Cavalo De Baco 3l4s

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Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, incluindo ainda o uso da internet, sem a permissão expressa da Editora Viseu, na pessoa de seu editor (Lei nº 9.610, de 19.2.98).

editor: Thiago Domingues Regina

projeto editorial: BookPro

coordenação editorial: Gabriel Lima

revisão: Zernesto Pessoa

copidesque: Julia Rosa

versão digital: Fabio Martins

capa: Clara Wanderley

e-ISBN 978-65-598-5318-2

Todos os direitos reservados, no Brasil, por

Editora Viseu Ltda.

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A primeira versão deste romance foi escrita entre 1994 e 1995 com o título “A Dança das Máscaras”.

Em 1997 a obra foi uma das vencedoras do Projeto Biblioteca Internacional de Inéditos da Língua Portuguesa da Fundação Nacional de Artes – FUNARTE.

Como prêmio, quinhentos exemplares foram publicados e distribuídos para bibliotecas públicas nacionais.

Amplamente reescrita, a presente versão apresenta substanciais alterações em relação ao texto original.

Dionísio da Grécia antiga tornou-se Baco entre os romanos.

Deus do teatro, dos alucinógenos, da alegria e da libido, da natureza, da fecundidade e da paz, era o libertador dos instintos.

Acreditava-se que durante as apresentações das tragédias gregas Baco se incorporava aos atores, usando-os como seus fantoches.

Tais atores eram chamados de “Cavalos de Baco”.

1 Prólogo

Subterrâneo de um mosteiro medieval. Finas frestas, rachaduras minúsculas no espesso paredão permitem que a luz do dia penetre no ambiente em tênues fachos, revelando um jovem adolescente a dormir num catre tosco.

Ele desperta lento. Como um felino se espreguiça e abre os olhos, pupilas dilatadas. Boceja longamente. De si tem apenas a noção da pele, divisória que delimita uma área interior que virá, mais tarde, a chamar de corpo.

O olhar é o de quem não pensa nem conhece palavras. Sua mente livre de ideias acompanha o foco de atenção do olhar, um ponto qualquer daquele espaço que ele percorre palmo a palmo todos os dias.

Sons matinais. O jovem sente ondas sonoras tocando-lhe o corpo. O canto do galo infla seu peito, o piado do gavião peregrino lhe arrepia a pele, as seis badaladas de um sino ardem em seus indefensáveis tímpanos e despertam uma angústia antiga. Por fim o canto de um coro religioso vindo de cima, da nave do mosteiro, o relaxa. Tudo continua igual como sempre.

Um jarro d’água e uma travessa com pães atraem seu olfato. Bebe guloso, a água escorre pelo queixo, depois mastiga um naco de pão. Ao lado, um cavalinho de madeira empresta um toque infantil à sombria cena.

Está nu, preso por um cinturão de couro ao redor do ventre, ligado a uma corrente de ferro cujo fim se perde na escuridão do labirinto de colunas do porão. Outra vez se espreguiça antes de lançar-se à única aventura que conhece: percorrer o espaço através das colunas até o limite que a corrente lhe permite alcançar. Cumpre sempre a mesma trajetória, desprovida de qualquer sentido aparente, sem jamais erguer-se como um humano.

Balançar o cavalinho como um autista, de maneira monótona e repetitiva, ocupa a maior parte de sua ação diária. Mover o brinquedo o faz sentir-se destacado do resto do ambiente, um indivíduo ativo.

A noite chega, o jovem se recosta sonolento. Não consegue dormir de imediato como de costume, pois estranhas impressões lhe invadem o cérebro. Intuição? Nesta noite seu destino mudará para sempre.

No limite entre sonho e realidade ouve um ruído inesperado: os. Subitamente desperta. Vê a única porta do lugar se abrir e criar um retângulo luminoso que invade o porão. A luz é pouca, suficiente, porém para cegar sua sensível retina por alguns segundos. Defende-se tapando o rosto, mas logo arrisca um olhar por entre os dedos.

Na porta aberta um monge, figura que ele jamais vira, traz um candelabro aceso. O tempo e a respiração travam, o coração dispara.

O monge entra, fecha a porta atrás de si, dá uma olhada ao redor, coloca o candelabro no chão. Diante do fogo a curiosidade do jovem aumenta e o faz, receoso, aproximar-se e tocar a chama da vela. Queima-se. Dor. Salta para trás chacoalhando os dedos. O monge o alcança e pousa a mão sobre sua cabeça tão suavemente que ele se detém. Parece reconhecer aquele toque carinhoso, familiar. Aquieta-se.

Então o monge se manifesta:

- Hoje você pode ver meu rosto, pode ouvir minha voz. Deve estar muito assustado, meu pobre menino!

O susto é de fato grande. O jovem emite um som desafinado de medo, fecha os olhos, esfrega as pálpebras tentando apagar aquela visão incompreensível. Pego de surpresa, não esperava que aquele vulto enorme fosse soltar ondas pela boca que abalariam seus tímpanos. O excesso de informações ultraa seu limite mental, ele desmaia.

O monge toma-o no colo. Observa sua fronte salpicada de gotículas de suor, corre a mão pelo corpo liso querendo reter para sempre aquele prazer tantas vezes degustado na calada das noites. Sabe que essa é a última chance de irar tal obra: a pele clara como mármore pela ausência de sol deixa ver uma trama de veias azuis, o que dá ao corpo um tom lilás; os cabelos descem espiralados até os ombros, desgrenhados; os lábios, avermelhados como tomates maduros.

O homem tira uma chave do bolso e abre o cadeado que prende o cinto. Acaricia os calos que o couro produziu na cintura do cativo ao longo dos anos como se pudesse curá-los num toque de amor.

Quando volta a si, o jovem abre os olhos devagar, salientes como os de um peixe. Nos lábios do monge brota um sorriso e ele volta a falar:

- Criança, minha criança!

Num salto o adolescente foge novamente até onde a corda outrora lhe permitia avançar, estanca pelo puro vício que não o deixa perceber que já está livre e poderia ir além. O monge busca controlar-se falando baixo, sussurrando:

- Perdão... Perdão! Devia ter sido mais cuidadoso, minhas emoções estão desencontradas, meu amor! Agora já posso me comunicar, mesmo que você não consiga entender palavra alguma. Não podia deixar que aprendesse a falar, nem que viesse a me reconhecer. Um dia você entenderá por quê. Era eu quem trazia água e comida todas as noites enquanto você dormia. Era eu quem penteava seus cabelos, limpava seu corpo e velava seus sonhos, sempre em silêncio. Seria muito perigoso se você aprendesse a falar... Kaspar, este é o seu nome, Kaspar. Agora terá que aprendê-lo! Vejamos: Kas-par, Kaspar.

Acalmado pelo tom meigo da voz do monge, Kaspar permite que ele se aproxime mais. Como um espelho, procura imitar os movimentos que percebe nos lábios, na boca e na garganta do monge. Começa então a emitir alguns grunhidos.

Com uma paciência monástica o homem repete o nome tantas vezes até finalmente conseguir que o rapaz o diga, quase com precisão:

- Kas-parr, Kash-par...

O aprendizado segue através da noite. O monge endireita-lhe a coluna, mostralhe como andar ereto e ultraar o espaço que a corrente antes delimitava, fazendo-o perceber que está solto.

- Que maravilha! Nosso príncipe herdeiro manteve a inteligência, apesar de tudo – exclama o homem aliviado.

Apesar da satisfação de ver o jovem reagir muito bem a qualquer ensinamento, o monge não consegue disfarçar seu sofrimento: aquela seria uma despedida. Kaspar, inocente e fascinado, anima-se mais a cada pequeno avanço, a cada pequena coisa que consegue aprender.

- Kaspar, chegou a hora. Você está pronto para cair no mundo dos homens?

- Homes – tenta Kaspar repetir a última palavra.

Uma revoada de pássaros saúda a alvorada. O monge deixa o mosteiro conduzindo Kaspar pela mão.

2 Doro

Madrugava. Envolto no nevoeiro noturno das ruas da cidade, Doro perambulava pelejando para interromper o círculo vicioso de sua mente: ruminava a vida, a retornar sempre à mesma pergunta: para quê? A realidade se lhe apresentava em branco e preto, mortal para um pintor.

O suicídio era uma saída honrosa que estava inclinado a encarar. Apesar de impregnado de tendências místicas, a devoção à liberdade o levava a rejeitar qualquer imposição dogmática como a condenação ao suicídio pregada por todos os “santos”. Não aceitava que o instinto de sobrevivência fosse elevado a mandamento divino, não aceitava ser escravo dos próprios instintos. Talvez por isso andasse tão triste, distante de si mesmo. Afinal, para que servem os instintos? O livre-arbítrio existe?

Trôpegos os o conduziram a uma pequena praça. Sentiu um gemido de cansaço vindo das pernas, sentou-se num banco.

Indiferente a quaisquer que fossem as tribulações daquela mente perturbada, o Sol lançava seus primeiros brilhos fazendo aparecer na praça os contornos de algo... uma estátua? Banhada pela luz horizontal do nascente, a imagem ganhava uma aura dourada, misteriosa, atraente.

A curiosidade tirou Doro do banco. Aproximou-se. De perto viu que a estátua tremulava e então percebeu que se tratava de uma pessoa de verdade, sem roupas, com as mãos estendidas em súplica. ado o choque inicial, conseguiu

formular uma pergunta:

- Precisa de alguma coisa, irmão?

A figura arregalou seus grandes olhos, abriu a boca tentando responder mas nada conseguiu dizer.

