conflito defensivo foi de alguma forma assimilado pelo eu, foi-lhe incorporado para abrandar a oposição entre inconsciente —• fonte ou "Sugar" do material conflitante — e instância do eu. Chega-se então a uma identificação, a uma convivência íntima com esle material conflituoso, resultante em uma formação (ou deformação) de caráter que dificulta ou mesmo impossibilita a abordagem e a elaboração deste material. Desta maneira, a esfera conflituosa fica bem protegida, c a procura de uma ajuda terapêutica tem, muitas vezes, mais o sentido de fortalecei' esta proteção — se não é para testar, simplesmente, a força do terapeuta... *
*
*
Após ter discutido os diversos fatores que merecem consideração na questão da
indicação à psicoterapia, insistimos mais uma vez sobre o caráter aproximativo e subjetivo deste procedimento. Não existem critérios totalmente objeíivos aplicáveis a todos estes fatores, de sorte que o psicoterapeuta tem que assumir a sua responsabilidade pessoal no processo indicatório. Da mesma maneira, não existem meios exatos para chegar a um prognóstico ecrío, objetivo e fidedigno, o que nem na medicina existe; não obstante, o profissional tem que se questionar a este respeito, planejar a sua terapia, uma vez indicada, e prever pelo menos em grandes traços o seu desenvolvimento provável. Ressalta-se assim novamente uma das diferenças fundamentais entre medicina e psicologia clínica: na primeira, estando o agente patogénico identificado c o diagnóstico estabelecido, a terapêutica está seguramente indicada (fazendo abstração da possibilidade de erros diagnósticos). O procedimento é, portanto, exato e objelivo, se bem que na medicina humana, os fatores subjetivos (ou "psicossomáticos") complicam sobremaneira este quadro aparentemente simples. Os mesmos fatores, no entanto, se complicam bem mais ainda na área psicológica, onde não basta identificar os conflitos básicos.. . O engajamento subjetivo, mola mestra do processo psicoterápico, como vimos, é um fator de extrema complexidade, responsável por complicações sem fim, próprias da vida humana. Elas participam já do processo de indicação e não se deixam eliminar; o psieoterapeuta tem que ter consciência disto e tirar as conclusões que se impõem: que o erro está mais perto da natureza humana do que a certeza, como a mentira se evidencia mais do que a ver-
dade — O que não impede de procurá-las. Contudo, não cabe radicalizar a oposição entre medicina e psicoterapia. As diferenças existem e são fundamentais, mas existem também pontos de encontro e complementaridades. Isto se verifica em particular no campo da terapêutica, onde a combinação de terapia medicamentosa com psicoterapia é frequentemente indicada. Podemos enunciar como regra fundamental — mas tão raramente observada -— que nenhuma medicação psicotrópica deveria ser istrada sem um acompanhamento psicoterápico, seja tão-somente de apoio. A eficácia dos medicamentos aumenta pela ação conjunta, psíquica e somática, pela qua! a problemática que levou à prescrição medicamentosa está sendo inserida e trabalhada no contexto concreto e global da existência do paciente, ao invés de ser desconecíada por uma ação unilateral. Além disto, torna-se possível prevenir, desta forma, a ocorrência de dependências iatrogênicas aos medicamentos psic o trópicos, tão comuns quando o médico ou psiquiatra se limita à mera prescrição. São especialmente os benzodiazepínieos que induzem facilmente tais dependências, sem falar dos barbitúricos, mais desvastadores ainda. É importante, pois, que o psicólogo clínico tenha algumas noções de psicofarmacologia, para que possa dialogar com os colegas médicos, em verdadeira interdisciplinaridade, e para que possa reconhecer a pertinência de um concurso medicamentoso, em particular no caso de estados depressivos e de surtos psicóticos. Ademais, cabe discutir, além de tais indicações temporárias, a pertinência de 181
prescrição medicamentosa em estados crónicos, durante anos ou mesmo décadas; o acompanhamento psicoterápico corresponderá, então, sem dúvida, mais a uma relação de manutenção, paralelamente à ação medicamentosa. Nestes casos, uma alenção particular deverá cuidar da posologia, a ser mantida ao nível estritamente mínimo, para não entravar a ação psicoterápica, nem a alividade social e afetiva do paeiente. Os bons clínicos sabem disto, mas é necessário enfatizar a importância da cooperação, visto os numerosos abusos ou erros que se constatam. Isto demonstra mais uma vez a complexidade da indicação, a ser proferida com senso crítico — que deve resultar de amplos conhecimentos clínicos c humanos — bem como de permanente autocrítica. Finalizando, insistimos que é indispensável, para uma indicação pertinente, que o profissional conheça as diversas linhas e modalidades psicoterápicas. Não precisa ser um conhecedor profundo de iodas as abordagens; ele pode até discordar de pressupostos teóricos ou clínicos de algumas delas, mas em certos momentos ele tem que se questionar se tal linha não parece a mais indicada para um determinado paciente —• c tem que concordar, então, humildemente que em outras linhas c "escolas" se possa fazer um bom trabalho também. ..
Bibliografia e notas 1. Para o conjunto desta problemática, consulta-se tom proveito: MALAN, D. Psicoterapia Individual e a Ciência da Psicodinámica. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1983; em particular os capítulos 17 a 19, onde o autor exemplifica B sua concepção com casos clínicos. 2. VAN DEN BORG, J. Metablêtka of Leer der Verauderiiigen, Nijkerk, Callenbach, 1958 («.• cd.). 3. Mencionamos o "princípio de cristal" de Frcud já no primeiro capítulo; lembramos aqui apenas que esta metáfora serve de base para a abolição teórica da segregação entre normal e patológico. Freud se refere a esta metáfora explicitíimenle em 1933, na 31." Conferência de Introdução à Psicanálise; Edição Standard Brasileira, vol. XXII; Rio de Janeiro, Imago Editores, 1976. 4. MALAN, D. As Fronteiras da Psicoterapia Breve. Porto Alegre, Artes Médicas, 1981. 5. LASCH, Cri.: The Cuíiure of Narcisism. New York: Norton, 1979. O autor aí desenvolve uma análise da América do Norte dos anos setenta, onde a ênfase dada à individualização provoca comportamentos cada vez mais narcísicos, isto é, ligados ao culto da personalidade solipsista, enclausurada em sua redoma pessoal. 6. Ver BUCHER, R. c COSTA, P. F. A Abordagem Terapêutica do Toxicómano. Acta Psiquiátrica y Psicológica de América Latina (Buenos Aires) 31/3, pp. 113-130; 1985. 7. O representante mais destacado desta escola é sem dúvida HEINZ KOHUT. Ver, entre outras obras: Self e Narcisismo (1978). Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1984. 8. SCHNEIDER, P. B. Propédcutique d'une Psychothérapie. Paris, Payot, 1976. 9. Mencionamos apenas: — WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade (1971). Rio de Janeiro, Imugo Editora, 1975. — CHAZAUD, J. As Psicoierapias da Criança (1974). Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1977. 10. Ver MOFFAT, A. Psicoterapia do Oprimido. São Paulo, Cortez Ed., 19H0. 11. Ver MANNONI, M. A Criança retardada e a Mãe (1964). São Paulo, Martins Fontes, 1985.