3º ENCONTRO DA REDE DE ESTUDOS RURAIS 09 a 12 de setembro de 2008, UFCG, Campina Grande (PB) GT 5 – Processo de trabalho, transformação produtiva e direitos sociais UMA TENTATIVA DE DESCONSTRUÇÃO SOCIOLÓGICA DO POLÍGONO DA MACONHA Ana Maria Motta Ribeiro1 POLÍGONO DA MACONHA? UM TERRITÓRIO QUE ESCONDE TRÊS AGRICULTURAS EM DISPUTA, QUESTIONA A PRIORIDADE PELO SOCIAL DO ESTADO BRASILEIRO E A EFICÁCIA DE MODELOS DE PLANEJAMENTO IMPOSTOS A COMUNIDADES LOCAIS QUE GERAM MAIS EXCLUSÃO DO QUE DESENVOLVIMENTO Das várias abordagens possíveis sobre a presença do cultivo ilícito no Nordeste do Brasil, propõe-se aqui um caminho diferente, olhando por dentro da região e acompanhando o ponto de vista dos mais despossuídos. Tentando uma espécie de desconstrução do Polígono da Maconha pela sociologia rural. Chega-se então à ideologização do processo de modernização do sertão do Submédio São Francisco e a uma reflexão sobre o que é progresso e para quem. A região poderia ser descrita numa trajetória de mudança gradual, desde sua forma original em termos de ocupação social durante a colonização do Brasil por Portugal, como o Polígono das Secas, que durou até a República. Modificada por políticas públicas desde os anos 40, mas sobretudo a partir dos 70, com a intervenção de mega projetos hidrelétricos, tornou-se identificada como a Mancha Irrigada. Este desenvolvimento, entretanto, produziu uma modernidade extremamente conservadora e minada de conflitos entre os principais beneficiários e os mais perversamente atingidos. Finalmente, no final dos anos oitenta condições desiguais apresentadas à experiência social e o modelo econômico resultante do “progresso” imposto “de fora” pelo Estado, apareceu como conseqüência, uma nova identidade regional: o Polígono da Maconha. Houve uma opção pela fruticultura (Plano para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco), implementada em 1987 que, ao lado de outras medidas públicas, tornou a região dinâmica e arrojada no canal da agricultura empresarial mas complicada e instável enquanto consolidação da agricultura dos atingidos pela Barragem de Itaparica que foram reassentados.
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Professora de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e Coordenadora do Observatório Fundiário Fluminense – UFF.
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Assim o século XX oferece um cenário no qual a modernização fortemente determinada e gerenciada pelas ações do Estado traz para o sertão um tipo de progresso que se estabelece para a população, sobretudo para aquela que ocupa o lugar “de baixo” na estrutura social, como gerador de desemprego e negador de oportunidades para a juventude. Em relação aos sindicalizados e remanescentes da luta contra a Barragem, a modernização apregoada se colocou concretamente na forma de expectativa da irrigação nos lotes, para que a entidade que os representava - o Pólo Sindical do Submédio São Francisco - pudesse organizar uma agricultura familiar forte e sustentável. Um processo que terminou de desenrolando por mais de uma década numa demora crônica e geracionalmente destruidora. A importância do projeto governamental de criação de uma agricultura familiar como solução para os atingidos pela Barragem de Itaparica, está no fato de que ele poderia representar para o país, uma política de grande potencial demonstrativo para o mundo, como solução da questão social envolvida nas intervenções voltadas para a produção de energia limpa, no caso, com base na hidroeletricidade. O resultado alcançado poderia significar aí sim, a modernidade real do Nordeste, tal seu caráter experimental tanto para o Governo, como para o Banco Mundial que financiou o projeto hidrelétrico, e principalmente para o sindicalismo. Até agora, entretanto, as opções dos sucessivos governos têm atuado no sentido de secundarizar a consolidação da agricultura familiar reassentada e de privilegiar de modo desigual a agricultura empresarial voltada para a exportação. Permaneceram enraizados e re significados os mesmos antigos esquemas de dominação existentes no sertão e ampliadas as condições precárias de vida para os mais pobres. Os encaminhamentos públicos mais decisivos no desenho da região aconteceram a partir de meados dos anos quarenta, porque a atenção em relação ao papel do Vale do São Francisco muda depois da segunda guerra mundial. O Estado promoveu uma intervenção focada no potencial de integração entre o sul e o norte, propiciada pelo curso do rio e, através de planejamentos dirigidos, terminou transformando a região no palco de uma disputa em vários níveis. Estruturalmente, os interesses foram privilegiados em duas direções: geração de energia e agricultura irrigada. Foi dentro desse processo técnico-burocrático de criação de aparelhos estatais, que se fundou a CHESF - Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945) para gerar energia, e a Comissão do Vale do São Francisco (1948), seguida pela Superintendência do Vale do São Francisco (1967) e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF,1974), três estatais envolvidas em projetos de promoção da agricultura irrigada, associados a outros objetivos de desenvolvimento regional.