- Algum problema, rapaz? Já sei, está viajando. O que você tomou? Ácido? Ecstasy? Cola? Ou está pagando promessa? Se você acha que estou me intrometendo onde não devo, peço perdão...

Sem conseguir articular expressão alguma, visivelmente assustado, o rapaz tombou. Doro agarrou-o pela cintura, impedindo sua queda. Sem nada pensar para decidir, carregou-o até sua casa. Em pensamento desejava que ninguém os visse, pois tinha a sensação de que estava se apossando de algo precioso ou pelo menos cometendo um ato condenável. Carregar um adolescente nu de manhãzinha é algo no mínimo suspeito. Antes de entrar em casa deu uma última verificada, não fora seguido. Bom! Na sala ajeitou o rapaz no sofá, cobriu sua nudez com uma colcha.

Velou o desconhecido durante horas, lutando contra o sono, entrando e saindo da dimensão onírica. Já era meio-dia quando o estranho despertou. Desfez-se da colcha que lhe cobria o corpo como se fosse algo repelente, tapou os olhos para se defender da claridade. Incontinenti Doro se ergueu, apressou-se em fechar as cortinas.

Na penumbra instalada, o rapaz reconheceu o homem da praça com o mesmo olhar apreensivo, porém doce, e respirou fundo.

- Melhor assim, com a cortina fechada? Parece que você tem os olhos muito sensíveis. Quer um colírio?

Não houve resposta. O anfitrião resolveu então reiniciar o contato.

- Bom dia! Meu nome é Doro. Não precisa me dizer o seu, se não quiser. Fique tranquilo, está em minha casa e não há mais ninguém. Vivo só com um gato.

A cada som proferido a pele branca do hóspede respondia com tremores por todo o corpo, experimentando a maciez do sofá de veludo ao esfregar-se nas almofadas. O som das palavras que Doro emitia provocava-lhe sensações excitantes. Piscava os olhos devagar, movia a cabeça de um lado para o outro, acostumando-se à luminosidade, a experimentar a invasão visual das mais variadas formas presentes naquela sala. O olhar quase virgem de imagens consumia vorazmente cada ângulo, cor, detalhe.

- Deseja alguma coisa, comer, beber...? Apesar de já ser hora de almoço, posso preparar um desjejum com a melhor boa vontade, não quer? ...Sinto que talvez esteja numa situação difícil, com medo de se abrir, mas não se preocupe, não estou aqui para julgar. Diga só o que quiser dizer.

A situação era bastante inusitada. O rapaz continuava nu, movendo-se como um filhote de animal, alheio ao significado das palavras e a qualquer moralismo. Brincava com as pernas e expunha sua genitália como os animais fazem, sem nenhuma vergonha, malícia ou pudor.

- O que posso dizer para te ajudar? Sinta-se em casa! Sou pintor, quer dizer, já nem sei. Há meses que nem consigo pegar num pincel. Falta de inspiração, sabe o que é isso...? – continuava Doro falando de si mesmo, buscando ganhar a confiança do estranho. – Se não quiser falar, por mim tudo bem. Entendo que às vezes não há mesmo o que dizer.

Goethe, o gato da casa, retornava de mais uma noitada de telhados. Entrou pela janela e deparou-se com a novidade. Primeiro olhou fixamente para o estranho animal que estava nu como ele. Franziu o focinho, cheirou o ar, aproximou-se diretamente.

Senão pelo arregalar dos olhos, o rapaz não se moveu quando o gato subiu no sofá e cheirou-lhe o sexo. Era um felino todo branco, albino e, provavelmente por isso, surdo de nascença. Por não ouvir os próprios miados, Goethe não articulava bem os sons que emitia. Quando abriu a boca deixou sair um ruído rústico e desafinado de boas-vindas. O jovem estremeceu.

Talvez devido ao cheiro estranho que o novo animal exalava, o gato estirou a coluna e se afastou, indo dormir em sua almofada predileta.

Imitador, o estranho desceu do sofá, colocou-se em quatro patas como o gato, deslocou-se pela sala com leveza. O nariz seguia adiante como um radar que tudo investigava: mesinha, estatueta, vaso, xícara... De repente pareceu lembrarse de algo, ergueu-se. Levou a mão ao peito e pronunciou:

- Kash...par.

- Kaspar? Então é esse o seu nome? – Doro suspirou feliz por ter arrancado uma

palavra do rapaz.

- Kas-par, Kas-par, Kas... – seguiu repetindo o visitante, experimentando diversas tonalidades, distintos prazeres da garganta. Gesto reflexo, sua mão acompanhava as repetições, indicando o peito como o monge lhe ensinara.

3 Amélia

Final de tarde. A doutora Amélia chegou em casa depois de uma jornada de trabalho extenuante. Apesar de estar sedenta foi direto ao quarto. Metódica, era uma autêntica representante do signo de Virgem: tirou os sapatos, limpou-os do pó da rua e guardou-os no armário. Em seguida cheirou cada peça de roupa que tirava, separando o que deveria ser lavado do que poderia ainda ser usado no dia seguinte. Quando terminou o ritual o quarto parecia intocado.

Só então foi matar a sede, deslocando-se nua pelo apartamento. Estirou-se na poltrona diante de amplas janelas de vidro, irou o crepúsculo apagar as formas dos prédios. “Finalmente alguns dias de folga”, regozijou-se. Então permitiu que o homem objeto de seus desejos eróticos invadisse todas as frases de seus pensamentos. Não tardou o telefone a tocar. Ela atendeu ansiosa.

- Sou eu, gostosa! – disse Doro do outro lado, com uma voz insinuante. – Garanto que estava pensando em mim, minha doutora preferida.

- Ah! É você? Eu... nem estava pensando... eu...

- Não minta, Amélia. De casa eu ouvi o seu desejo me chamando.

- Um dia a telepatia vai ser regulamentada para proteger a privacidade mental de cidadãs desarmadas como eu.

- Quem manda ser materialista? Há outros mundos, meu bem. Outras faixas de comunicação, outros órgãos sensoriais...

- Que foi, bebeu?

- Preciso dos seus serviços.

- Agora? Acabei de chegar. Nem banho tomei ainda.

- Não precisa se preocupar em tomar banho e ficar mais gostosa ainda. É uma consulta médica, não sexual.

- Aconteceu alguma coisa? Doro, você está doente?

- Não, a consulta não é pra mim.

- Tá louco! Nem morta! Ainda se fosse para cuidar de você... Sabe quantas mulheres espancadas atendi hoje?

- Esquece, meu bem. Agora elas são apenas números.

- Você some por uma semana e sem mais nem menos quer roubar meu merecido descanso? Cuidar de algum desconhecido? Ou será algum cachorro que encontrou na rua?

- Você sabe que eu não apelaria se não fosse uma emergência – ele aveludou a voz soltando um suspiro que a fez condoer-se e reinstalar sua mente profissional dedicada a servir.

- Qual é o problema?

- Uma coisa fantástica! Não posso dizer nada assim pelo telefone. Você tem que ver pessoalmente. Vai cair de quatro!

Sem mais explicações Doro desligou o telefone, o que aumentou o suspense e deixou Amélia confusa por alguns instantes. De quatro? Sua rápida conexão mente-ação logo recuperou o pique costumeiro. Correu ao banheiro, deparou-se com o espelho. O corpo era harmonioso, bem trabalhado, resultado de anos de alimentação regrada, massagens, natação e muitos cosméticos. Mas ela sempre achava um defeito, uma hora o cabelo, outra a pele, o nariz... Não gostava muito de si mesma.

Tomou uma rápida ducha fria, perfumou-se de alfazema, fragrância de que Doro gostava, escolheu trajes para causar a melhor das impressões. Deu os últimos retoques diante do espelho perto da porta de saída e ajeitou a blusa quase transparente sobre os seios já intumescidos.

Chegou à casa de Doro.

- Amélia, senta aqui e ouve. Essa madrugada eu não conseguia dormir, como nas últimas semanas. Então saí caminhando pela rua. Numa praça perto daqui encontrei um rapaz. Ele estava nu, paralisado de medo. Desfaleceu ou dormiu quando me aproximei. Sem pensar eu o trouxe comigo e... Ele está no meu quarto, dormindo.

- Não me diga que você me fez sair de noite numa quarta-feira brava pra me contar que se juntou com um homem! Eu sabia que um dia você ia se revelar, fazer jus ao que dizem dos pintores, que são todos maricas!

- Não é nada disso! Me escuta. Ele não sabe falar, parece que nunca viu alguém antes. Não sabe nada, só uma palavra que deve ser o nome dele: Kaspar.

Depois de uma pausa desconfiada ela arriscou:

- Você tomou uma droga nova, não quer me contar, acertei?

- Claro que não! Vou buscá-lo antes que você diga mais bobagens. É melhor que você o veja.

Em sono profundo, Kaspar apenas estremeceu quando Doro entrou no quarto. Não foi fácil despertá-lo. Quando abriu os olhos espreguiçou, pulou da cama e de cócoras urinou no tapete. Doro não se importou. Sorriu paciente, vestiu-lhe uma de suas cuecas. O rapaz pareceu estranhar a peça de roupa mas deixou-a no corpo. Trazido pela mão, quando entrou na sala e viu a mulher ficou boquiaberto.

Amélia sentiu um tremor desconhecido que tentou disfarçar.

- Boa noite! Meu nome é Amélia, prazer em conhecê-lo – e estendeu-lhe a mão sem se aproximar.

Reflexivamente Kaspar imitou o gesto com o braço parado no ar, já que estavam separados por alguns metros. Ela então adiantou-se e pegou-lhe a mão, constrangida, pois ele grudara os olhos nos seios quase visíveis através da blusa fina.