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A idéia principal era centrar no desenvolvimento social através da organização de projetos de colonização com base na pequena propriedade (em torno de 4 a 8 hectares), o que de fato aconteceu até os anos cinqüenta e sessenta, privilegiando cebola, uva, melão, tomate, pimenta e algodão.Nos anos setenta ocorre uma mudança de rumo radical, destaca-se uma diferente orientação ditada pela SUDENE em detrimento da colonização, que fortalecida com o apoio da SUVALE, a a apostar num mercado extra regional (exportação) contrariamente a formação de um mercado de consumo alimentar de ênfase local como antes se pretendia. O território então recebe outro tipo de empreendedores incentivados pelos aparelhos estatais. O governo a a introduzir algumas empresas privadas, detentoras de terras até dez vezes maiores do que o tamanho dos lotes familiares existentes. Aquecido, o mercado de terras vai engolindo e anexando os sítios familiares gerando um desenho fundiário mais concentrador, além de transformar, num e de mágica, os ‘colonos’ em potenciais empregados assalariados nas novas fazendas. Desapareceu assim a prioridade no desenvolvimento social e se iniciou um processo de acumulação capitalista com base na grande propriedade tecnologicamente reestruturada. Ocorre o que se pode chamar de uma “ocupação política” da região por novos interesses e a composição de atores novos que aparecem intervindo e disputando apoio do Estado. A par da proletarização que foi transformando colonos em assalariados das empresas emergentes e carentes de mão de obra, o projeto das Barragens (Moxotó e Sobradinho) conduzido pela CHESF também foi deixando milhares de famílias (apenas indenizadas em dinheiro) em movimento contínuo de deslocamento compulsório em direção às cidades maiores e médias na região, e começam a surgir bolsões de pobreza nas periferias. Isso se avoluma até os acontecimentos verificados em Itaparica. Lá, os camponeses ribeirinhos que seriam afetados se recusaram a receber indenização pecuniária, conseguiram organizar um movimento bem articulado juntando os atingidos de todos os municípios que seriam alagados, e entrosando a ação em dois estados, Bahia e Pernambuco, fundaram uma entidade única para sua representação, o Pólo Sindical do Submédio São Francisco, o que mudou o rumo dos acontecimentos na perspectiva dos atingidos, levando o Estado a alterar a forma oficial de encaminhamento da questão. Em 1986 paralisaram as obras da Barragem acampando dentro do reservatório ainda seco até que a CHESF trouxesse uma comissão de representantes do governo federal para negociar com o movimento. Assim aconteceu o que ou a ser reconhecido como Negociação para a estatal, ou como a Grande Luta para o movimento sindical. Diferentemente da forma de indenização apresentada até então, esses camponeses conquistaram o direito de serem “reassentados” para que retomassem sua existência e sua
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reprodução econômica, social e cultural em bases minimamente próximas da vida que tinham antes da Barragem expulsá-los de seu lugar de origem.A CHESF conduziu uma ação em acordo com o Pólo Sindical, promoveu a desapropriação de terras por interesse social, criou agrovilas como área de moradia e se comprometeu em implantar sistemas de irrigação eficientes nos lotes que seriam as “terras de trabalho” das famílias. Esses dados indicam que politicamente, antigos, diferentes e novos atores se multiplicaram num cenário em que mudanças profundas aconteceram, desde o ponto de vista físico (o aumento e a transformação demográfica, ao lado da nova paisagem, produto dos projetos ‘barrageiros’ que vieram modificando o rio durante meio século), até o ponto de vista sociogênico, considerando-se os agentes que entraram em cena para produzir, gerir ou disputar essas transformações. E é nesse sentido que se constrói, sociologicamente, um território como uma ação externa e planejada, portanto artificial, que se sobrepõe a uma realidade preexistente, onde o patriarcalismo ainda têm poder e se articula de modos diferentes e variados com os ‘novos personagens que entram em cena’. E onde novos atores imprevistos podem aparecer e interferir no cenário a favor ou contra uma provável acomodação, para melhor ou para pior, em termos de equidade e justiça social. Mas, no final, levando-se em conta que todo cenário humano é dinâmico, ele se torna real. E a a se reproduzir como totalidade significativa, mas uma totalidade que não abdica as contradições dialéticas do presente com o ado, nem a do geral com o singular. Nesta perspectiva, pode-se