Um silêncio fértil ocupou a sala. Ela se desconcertou ainda mais quando um formigamento elétrico lhe endureceu os mamilos, expondo sua sensualidade aos olhos do estranho. Emoções e sentimentos bem contidos em nome da moral e da suposta superioridade humana gritavam nos porões de suas entranhas. Amélia nunca sentira um olhar tão penetrante como aquele, que desnudava suas carnes e detonava uma subversão interior. Só restava-lhe a rendição, coisa nada fácil para ela.

Fascinado, alheio às reações da mulher, Kaspar avançou devagar até tocar os seios com a boca. Tentou mamar, ignorando a blusa. Resignada ela desnudou o peito, deixou-se sugar. Sentiu então uma rápida explosão no cérebro – um rio leitoso desaguou na garganta do rapaz. Preocupada com a sensação de estar se esvaindo em sangue, Amélia abriu os olhos e afastou o seio da boca voraz. O leite espirrou no rosto do jovem – era mesmo leite! Fechou os olhos e despencou maravilhada num orgasmo lento e duradouro enquanto ele continuou mamando até adormecer. Por fim, saciada, ela sussurrou:

- Ele dormiu.

Saindo do torpor que o imobilizara durante toda a amamentação, Doro ajeitou o rapaz adormecido sobre o tapete. Amélia ficou ao lado ajoelhada, de quatro, sem saber o que fazer com a enorme gratidão que transbordava de seu peito. Nunca tivera filhos, mas acabara de amamentar. Vira o milagre natural do sangue transformar-se em leite.

Doro procurou brincar para aliviar a própria tensão:

- Não disse que você ia cair de quatro?

- Nunca poderia imaginar... Viu o leite?

- Que leite?

- O que saiu do meu peito.

- Saiu leite? Tem certeza?

- Absoluta.

- Mas como é possível?

- Sei lá...

- Você não é médica? Devia saber.

- Está bem. Se uma explicação é o que você quer... Já vi muitos casos de mulheres que amamentam sem ter parido. Não me pergunte mais nada. Estou tão surpresa quanto você. E tem outra coisa, Doro, uma coisa fantástica: tive meu primeiro orgasmo!

Dividido entre a surpresa e o desencanto ele só conseguiu duvidar:

- Por que está inventando isso agora?

- Nossa! Achei que você ia gostar da notícia.

Afinal, em vão ele vinha batalhando duramente, tentava fazê-la gozar havia meses, e agora um garoto o ava para trás com um truque infantil sem vacilar um segundo.

- Desculpe, estou tão... avoada.

- Não há por que se desculpar. Nada do que acontece me parece estranho depois que descobri o Kaspar. Também me aconteceu uma coisa esquisita. Tive um desejo de... de me meter entre vocês.

- E por que não se meteu? Seria algum grande pecado?

- Você sabe que não transo homens.

- Então por que o nervosismo?

- Sei lá. Não sabia que podia pintar em mim esse tipo de vontade.

- Talvez você nunca tenha se dado a chance. Esse rapaz tem uma aparência bem andrógina, não acha? Ele exala sensualidade – ela atestou.

- É, pode ser isso. Mesmo assim...

Diante daquele ser especial que lhe proporcionara o mais espantoso momento de sua vida, para Amélia as preocupações sexuais de Doro pareciam infantis. Ela não podia despregar os olhos do desconhecido que dormia profundamente.

- Que marcas são essas na cintura dele?

- Parecem calos. Acho que ele esteve amarrado por muito tempo.

- Amarrado? Será que foi sequestrado?

- Como vou saber, querida? Olha: calos nos joelhos, no peito dos pés, cotovelos e antebraços. Suponho que andava de quatro. Reparou como ele se move? Parece um macaco... É como se não tivesse convivido com seres humanos. Também acho que não tomava sol, olha a pele...

- Realmente, muito branca.

- Além disso ele não a a luz do dia.

- É retardado?

- Pelo meu julgamento ele é bem inteligente. Gosta de imitar movimentos. Viu como estendeu a mão quando você foi cumprimentá-lo?

- Não seja tão simplista.

- Não é a imitação o primeiro estágio do aprendizado?

Mesmo sendo muito paciente Amélia não queria estragar seu estado emocional e evitava embarcar no raciocínio de Doro.

- Ele já comeu alguma coisa? – ela indagou.

- Só aceitou pão e água.

- Já viu outras pessoas, já saiu lá fora?

- Não tive coragem de deixá-lo sair. Se você visse o susto que ele levou quando liguei a televisão... Ele tem um nariz e um ouvido muito aguçados, como se tivesse tomado uma droga muito forte.

- Não duvido. Você sempre atrai esse tipo de gente: bêbados, pobres, drogados... Que idade ele teria? Uns 17 anos?

A doutora tirou o estetoscópio da maleta e ou a examinar o rapaz.

- Parece tudo normal com os pulmões e o coração. - Ele dormiu quase o dia todo, tem o sono pesado como os recém-nascidos.

Com seus olhos analíticos, mas ainda quentes, a doutora continuou a percorrer o branco corpo do estranho.

- É muito pálido, mas não parece doente. É melhor a gente ir conversar na cozinha. Ele precisa de repouso.

4 Conjeturas

Na cozinha, enquanto tomavam café, conjeturavam sobre o misterioso hóspede a dormir no tapete da sala.

- Qual é a sua opinião profissional sobre ele, Amélia?

- Não sei. Sem dúvida tem um incrível magnetismo. Pode estar fingindo...

- Impossível! Estivemos juntos o dia inteiro. Será que ele conseguiria fingir por tanto tempo? E depois, a troco de que ele faria isso...? Você acha que pode ser amnésia?

Amélia estava muito diferente da médica austera que costumava ser. Levantouse, de agem deu um beijinho na orelha do pintor e ensaiou alguns os de dança no pequeno espaço da cozinha antes de tentar um diagnóstico.

- Só se for de um tipo muito raro de amnésia que apaga todo o aprendizado, até mesmo o muscular. Ele mal sabe andar. A amnésia em geral provoca uma perda de identidade, mas ele continua sabendo o que aprendeu. Com exceção da sua história pessoal, da sua personalidade.

- Não é isso que buscam os místicos? Viver sem individualidade?

- Mais ou menos. A diferença é que para os místicos a dissolução do ego ou da personalidade se alcança por vontade própria, não há perda e sim ganho de consciência. Ele não me parece muito consciente.

- Como você pode saber?

- Querido, sinto desapontá-lo, mas acho que seu amigo tem algum tipo de esquizofrenia, loucura mesmo.

- Minha intuição me diz que você está enganadíssima!

- Pois bem, fique com o seu diagnóstico. O que mais você quer que eu faça?

- Não sei. Te chamei, me ajuda a sair dessa, “doutora”.

- Se é assim, vou levá-lo a uma clínica onde eu possa fazer alguns exames...

- Nada disso! Tenho medo! Acho que ele não tem problema algum, que seria um desgaste. Não quero ver o Kaspar exposto à curiosidade científica, muito menos que se transforme em notícia de jornal. Sei que devo protegê-lo, é uma criança, você não viu? Na certa vão achar que ele é uma aberração da natureza e querer dissecá-lo. É só nisso que vocês cientistas pensam.

- Pode parar, Doro! Eu estou ótima e você não vai estragar o meu humor. Ele pode sim ser uma aberração da natureza. E vê se para com essa história de criança! Ele é do meu tamanho.

- Tem que haver uma alternativa. Não podemos fazer esses malditos exames aqui? Vou dizer uma coisa que é piegas, mas é exatamente o que estou sentindo: Kaspar é um presente do céu. Apareceu num momento em que eu estava prestes a me matar.

- Não brinca!

- Verdade, ia me matar... Mas desde que o encontrei tenho essa estranha necessidade de guardá-lo, protegê-lo como um tesouro, como um filho.

- Um filho?

- É, um filho. Um ser puro, sem a corrupção da palavra.

- Você está abalado mesmo, meu pobre pintor. Não dá para acompanhar o seu raciocínio, se é que você raciocina.

- Também não precisa me humilhar.

- Meu anjo, você sabe que apesar de eu ter uma cabeça bem diferente da sua, sempre procurei respeitar as suas opiniões malucas. Mas desta vez acho que você está indo longe demais.

- E se for verdade? E se ele for um ser de outra dimensão ou mesmo um alienígena, um ET? Você já pensou no que nossas autoridades poderiam fazer com ele?

- Nossa! Você está sofrendo de paranoia cinematográfica.

- Tá bom, mas mesmo que seja tudo paranoia, não custa a gente protegê-lo durante algum tempo até descobrir qual é a dele.

- Isso me parece mais razoável. Temos que montar uma equipe para observá-lo. Aqui não é o lugar mais adequado. Precisamos de um lugar mais tranquilo... Mas onde?

Num estalo Doro lembrou-se de um lugar que lhe pareceu perfeito.

- A Al Terna! Já ouviu falar?

- Que é isso?

- É uma comunidade rural de uns amigos meus. Ar puro, silêncio, distante da cidade e dos curiosos. É um centro terapêutico, há muitos especialistas...

- Você acha que podemos mantê-lo em isolamento nesse lugar?

- É perfeito! Tenho certeza que o pessoal de lá vai gostar dele. E é claro que eu também vou ter que ficar por uns tempos pra ajudar.

- Pode ser uma boa ideia. Você está mesmo precisando de terapia... Pensando bem... Ia te contar... Tirei uns dias de folga... Você acha que eu posso ir junto?

- Vou ligar e perguntar pro Alaor, o líder da comunidade, mas acho que não tem problema.

Apesar de sua boa formação intelectual e de numerosas tentativas de relacionamento sexual, Amélia nunca encontrara alguém que lograsse arrastá-la sequer à beira do abismo erótico onde fora lançada por Kaspar. Antes o sexo era mais uma preocupação que um impulso incontrolável. Agora sua mente não conseguia desligar-se do orgasmo, do leite, da revolução que sentia dentro de si.

5 Al Terna

Al Terna, a comunidade, era cercada por uma floresta preservada onde ainda se encontravam espécies de pássaros em extinção, répteis e roedores, macacos e jaguatiricas, difícil enumerar... Até mesmo filhotes de veado se desgarravam de suas mães e vinham espiar aquele estranho bando de humanos, desertores sociais que abandonaram suas famílias, profissões e amigos para viver uma aventura rara.

Em poucas palavras, a comunidade – única no gênero – era uma síntese de dois processos paralelos. Oficialmente, oferecia serviços ao público como uma clínica de terapias psicossomáticas e transpessoais. Recebia grande número de pacientes atraídos pela natureza do lugar e pelas surpreendentes metodologias terapêuticas ali desenvolvidas, que integravam seculares conhecimentos orientais a modernas técnicas ocidentais.

Por outro lado, a Al Terna abrigava um laboratório humano, uma espécie de irmandade contemporânea, gente que buscava a si mesma convivendo num comunismo quase primitivo. Do ponto de vista econômico eram autossuficientes, viviam das terapias oferecidas ao público. Consumiam alimentos ali mesmo produzidos como ovos, verduras, frutas, leite e derivados. Não tinham empregados. Realizavam as tarefas em revezamento, sempre experimentando novas formas, novos agrupamentos, novos chefes.

O lago circular ao redor do qual se desenvolviam as terapias grupais, as refeições e a vida social dos moradores era o coração emocional da comunidade. Na margem havia um banco de pedra onde Alaor gostava de sentar-se, refletir sobre a vida com o olhar parado nas águas. Ali encontrava a serenidade necessária para

prosseguir no comando de um grupo de mais de cem pessoas que viviam utopicamente.

Era ele o responsável pela palavra final sobre todas as decisões básicas, muitas delas extravagantes – como o contínuo revezamento nas posições de liderança das equipes de trabalho, recurso contraproducente do ponto de vista material porém eficaz no sentido de dar a cada um a chance de experimentar suas capacidades e limites; ou como a regra que determinava que cada morador devia ter sua cama individual e que duas pessoas em relacionamento íntimo não podiam habitar a mesma casa, não mantendo assim relações sexuais por comodidade ou hábito. O casal era obrigado a se atrair e eleger um lugar para realizar o ato sexual.

Como essas, muitas outras inovações e experiências interpessoais eram testadas. Não havia dinheiro particular. Somente os encarregados de ir à cidade realizar as compras de que a comunidade necessitava manipulavam os recursos financeiros. No entanto cada morador podia solicitar aos compradores sua marca preferida de batom, sabonete, xampu, cremes e outros itens de uso pessoal.

O sino bateu marcando a hora. Deixando a margem do lago, um casal de gansos chineses deslizou sobre o espelho d’água expandindo círculos concêntricos que balançavam a imagem refletida do céu.

Sem precisar mover os olhos Alaor percebeu do outro lado do lago uma juvenil imagem vestida de amarelo que riscava a paisagem e projetava nas águas uma trêmula chama ao vento. Era Lia, uma das terapeutas da Al Terna.

- Muito bom dia! – saudou Lia.

- Melhorou com a sua presença – e ele levantou-se para abraçá-la longamente, algo típico daquela comunidade que valorizava bastante o contato físico. – Veio para a reunião?

- Sim. Que reunião é essa, assim de repente?

- Ainda de madrugada um amigo chamado Doro e sua namorada Amélia trouxeram para cá um rapaz muito estranho. Eu não o vi ainda, mas pelo pouco que Doro me falou achei que pode ser um caso muito interessante. Vamos andando que eu conto no caminho.

De mãos dadas foram para o salão de terapia. Suas longas cabeleiras negras revoavam com a brisa da manhã enquanto a comunidade despertava para um novo dia.

O salão era quadrado, com almofadas dispostas circularmente. Os terapeutas do lugar tinham sido convocados para conhecer e dar seu parecer sobre o ser singular que Doro trouxera. Haviam sentado nas almofadas ao modo de Buda e esperavam em silêncio. Doro e Amélia entraram no salão conduzindo Kaspar pela mão; depois, conforme tinham sido instruídos, acomodaram-se num canto.

Sem camisa, pés no chão, vestindo apenas uma calça de ginástica, Kaspar observou cada uma das pessoas ao seu redor com muito interesse. Saltava o olhar de uma para outra sem nenhuma ordem ou motivo aparentes. Por fim deteve-se em Lia, talvez atraído pela beleza de seus cabelos longos ou pelos vibrantes trajes amarelos. Olharam-se por um bom tempo.

- Quer dizer alguma coisa? – tentou ela iniciar um contato verbal.

A pergunta despertou nele algum estranho sentimento: soltou uma risada espasmódica que se alastrou pelos terapeutas numa incontrolável onda de riso. Um riso tão profundo que provocou contrações abdominais e mesmo gemidos de dor.

Então Kaspar deitou-se no chão. Os terapeutas se aproximaram e colocaram as mãos sobre seu corpo. Até então acostumados a trabalhos energéticos dos mais variados tipos, todos pisavam em terra firme. De repente, porém, o corpo do rapaz começou a emitir fortes vibrações que os fizeram entrar numa espécie de transe.

O corpo de Ludmila, uma das terapeutas, parecia avantajar-se. Seu rosto experimentava novas expressões, resmungos e sussurros, até que uma voz grave e rouca forçou agem através de sua boca:

- O rapaz está possuído... O cavalo está consciente, mas nada quer fazer para deixar este estado...

Cortando estas palavras um grito infantil foi ouvido ao longe. Com um salto Kaspar livrou-se dos terapeutas e correu em disparada para fora do salão em direção ao lago. Lá chegando viu que algumas crianças atravessavam as águas num pequeno bote e que uma menina, a menor, caíra na água, se debatia, ainda não sabia nadar.

Sem pestanejar Kaspar pulou no lago, nadou até a criança, colocou-a sobre suas costas e a trouxe ilesa para a margem. Deixou a menina a salvo e deitou-se no gramado, exausto.

6 Zeus

Matizada por um brilho de mercúrio, a tarde caía sobre a Al Terna. Alaor conduzia Doro e Amélia em visita às dependências da comunidade. Chegaram ao haras, lugar dos famosos cavalos árabes.

- Compramos de um vizinho um potro maravilhoso, árabe puro de linhagem egípcia. O nome dele é Zeus – informava Alaor quando, como se ouvisse seu nome, o potro apareceu num galope rumo aos visitantes.

A pelagem tordilha acinzentada se distribuía em manchas apatacadas sobre todo o corpo, escurecendo até o negro no focinho e chegando ao branco-prateado no rabo e na crina. Sabedor da impressão sublime que causava em seus pasmos iradores, Zeus exibia seus melhores números: o galope fogoso, as paradas precisas, o trote dançante que fazia a crina bailar sobre seu pescoço de cisne. Ao se aproximar estirou longamente o elástico pescoço e ergueu o rabo como uma bandeira ao vento.

Um homem forte, de baixa estatura, com um cabresto na mão, veio atrás dele. O animal docilmente se deixou apanhar.

- O Vasco é quem cuida do Zeus – disse Alaor apresentando o rapaz.

- Deve ser uma benção lidar com um bicho tão lindo como esse. O potro faz jus

ao nome. Esse Zeus é mesmo um deus! – comentou Doro, cuja sensibilidade para as formas entrara em êxtase diante das perfeitas proporções de um cavalo árabe.

- Vamos levá-lo a uma exposição – contou Vasco animado, acariciando o animal.

- É você mesmo quem doma os cavalos? – quis saber Amélia.

- Domar não é bem o termo. Eu me viro como posso.

- É uma questão de valores. Os criadores de cavalo são as pessoas mais conservadoras do planeta – interveio Alor. – Para eles, um bom cavalo é aquele que obedece ao treinador cegamente. “Os instintos devem ser subjugados e a besta civilizada” é o lema deles. Já o nosso Vasco é mais a favor do que ele chama de doma sensual, em contraposição à doma racional que é a moda do momento.

- Doma sensual? – animou-se Doro já imaginando cenas eróticas. – Fiquei curioso.

- Não gosto do sistema castigo-recompensa que se usa na maioria das técnicas de submissão de animais. Não gosto de humilhar ninguém. Prefiro tratá-los com carinho e eles obedecem sem medo, por afinidade – esclareceu Vasco afagando a barriga do cavalo.

- É claro que os animais não obedecem como os juízes de exposição gostariam –

complementou Alaor.

- Pensei que havia relações sexuais envolvidas nessa doma – confessou Amélia sorrindo com malícia.

- Não deixa de ser. Não acha que todo toque tem uma base sexual? – jogou Vasco com olhar manso, mas desafiador.

A pergunta ficou suspensa no ar enquanto o pintor pensou pela primeira vez sobre as pinceladas que dava em seus quadros como um ato sexual com a tela.

Levando o potro pelo cabresto Vasco se afastou com um sorriso, sentindo pelas costas o olhar irado dos visitantes.

- O Vasco é um exemplo típico do que acontece com as pessoas que vivem aqui. Ele é formado em arquitetura, mas prefere trabalhar com animais. Temos psicólogos na horta, engenheiros na cozinha e gente que mal terminou o ensino médio trabalhando como terapeutas.