tomar o Submédio como um espaço criado por planejamento estatal que recortou no mapa do país uma “sub região irrigada” que terminou resultando num ambiente eivado por tensões. Por um lado, pela criação da agricultura agro exportadora em escala internacional, geradora de um processo de proletarização que criou enorme contingente de assalariados rurais para a sua viabilização, e, simultaneamente, na recriação de unidades familiares de produção agrícola (os reassentados), como decorrência de uma pressão conduzida pelo movimento social organizado em reação ao projeto ‘barrageiro’ praticado pelo Estado sobre o rio. Finalmente, por volta dos anos oitenta, ainda no âmbito desses conflitos de interesses, abriu-se um espaço para a expansão de economia ilícita com base no cultivo de maconha, planta tradicional mas até então sem investimento de escala comercial. Essa economia aparece constituída, parte dentro de um amálgama moldado pela cultura sertaneja dominante tradicional, impregnada de violência e pistolagem que procurou modernizar sua linguagem e presença, e parte em decorrência das contradições fomentadas
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pela ambiguidade desse modelo agrícola principal que reduziu o foco no social e aumentou o contingente de excluídos. Na franja já avançada dos processos de precarização do trabalho assalariado na agroindústria frutícola de exportação (com destaque para as questões de gênero que afetam as estruturas familiares uma vez que a mão de obra feminina é privilegiada para o processo manual de empacotamento de frutas, uma mercadoria frágil e delicada e que sofre pressão de um padrão de consumo sofisticado), e na sombra das omissões do investimento público em relação à conclusão dos sistemas de irrigação nos projetos de reassentamento, a história sertaneja construída por muitos e diferentes sujeitos, ainda acrescentou o desenvolvimento de uma terceira agricultura clandestina e ilícita centrada no cultivo de maconha em escala comercial ampliada. Nesse quadro se estabelece uma forma de apoio público que se complexifica por atender interesses diretamente contraditórios da grande e da pequena agricultura, embora submetendo a capacidade produtiva de ambas à dependência do mesmo e energético para a irrigação. Mais tarde, com o aumento da criminalidade, esse apoio público até então centrado nos ministérios de fomento econômico e agrícola, será cobrado também a outra instância estatal em termos de segurança nacional. Curiosamente, essa intervenção estatal em particular não produziu distinções e acabou por atender de modo igual aos diferentes setores que se identificaram na demanda por repressão, por que todos – potentados tradicionais, grandes proprietários, empresários rurais, pequemos proprietários, trabalhadores, ricos e pobres - consideram a criminalização da cannabis sativa como tácita. Neste caso, o apoio do Estado veio sem muitas contradições e bem articulado. Só para citar uma das formas assumidas por essa presença, verificou-se a criação de agências para operarem de modo mais eficiente o ataque ao cultivo ilícito: Delegacia de Polícia Federal em Salgueiro – flagrante, repressão e erradicação da planta; Delegacia Federal do Incra em Juazeiro – levantamento das terras com cultivo para expropriação sumária de acordo com a lei; criação de novos escritórios de Procuradoria e Promotoria federais, e aumento do número de juízes funcionando dentro de um sistema de rodízio estratégico – cobertura mais ampla do sistema judicial. O fato é que se conseguiu realmente em menos de uma década reduzir a extensão do cultivo e alterar a fonte da demanda. Com uma quantidade enorme de pés erradicados e com um grande número de plantadores (raramente os donos das roças de maconha) aprisionados – geralmente trabalhadores rurais homens e jovens - a ação do Estado conseguiu impedir a auto-suficiência do abastecimento de maconha no Brasil para os clientes brasileiros (cujo volume não foi afetado por esse tipo de intervenção regional), impeliu a dependência da