- Alaor, vocês são mais loucos que eu! Podem estrepar os pacientes.

- Nunca tivemos um acidente. Nunca alguém morreu ou teve que ser atendido por médicos ou psiquiatras de fora. É claro que só dirige grupos quem pode. Temos gente com vocação inata para cura, por que não aproveitar? Um dos problemas da nossa sociedade é que a maioria dos jovens é encaminhada a profissões para as quais não têm nenhuma vocação. Ficam anos nos bancos

escolares aprendendo bobagens que nunca irão usar. Aqui lhes damos a chance de descobrir outras aptidões, experimentar suas melhores vocações. Nossa cultura não prepara os jovens para um futuro individual. Nossa educação é massificante.

- E o dinheiro que banca isso? – inquiriu Amélia.

- Você tocou num problema crucial. A verdade é que há um desequilíbrio entre a receita que alcançamos com as terapias e os custos internos. Os resultados terapêuticos estão entre os melhores do país, mas neste trabalho ocupamos apenas uma pequena parte da mão de obra disponível. Em termos econômicos os demais são improdutivos. Trabalham uns para os outros. Por isso estamos sempre no vermelho. Mas não há preço que pague a liberdade que temos aqui.

- Será? A sua cara não me dá essa impressão.

Logo se desfazendo das rugas que lhe marcavam o semblante Alaor respondeu confiante:

- Viver na insegurança é muito excitante e criativo.

- Estamos no mesmo time – aprovou Doro. – Também penso assim. Por isso sou pintor, ou era, sei lá. Hoje me sinto mais como um pai.

7 Diagnósticos

Mais tarde, depois de se reunir com os terapeutas da Al Terna que haviam participado da experiência com Kaspar, Alaor encontrou-se com Doro e Amélia.

- Chegamos a umas poucas conclusões. Kaspar possui um tipo de energia diferente de tudo o que já vimos em vários anos de trabalho. E essa energia ele transmite a quem estiver por perto, como um projetor. Pudemos detectar também que ele traz à tona nossos desejos mais íntimos. Todos perceberam isso acontecer em si mesmos. Sentiram-se excitados...

- Então é por isso que eu me sinto outra pessoa desde que o encontrei – comentou Doro.

- Sabe que não é provável que ele tenha ficado preso durante muito tempo como você suspeitou? O desenvolvimento muscular dele é de uma pessoa normal, com um ado rico em atividades.

- Como podem saber?

- Está escrito no corpo. Todas as ações que praticamos ou recebemos ficam gravadas como uma pequena cicatriz, um sinal na carne. É o corpo-memória. Quanto mais a ação se repete, mais profundas as marcas. Como as rugas. Não tivemos ainda tempo para “ler” mais detalhes no corpo dele. Tudo foi tão

inesperado...

- Acham que ele é louco?

- É possível, mas por outro lado a loucura dele se assemelha às descrições que fazem dos santos, dos iluminados de diversas épocas que foram tomados por loucos.

- Então ele pode ser um...

- Cuidado, Doro. Não estou dizendo que ele é um iluminado.

- Mas poderia ser?

- Bom, esta palavra é muito discutível. A maioria das pessoas que vivem nesta comunidade anseia pela iluminação. Pessoalmente, eu não acredito que alguém seja iluminado mas sim que, por momentos, possa alcançar um nível superior de consciência que o torna sábio. A história da religião diz que existem muitos tipos de pessoas tidas como iluminadas. Há os que chegam a ser conhecidos porque optam por trabalhar pela humanidade. Há outros tipos que se isolam por completo, indo viver na selva ou nas montanhas. Se fosse o caso, Kaspar seria do tipo que perde o ego, a personalidade, e fica à mercê do mundo.

- Mas você acha que não é o caso?

- O excesso de energia é sempre associado aos santos, tarados e assassinos.

- Não acredito que Kaspar possa ser tarado ou assassino – rebateu Doro com veemência.

- Vocês ouviram o que a terapeuta Ludmila disse? – mudou Alaor o rumo da conversa.

- Sim, ouvi bem. Parecia que ela estava em transe, não é?

- A Ludmila tem uma mediunidade muito avançada. Costuma entrar em contato com algo sobre o qual ainda não temos uma compreensão definitiva, talvez sejam entidades sábias, segundo ela, ou apenas informações captadas do inconsciente do paciente, não sabemos ao certo.

- Não sabia que usavam macumba nesta comunidade.

- Não usamos. Não temos muita clareza sobre esse tipo de fenômeno e por isso o evitamos. Acho que dá muita margem à fantasia, já que temos uma enorme capacidade de nos iludir. De qualquer modo, não se trata de macumba. Chamamos isso de contato com outras dimensões. Mas o fato é que baixou nela uma voz dizendo que o rapaz estava tomado, que estava consciente mas sem querer retomar o controle do corpo.

- O Kaspar está tomado?

- Segundo Ludmila pode ser que Kaspar esteja possuído por um espírito qualquer, como também pode ser que ele seja um rapaz comum sendo dominado por um espírito chamado Kaspar.

- Meio confuso, não acha?

- Confuso não! É mais uma questão de credibilidade, de acreditar que espíritos desencarnados podem se comunicar com os vivos.

- E o que mais descobriram?

- Do ponto de vista mitológico, Kaspar pode ser compreendido como um mensageiro de Plutão, o senhor do Hades, o mundo subterrâneo. Uma energia de destruição, morte, regeneração e renascimento. Uma energia também sexual e revolucionária que traz à tona o que estava oculto nas profundezas de nossos seres.

- Nossa! E depois dizem que eu é que tenho muita imaginação – deixou escapar Amélia.

- Acreditem se quiser. Minha função é transmitir nossas impressões.

- Desculpe, Alaor.

- As figuras míticas fazem parte da nossa vida. Somos influenciados por várias

delas ao mesmo tempo, integradas e equilibradas. Em determinadas fases uma das figuras pode adquirir proeminência e o indivíduo se comporta como um agente dela. No caso do Kaspar parece que ele está vivendo os efeitos da combinação do mito do herói com o mito do destruidor.

- Isso é grego para mim. Pode traduzir? – pediu ela.

- Significa que ele está submetido à influência de energias muito poderosas que o tornam um agente revolucionário em todos os sentidos. Pode provocar mudanças radicais em si mesmo e nas pessoas que entram em contato com ele. Sua sexualidade está exacerbada mas não se concentra na área genital. Está espalhada por toda a pele.

- Isso eu já percebi – confessou Amélia.

- Desde que vocês chegaram senti que toda essa história tinha algo de familiar. Viram o filme do Herzog sobre o Kaspar Ha? – perguntou Alaor. – Já faz tempo que ou. Na época fiquei muito impressionado, tanto que guardei algumas imagens na memória.

- Kaspar Ha?

- Esse filme foi baseado em fatos verídicos. Kaspar Ha era um jovem que surgiu em Nuremberg, na Alemanha, acho que no século dezenove. Parece que ou muito tempo trancado num porão sem contato com outras pessoas e um dia apareceu na praça central da cidade. Não sabia absolutamente nada, nem falar.

- E que mais?

- Não lembro bem. Parece que foi assassinado depois de alguns anos.

- Assassinado por quê?

- Não sei. Acho que sua originalidade incomodava as pessoas, ele não conseguia se adaptar à sociedade. Alguns autores sugerem que ele foi assassinado por questões políticas de hereditariedade. Tinha algo a ver com sangue nobre. Talvez fosse um herdeiro bastardo.

- Que mais?

- Só lembro de algumas imagens fugidias e nada mais. O que me chamou a atenção é a semelhança, não acha?

- É. O mesmo nome... Se foi um fato verídico podemos investigar. E conseguir uma cópia do filme.

- Amanhã cedo tenho que ir à cidade. Vou dar uma ada no consulado da Alemanha para ver se descubro alguma coisa.

Interrompendo a conversa as crianças da Al Terna sempre rindo ou gritando

surgiram de dentro do bosque. Traziam uma ninhada de pintinhos nas mãos. Atrás vinha a mãe, uma galinha arrepiada.

- Achamos no mato, são doze pintinhos.

- A gente vai levar eles pro galinheiro.

Por desconfiança a mãe, uma galinha jovem e ciumenta, escondera seu ninho no bosque. Descoberta, estava apavorada diante dos bípedes gigantes que roubavam seus filhotes mas seguia tentando recuperar a ninhada com argumentos cacarejantes e investidas que faziam as crianças saltarem e rir ainda mais.

Mais tarde, assim que se viram sós, Amélia disparou sobre Doro as inquietações que infernizavam sua mente:

- Doro, você acredita nessa gente?

- Por quê, você não?

- Nem um pouco. Essa gente é louca. Viu as barbaridades que falaram sobre o Kaspar? Em apenas um encontro descobriram tantas... mentiras. Foco revolucionário...?

- São terapeutas experimentados...

- Experimentados em drogas, só pode ser – cortou ela.

- Não viu como foram atraídos por ele?

Amélia balançou a cabeça e por algum tempo ficou refletindo, procurando uma forma de se explicar. Então:

- É como nas sessões de umbanda ou espiritismo. A pessoa vai pra lá acreditando que entrará em transe e que o pai de santo irá tirar algum espírito maligno que habita nela. Ou então gente que procura esses curandeiros para se curar de alguma doença. Se saem curadas não é devido ao curandeiro mas sim à crença. A fé que possuem é que faz com que eles mesmos produzam a cura.

- Não acredito.

- Querido Doro, a maior parte das doenças é criada pelos próprios portadores. Algum trauma se mantém alojado na memória inconsciente e é somatizado em doença. A fé no curandeiro pode remover a memória do trauma e a pessoa se curar.

Doro parecia aceitar as explicações da doutora Amélia. Porém:

- Mesmo que tudo seja falso acho que aqui é o melhor lugar para o Kaspar ficar e para tentarmos entender o que acontece com ele.

- Então fique você com ele. Eu não o tanta fantasia. Esse pessoal deve usar muita droga. Pra mim chega! Vou embora.

8 Cova do lobo

Os filhos e filhas dos residentes da comunidade tinham uma casa só deles. Eram dezoito, com idades variando entre 2 e 12 anos. Os progenitores não se encarregavam de seus cuidados nem de sua educação. Esta função era destinada a pessoas que não tinham filhos mas que gostavam dos pequenos. O papel dos pais era apenas o de amigos. Quando não chovia, a escola, que tinha mais professores que alunos, funcionava ao ar livre.

Por crescerem num ambiente de grande liberdade as crianças eram muito perceptivas e curiosas, e logo se interessaram por Kaspar. Durante o banho da tarde, que era coletivo, cochicharam e decidiram investigar o misterioso visitante, ignorando os avisos dos adultos de que não deveriam se aproximar dele. Combinaram que esperariam até que todos estivessem dormindo...

A lua cheia atraiu Kaspar para fora da cama. Levantou-se nu, como estava acostumado a viver, e saiu para um pequeno pátio interno ao lado do quarto. Quando viu a Lua foi como se brotasse nele um lobo solitário.

Cinco crianças, as únicas que haviam resistido ao sono, estavam encostadas no lado de fora do muro que demarcava o pequeno pátio. Sentiram a presença de Kaspar do outro lado e a curiosidade cresceu.

Acostumados a trepar em árvores quase todos os dias, dois dos garotos subiram no muro com facilidade. Justamente quando alcançavam o topo Kaspar começou a uivar à Lua. Instantes de espanto e paralisia, gritos. Um deles conseguiu pular

de volta mas o outro, Eurico, desequilibrou-se e caiu na “cova do lobo”.

Doro, que dormia no quarto ao lado, acordou sobressaltado e correu. No pátio viu Kaspar com as mãos na cabeça do pequeno Eurico. Sangue escorria entre seus dedos.

- Socorro! – berrou.

Logo chegaram os residentes. O garoto foi carregado ainda inconsciente à enfermaria e Kaspar trancado no quarto até que os ânimos se acalmassem. A comunidade foi dormir com uma pergunta permeando seus sonhos: seria ele perigoso?

9 Falcatruas

A mesma estrada que ava diante da Al Terna servia as terras de Cassiano Dantas, um político falido. Nos últimos tempos ele só queria ficar sentado na varanda da casa grande e deixar o pensamento correr solto sobre o que via: uma variedade impressionante de tons de verde que cercava a propriedade.

De tanto olhar podia distinguir cada contorno das inúmeras árvores que compunham a floresta ao redor. Embora a temperatura naquela época do ano fosse escaldante, Cassiano não tinha vontade sequer de ir ao rio para refrescar o corpo como antes costumava fazer. Exauria-se de calor e desânimo, sentindo a vida murchar e o tempo correr cada vez mais rápido.

“Tenho que ir embora deste país!” – repetia a frase em pensamento para se convencer de que seria a solução de sua vida.

Um ronco de automóvel ecoou ao longe. Em sua imaginação Cassiano Dantas acompanhou o trajeto que o veículo fazia pela estrada interna da fazenda, atravessando a longa extensão de mata virgem que protegia a casa. Pelo ronco do motor sabia que era uma Mercedes preta e que no banco de trás vinha o gordo Stromberg. Sentiu a boca do estômago gritar acidamente.

Pensou em escapar, correr até o rio, mergulhar e deixar-se levar pelas águas... Não distinguia se a morte era um pressentimento ou um desejo. Durante os últimos meses vinha se assustando com fantasmas, vultos negros que avançavam sobre suas costas. Ao virar-se, certo de dar de cara com alguma espécie de

monstro, nada via. Estaria mal da cabeça, paranoico?

Quando a Mercedes estacionou junto da varanda Stromberg desceu do carro com facilidade apesar da enorme barriga, sem esperar que o motorista viesse abrir-lhe a porta como era de costume. Dispensou o funcionário, caminhou direto para o anfitrião.

- Não precisas levantar-te, Cassiano. Trago grandes novidades. O senador Dantas me mandou falar contigo.

- Agora ele se lembrou que tem um primo?

- Ninguém se esqueceu de ti, meu amigo.

- Não? Hoje ele é um senador, sentado no luxo, e eu na merda, mofando – reclamou Cassiano.

- O senador Dantas não recompensou o teu enorme trabalho na campanha eleitoral que o elegeu, aparentemente esqueceu-se de ti por algum tempo, mas tudo por um motivo imperioso: não queria evidenciar nenhum tipo de nepotismo. Bem sabes que o início do mandato de um senador não é coisa fácil. É quando se tem a chance de armar os grandes negócios. Ele esteve muito ocupado negociando cargos, arrematando alianças. Mas agora chegou a vez de ajudar o primo querido.

- Que milagre! Ajudar é um verbo que nunca transitou pela cabeça dele.

- Ele tem um cargo que vai te agradar. Segundo escalão do governo, o que te parece? O salário não é uma grande fortuna, mas acaba sendo muito bom porque é uma excelente fachada para arranjos lucrativos. E mais: ele quer abrir uma nova empresa em teu nome, Cassiano.

- Sabia que tinha alguma coisa por trás dessa generosidade. Lavagem de dinheiro às minhas custas?

- Não sejas grosseiro! – resmungou Stromberg coçando o escroto.

- Ele quer usar o meu nome em mais uma falcatrua, só pode ser isso. Tenho cara de laranja?

- Não deves colocar a coisa nestes termos. Soa mal! Quem te ouve falar pode pensar que somos bandidos. O senador recebeu uma oferta irrecusável em troca de uns poucos favores que terá de conceder. Mas para angariar o fruto da tal oferta falta uma empresa. Qual é o problema? Não vamos prejudicar ninguém. O negócio é seguro e terás uma boa fatia. Sem nenhum esforço...

- Qual é o produto que teria meu nome como responsável?

Stromberg hesitou em responder, como se não encontrasse a palavra certa.

- Drogas? – adiantou-se Cassiano.

- Armas – soltou o gordo de uma vez.

- E ainda diz que não vamos prejudicar ninguém?

- Escuta bem, Cassiano. Não vamos matar ninguém. Vamos apenas intermediar algumas transações. Seremos apenas um elo de uma grande corrente. O que vão fazer com essas armas não é da nossa conta. Não vamos agora entrar numa discussão filosófica sobre o bem e o mal, vamos?

Cassiano não conseguia concentrar-se na conversa, sua mente continuava raivosamente presa à figura do primo senador.

- Meu primo é mesmo um canalha! – desabafou.

- Cuidado com o rancor, faz mal ao coração. E ao sexo também... Sabemos que a tua situação financeira é das piores. Tiveste que hipotecar esta fazenda. Ainda bem que foi comigo. Aposto que quando me viste chegando sentiste um aperto na barriga, pensou que eu vinha tomar-te as terras. Belas terras! ...Não te sobrou quase nada, Cassiano, apenas o teu orgulho. E agora, o que vais fazer? Dá uma chance a ti mesmo. Aceita a nossa proposta, garanto que não te irás arrepender.

Ime. Cassiano parecia irredutível. Stromberg, que tinha motivos particulares para conseguir a adesão, pois também ganharia muito dinheiro com a abertura da empresa, teve que ampliar a oferta.

- Para provar que não oferece apenas migalhas, assim que es o contrato da nova empresa o senador Dantas pagará todas as tuas dívidas, que não são poucas. E tem mais! Devolvo-te a hipoteca deste lugar de que tanto gostas. Perdoo a dívida. Pronto! Hoje estou extremamente generoso.

Um alívio invadiu o peito de Cassiano enquanto Stromberg explicava os últimos detalhes.

- Só tens que o contrato e alguns papéis de praxe. Depois vais ter que aparecer de vez em quando em algumas reuniões. Nada que roube muito do teu tempo. Vou emprestar-te a Mercedes com chofer e tudo por este mês, precisas reaparecer em grande estilo. O chofer é pau para toda obra, o nome dele é Aldo, de total confiança.

Aos pulos um pássaro quero-quero piou na grama do pasto onde o potro árabe Zeus nascera e dançara seus primeiros os. Quando Cassiano entrou em decadência financeira viu-se sem condições de manter seus cavalos e teve de vendê-los. O pessoal da Al Terna comprou o potro.

“Poderei recomprar Zeus!” – foi o pensamento que fez Cassiano levantar-se e apertar a mão do gordo.

- Feito! Estarei lá, vou o contrato!

- E o cargo no segundo escalão?

- Vou pensar, Stromberg.

- Não há muito tempo.

- Dê-me alguns dias.

- Está muito bem! Agora mereço aquela cervejinha supergelada, não é?

Aldo. Chofer, guarda-costas, secretário particular, mordomo e tudo o mais que dele necessitassem, afastara-se da casa até a beira do rio e ficara jogando seixos na água, distraindo-se como um menino. Aproveitava o momento de solidão, relaxava, uma vez que Stromberg não corria risco algum naquele lugar tão isolado nem parecia precisar dele. Sabedor das intenções do patrão de deixá-lo ali por um tempo, estava feliz em poder estar de volta ao campo, usar pouca roupa, expor seu corpo à apreciação daquela natureza.