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demanda à necessidade de importação do produto do Paraguai e, na medida em que reduziu mas não acabou com a produção (o plantio migrou para outros estados), paradoxalmente, manteve o Nordeste livre desses efeitos uma vez que a escala comercial da maconha ficou restrita ao abastecimento ao consumo do norte e nordeste, os únicos clientes que usam o produto nacional! Foi deste modo que por volta dos anos oitenta aconteceram processos que se impam sobre aquela região de um determinado modo, cujas conseqüências tangíveis à experiência dos sujeitos dentro desse ambiente, foram fundadas como uma novidade e se consolidaram na instância econômica. A isso denominamos o que é indicado de modo vago pela mídia, mas de forma oficial pelo Estado, como uma nova territorialidade: a do Polígono da Maconha. Nesta ciranda a erradicação do plantio demonstrou-se mais eficiente do que a eliminação da importação, o que cria quase um monopólio no abastecimento nos principais mercados de consumo do país.E, claro, existem algumas perguntas que ficam no ar: Que tipo de enfoque predomina nas políticas de segurança que se norteiam pelo controle do autoabastecimento nacional enquanto ainda permanece forte o abastecimento de maconha via importação? O que pode representar esse “nicho” de mercado nordestino para o Nordeste? Qual seria o papel dessa agricultura no cenário de uma disputa política, e conseqüentemente, na produção de meios para “armar” financeiramente os contendores na briga eleitoral? Ao contrário do que pretende, a política de repressão à maconha estaria gerando uma fronteira agrícola espontânea, desorganizada e facilitadora de atos corruptos ou corruptores, delimitados no Norte e Nordeste? São questões abertas para se pensar acerca de um dos ângulos da criminalização da maconha no Brasil. E é nessa medida então que se deve considerar que a elaboração que cria e gera a conformação desse território contém em si elementos que escondem várias dimensões e processos e, entre eles, mais exatamente, o conflito de interesses entre as agriculturas. Por essa razão o espaço tecido não pode ser reduzido à idéia de que se trata de um local prioritário de criminalidade mesmo que essa imagem, elaborada ideologicamente para “esconder” algo, não deixe de ser real. Importa reconhecer que por baixo desta imagem existiriam hoje então, três agriculturas a serem consideradas, em pleno desenvolvimento e expansão. Duas conseguindo êxito e sucesso financeiro: a do agronegócio frutícola que traz grandes círculos de poder e segmentos endinheirados de fora da região no seu investimento, e que se articula com as estruturas de dominação mais tradicionais sem fortes traumas, e a outra, a da maconha, que
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produz novos ricos emergentes, saídos dos segmentos intermediários locais e que aparentemente também pode se articular com as estruturas de poder tradicionais, no mínimo através da lavagem de dinheiro gerado nessa economia subterrânea que se “legaliza” através de negociações pouco transparentes, no máximo articulando-se com o lado clandestino das “famílias” que se armam para matar ou “dar segurança” e, nestes casos, do mesmo modo, sem fortes rupturas. Essas afirmações tornam-se mais factíveis quando se leva em conta a existência de uma impunidade seletiva (só se prende trabalhadores nas roças e raramente os “donos” das roças) e tendo em vista a persistência da presença desse tipo de cultivo dentro de um certo padrão de produtividade que não deixa o produto desaparecer há mais de quatro décadas, apesar da repressão organizada institucionalmente e financiada como interesse público. No meio dessas duas atividades produtivas aparece a agricultura dos reassentados, produto da luta sindical regional que enfrentou de fato essas estruturas de poder, democratizou a estrutura fundiária, acenou com uma possível diferenciação social dos rurícolas - o que poderia permitir uma melhoria na qualidade de vida das populações mais carentes. Mas justo essa é a que permanece marginalizada dos resultados econômicos atualmente em pauta e que promovem o enriquecimento regional. As conseqüências do empenho político assumido pelo Estado nessa longa trajetória de intervenções técnicas, pautou diferentes resultados em termos de sucesso e disponibilidade de recursos e atenção. Certamente essas disputas combinadas com a demora na conclusão dos projetos de reassentamento, facilitam de modo estrutural as condições de consolidação da agricultura de maconha e a situação instável desse terceiro agente (a agricultura familiar dos reassentados). Sem saídas melhores, se encontra em permanente estado de conflito para se defender da pressão no sentido de sua fragmentação ou desaparecimento ao se envolver como assalariado temporário desta ou daquela agricultura bem sucedida na região. Depende do Estado, portanto, depende das intenções de investimento no social, a mudança de identidade desse território configurado como “da maconha”, o que além de marginalizar e estigmatizar a região ainda termina por criminalizar as lutas por direitos dos trabalhadores rurais até hoje, desde os anos cinqüenta, ainda atingidos pelas Barragens do rio São Francisco!