Por contraste, o murmúrio fresco das águas beijando as pedras fazia o ar parecer mais quente. Aldo olhou ao redor para constatar que não estava sendo visto, sentiu um enorme desejo de banhar-se. Desnudou-se e mergulhou na piscina natural cavada por uma pequena cascata. Depois de brincar embaixo dela até perder o fôlego ficou flutuando de costas, olhando o céu, irando seu corpo nu tremular sob as águas. Gostava de si mesmo.

10 Tantra

Na Al Terna, em seu pequeno bangalô, Lia meditava diante do espelho buscando direcionar para a consciência o excesso de energia que nela brotava desde que conhecera Kaspar no dia anterior. Sem piscar, olhava seu reflexo – uma técnica de projeção de autoimagens retidas no inconsciente. Aos poucos viu o espelho apresentar uma sequência de faces, todas suas, alternando-se uma após outra até deter-se por mais tempo no semblante de uma mulher velha que parecia uma feiticeira medieval. Como tal, ouviu baterem à porta. Era Doro.

- Desculpe se vim incomodar, posso voltar outra hora se preferir.

- É um prazer te receber, Doro. Queria mesmo falar com você. Entra. Como está o Kaspar? – quis saber a feiticeira.

- Dormindo. Ele a a maior parte do tempo dormindo. Parece que a realidade o cansa demais.

- Sente-se se quiser. Aceita um chá verde?

- Não sou muito chegado a chá mas vou aceitar.

Enquanto ela servia, Doro observava a decoração do lugar. Como artista de cores e formas ele absorvia a engenhosidade, a beleza da arrumação de tantas coisas em tão pouco espaço. Sentia o acolhimento proporcionado pelos tecidos estampados no teto, estendidos como numa tenda árabe. Ali não existia cama, apenas esteiras e almofadas de cores suaves.

- Uma delícia de lugar você tem aqui, Lia!

- É meu ninho ageiro, meu abrigo, um refúgio temporário.

- Anda refugiada?

- Acho que todos somos refugiados. Só que a maioria não sabe. Doro, quero te contar uma coisa: foi muito forte o que me aconteceu com o Kaspar. Ele é um ser muito especial.

- É exatamente o que eu penso. Também fiquei muito impressionado com você. Tive vontade de te conhecer melhor...

- Sei – disse ela num tom de pergunta.

- Juro que não vim te seduzir.

- Vou fingir que acredito. Por onde você quer que comecemos?

- Soube que você é terapeuta, mas faz o quê?

- Busco me encontrar.

- Não é o que fazem todos na comunidade?

- Talvez.

- E por que aqui, quero dizer, na Al Terna?

- Sigo minha intuição. Há uma vibração muito benéfica neste lugar.

- Então você é terapeuta, vi que está na cúpula, mas o que você faz, realmente?

- Trabalho com o Tantra. Já ouviu falar?

- Já. Mas não sei do que se trata.

- Tantra significa caminho. É um conjunto de cento e oito técnicas de meditação deixadas por Lorde Shiva na Índia, séculos antes da era cristã.

- Associei a palavra Tantra com sacanagem. Será porque você é sexy demais ou tem alguma coisa a ver?

- Você disse que não ia me cantar!

- Desculpe.

- Algumas das técnicas do Shiva são variações em torno do ato sexual, por isso as pessoas associam Tantra com sexo. Como você deve saber, o sexo é uma potente fonte de energia que pode ser transmutada em consciência. O Tantra trabalha precisamente com essa energia.

- Não me diga! Como?

- Como? De muitas maneiras. Por exemplo, uma técnica simples: durante o ato sexual o casal se mantém completamente imóvel após a introdução do membro masculino. Para conservá-lo ereto por um longo tempo a mulher contrai os músculos vaginais sempre que perceber que o membro do homem está amolecendo.

- Legal! E depois?

- Só isso. Fecham os olhos, respiram juntos e mergulham em si mesmos. Nesta técnica o homem não deve ejacular para que a kundalini possa fluir em direção aos centros superiores, mais sutis.

Em sua imaginação Doro viu uma serpente porém nada disse, deixando Lia prosseguir.

- A kundalini é um par de serpentes de energia que sobe em espiral ao redor da medula ligando todos os centros vitais do corpo. Parece uma molécula de DNA e é também o símbolo da medicina.

- Nossa, que estranho! Eu sabia que você ia falar de serpente. Vi de repente na minha cabeça a imagem...

- Isso é natural. A serpente é um ícone muito poderoso. Está sempre presente quando se trata de transcendência – e fechou os olhos para sentir a extensão do que acabara de dizer.

Doro mal podia se conter; sentia que tudo se encaminhava para um desfecho satisfatório segundo seus desejos eróticos. Achava que ela estava cedendo mas lutava consigo mesmo para não comemorar vitória antes da hora.

- E os casais que fazem isso... O que é preciso... Devem ser casados, amantes?

- Quanto menos envolvimento emocional, melhor. Mas também pode ser feito entre amantes, até mesmo entre pessoas do mesmo sexo.

- Mas como?

- É que esse negócio de mesmo sexo é uma aproximação muito grosseira. Cada pessoa tem uma única e diferente sexualidade. Inúmeras combinações são possíveis. Há jeito para quase tudo.

Mais e mais aprisionado pelo encantamento da feiticeira, sem perceber que era a caça e não o caçador, Doro dava corda ao jogo da conquista.

- E essa kundalini... também faz parte dessa religião?

- Não é religião. É apenas uma palavra usada por muitos grupos esotéricos. É um fluxo de energia que pode ser ativado através do ato sexual e de outras práticas meditativas.

- Puxa! Até que enfim ouço falar numa técnica de autoconhecimento que não é chata!

- Hoje em dia há muitas religiões que não são chatas. O pessoal canta e dança. As missas e cultos das religiões tradicionais nada mais são do que teatro popular, historinhas para manter a humanidade dormindo em berço esplêndido.

Em seguida ela baixou a cabeça como se quisesse entrar em outra sintonia. Doro sentiu um súbito tremor e se deixou atacar por receios.

- E não há perigo nesse Tantra? Hoje em dia as doenças...

- Para isso existe a camisinha ou a confiança.

- Mas no Tantra... O que você faz... Quero dizer, enquanto os casais transam você fica espiando?

- Transmito as indicações, o casal faz a meditação onde e quando quiser e depois comentamos os resultados. Quando o trabalho é grupal assisto e participo de tudo.

- Mas isso é um bacanal!

- Por que não? Você é moralista? Tem a mania de associar sexo e amor?

- Está errado?

- Não, mas é apenas uma das muitas associações possíveis.

Doro ficou um tempo tomado pela imaginação de possibilidades sexuais, depois resolveu retomar a conquista:

- Lia, você deve ter tido muitas experiências para poder dirigir um trabalho assim, certo?

- Já experimentei de tudo um pouco. Mas não sou daquelas que tem que beber a garrafa inteira para descobrir se o vinho é bom.

Entretanto um dilema interior rachava a mente dele: não conseguia distinguir se a força que o dominava era atração ou repugnância, medo ou desejo. Por frações de segundo pressentia a feiticeira e se assustava, mas logo rendia-se à beleza da deusa morena.

Como o canto dos pássaros, as palavras são instrumentos sexuais que dardejam volúpia. Doro não conseguia segurar a língua.

- Saiba que você me despertou um... Uma curiosidade imensa. Gostaria de experimentar esse Tantra algum dia.

- Arrume um par e venha, ou entre num grupo de terapia. Temos trabalhos grupais uma vez por mês aos fins de semana.

- Não me sentiria à vontade num grupo. Teria vergonha. Uma vez fui a uma praia de nudismo e não consegui tirar a roupa. ...Você tem um par?

- Você disse que não veio me cantar...

Sorrisos foram trocados espontaneamente. Ela retirou as xícaras vazias e apresentou sua primeira surpresa.

- Doro, fica em pé, tira toda a roupa e fecha os olhos.

Sem pestanejar um segundo ele tirou a roupa e permaneceu de pé, cego, um pouco trêmulo. Ela girou ao redor dele avaliando a presa, que era um belo espécime animal. Começou a examiná-lo pelo pênis, sem pudor.

Ao sentir-se observado, provavelmente desejado, a força misteriosa que faz os machos enlouquecerem com o impulso de meter-se a todo custo num buraco qualquer deu sinal de que estava a ponto de rebelar-se. Seu membro inchou rápido e ergueu-se. Ela comentou:

- É uma das coisas mais bonitas da natureza! Uma das poucas partes do corpo humano que se transformam tão visivelmente. Adoro esse momento. Obrigada pelo presente, Doro! Quer abrir os olhos?

Foi então a vez dela de abrir o robe de seda, deixá-lo cair ao solo, fechar os olhos e deixar-se cobiçar. As curvas da cintura muito fina foram a primeira coisa que ele percebeu. Em seguida os seios erguidos, delicados, quase pequenos. Os pelos pubianos negros bem aparados em forma de seta apontavam a fenda, a misteriosa porta entre dois mundos. O macho afoito já não podia se conter e tentou agarrá-la de uma vez.

- Calma... Muita calma! – ela o fez recuar e sentar-se sobre uma almofada. Em seguida colocou-se de frente e com delicadeza acomodou-se sobre o membro latejante, sussurrando no ouvido dele:

- Não se mova.

De olhos fechados Doro podia sentir cada milímetro do pênis sendo engolido por um portal muito quente. Entretanto... De todos os modos que conhecia, sua mente se debatia para deter o febril batalhão de espermatozoides que se preparava para atacar, mas em vão. Uma flecha de fogo rasgou seu caminho para fora como um vulcão vomitando lavas. Ele ejaculou antes mesmo que ela estivesse completamente sentada.

- Que desastre! – murmurou ao ouvido dela dividido entre a culpa e o prazer mas aproveitando para apertá-la em seu peito, beijá-la e tentar chupar seu pescoço fino.

Depois de sentir que a ejaculação terminara Lia saiu de cima dele e aconselhou:

- É melhor você ir embora e tomar um banho bem frio.

- Vai me despedir assim?

- Que mais você quer?

- Sei lá. Conversar, uma orientação, um conselho... – ele improvisou tentando ganhar tempo.

- Tudo bem, mas vai ser no meu consultório, formalmente, e você vai ter que

pagar. O encontro será em meia hora.

Humilhado e magoado ele se banhou e correu para o consultório. Não estava acostumado a conversar esse tipo de coisa com mulheres. Desde que era adolescente orgulhava-se do controle mental que exercia sobre o violento pênis. Era capaz de conter a ejaculação quanto tempo fosse necessário para que suas parceiras se satisfizessem plenamente. Desenvolvera esse controle por ser do tipo que prefere encontrar prazer no prazer da outra pessoa.

Logo que se acomodou no consultório...

- Gostaria de dizer alguma coisa? – começou Lia em tom profissional.

- Estou confuso, isso nunca...

- Já sei.

- Mas é verdade, Lia. Sempre tive um controle perfeito.

- Talvez aí comece o problema. O controle não é desejável. O instinto fica prisioneiro da mente.

- E o que isso tem a ver com...

- Quando existe uma real união de corpos a individualidade morre, sobretudo durante o orgasmo. Os dois se tornam um. Há uma religação, o fim da dualidade. Mas a mente tem horror a qualquer espécie de morte e quando está no controle não permite que haja uma entrega, uma fusão. Então o prazer é mínimo, apenas uma descarga, como um curto-circuito.

- Mas eu sinto prazer nas minhas relações.

- O que você chama de prazer, o que conhece, pode ser muito pouco. Mas não se sinta culpado, a grande maioria dos homens é assim. Socialização, repressão... Por medo da morte da individualidade, de expor o animal que existe dentro de si, as pessoas am apenas uma dose muito pequena de prazer. Daí a necessidade de relações constantes, diárias, repetitivas e insatisfatórias. Devo confessar que eu já esperava o que aconteceu.

- Como assim, esperava? Achava que eu iria...

- Em geral as pessoas têm que ar por várias fases antes de estar aptas a se beneficiar das técnicas tântricas que envolvem relações genitais. Mas eu sabia que você não toparia se eu te mandasse fazer alguns meses de terapia antes de te aceitar como par.

- Podia ter me livrado do vexame.

- Aqui na comunidade as fofocas correm depressa. Assim que você chegou eu soube da sua fama de bom de cama. Tinha que te dar um choque. De alguma forma era preciso enfraquecer o seu ego, sua personalidade machista, para que pudéssemos ter essa conversa. Desculpa, mas não vi outra saída.

- Estou me sentindo um completo idiota.

- Há uma variedade de técnicas que podem te ajudar. O primeiro o é romper a opressão da mente sobre o corpo. Existe uma grande quantidade de energia bloqueada aí dentro.

- E quanto tempo isso leva?

- Depende de você, do seu empenho, do seu grau de entrega. Pode levar meses, anos, décadas.

- Não seja cruel. E enquanto isso, o que eu faço com o que estou sentindo?

- Paixão?

- Acho que sim.

- Livre-se dela o mais depressa possível.

11 Kaspar Ha

Alaor conseguiu informações sobre Kaspar Ha junto ao consulado da Alemanha. Era um filme. Os terapeutas reuniram-se com Doro na sala de projeções da Al Terna para assisti-lo.

- Onde está a Lia, alguém sabe?

- Ela mandou avisar que não virá. Disse que precisa ficar sozinha.

- Seguimos sem ela então. Eu trouxe uma cópia em vídeo do filme do Werner Herzog fornecida pelo consulado. Eles não têm muitas informações sobre Kaspar Ha. Não há uma versão oficial do governo alemão, sobretudo a respeito de sua origem e de sua morte. Uma corrente de estudiosos acredita que ele tenha sido filho de Karl von Baden, príncipe herdeiro do estado de Baden. Como no mito de Édipo, teria sido rejeitado quando nasceu e salvo por uma alma piedosa que o manteve escondido durante mais de quinze anos num mosteiro. Vamos ver o vídeo?

No início as imagens mostram um rapaz preso num subterrâneo escuro, balançando um cavalinho de madeira – Kaspar Ha. Um monge vestido de negro chega para libertá-lo e o conduz nu durante a noite até uma praça em Nuremberg, deixando-o ali sozinho. Pela manhã, quando a população desperta, o estranho torna-se alvo da curiosidade geral. E neste mesmo dia tem início um lento massacre civilizatório que culmina com o assassinato do estranho rapaz.

Um silêncio dramático agarrou a seleta plateia durante todo o filme. Lágrimas brotavam sem cessar dos congestionados olhos de Doro. Nos dois momentos em que o personagem é vítima de agressão física ele sentiu a violência no próprio corpo. Kaspar Ha consegue se recuperar do primeiro ataque, mas no segundo as facadas que dilaceram seu peito são mortais.

Enquanto a película alemã transcorria, sozinho em seu quarto Kaspar se embriagava com o cheiro de terra e com a tênue luminosidade filtrada pela veneziana. Ouviu os suaves se aproximando pelo gramado. Logo a porta rangeu e apareceu a figura dourada de Lia. Quando ela entrou ele deitou-se, fechou os olhos e mergulhou em águas profundas.

O que se ou entre eles naquela tarde Lia jamais revelou. Deve ter sido um encontro muito energético e libertário porque em seguida, sem lembrar-se de fechar a porta que deveria ficar trancada por fora sempre que Kaspar fosse deixado só, ela saiu do bangalô e correu pelo gramado, esvoaçando como uma libélula, quase sem tocar o chão.

O sol baixando ressaltava as formas verticais no final da tarde. Um bando de maritacas regressava depois de um longo dia de batalha pela sobrevivência despejando no ar uma enxurrada de piados. A primavera se anunciava espargindo um perfume cru.

Diante da porta aberta Kaspar não vacilou. Avançou um o para fora e deu de cara com o Sol. Momentaneamente cegado pela intensa luz saiu tateando, de quatro, como se acostumara a andar no subterrâneo do mosteiro. Quando voltou a enxergar com nitidez caminhou com embaraço, como que se desculpando por cada palmo de espaço que seu corpo invadia, consciente de sua interferência no quadro total da paisagem. Para sentir a realidade daquilo que via, necessitava tocar: a terra, as pedras, o brilho das folhas... De repente, surpreendido com uma

borboleta azul que ou voando sobre sua cabeça, ele caiu. Um instinto até então oculto e desconhecido apoderou-se dele e o tornou caçador. Partiu em perseguição ao inseto voador saltando arbustos e valas. A borboleta perseguida penetrou o espaço do bosque com ele em seu encalço.

Ao final do filme havia uma grande consternação na sala de projeções. Era como se o próprio Kaspar, que corria atrás da borboleta ali perto, tivesse sido assassinado. Foi Alaor quem criou coragem para quebrar o clima.

- Achei interessante o final do filme, quando os legistas descobriram durante a autópsia de Kaspar Ha que o hemisfério esquerdo do cérebro dele era atrofiado e o direito avantajado.

- O lado esquerdo que se atrofiou é o responsável pela razão, pela mente inferior, pela comunicação objetiva, a análise, os números, a palavra...

- Atrofiou por falta de estímulo, por ter ficado tanto tempo sem se comunicar, por sua existência ter sido muito monótona. O lado direito cresceu para preencher o espaço deixado pelo lado esquerdo.

Desde que encontrara o rapaz como uma estátua na pracinha, uma crescente sensação de perigo se apossara de Doro. O filme fez transbordar seus limites emocionais. Durante a projeção sentira uma enorme aversão pela humanidade. Pressentia ataques por todos os lados. Deixou a sala apressado, encaminhando-se ao bangalô para certificar-se de que o seu Kaspar estava vivo, para envolvê-lo nos braços e com ele fugir para alguma montanha distante onde a civilização ainda não tivesse chegado. Quando de longe viu a porta aberta correu como louco e constatou em pânico que seu protegido estava ausente. Soltou um grito doloroso que ecoou por todos os rincões da comunidade:

- Kaspar-ar-ar-ar!

Todos se mobilizaram na busca. Noite adentro, focos de lanternas vasculharam entre as árvores. Não havia rastros do querido visitante.

12 Regressão

O sumiço de Kaspar aconteceu quando ele caçava a borboleta azul através de uma vegetação que se adensava a cada o. Embora seus pés delicados sofressem um pouco, ele deslizava rápido pela mata sem chocar-se com troncos ou galhos. Como? O tempo gasto entre a percepção do fato e a execução corporal correspondente talvez não existisse, talvez ele nem pensasse.

Dominado somente pelos instintos seguiu a borboleta até alcançar um pasto aberto. Só então conseguiu apanhá-la, engolindo suas brilhantes asas azuis de uma só bocada. O espaço era o piquete do potro Zeus, que logo apareceu como uma luz púrpura galopando em sua direção.

Embora muito maior e com movimentos extravagantes, é possível que Zeus lhe parecesse ser aquele mesmo cavalinho de madeira, a única coisa que comandava enquanto esteve no porão. Considerando-o parte de si, saltou sobre o animal, abraçou-lhe o pescoço e arrancou num galope vigoroso vencendo cercas e cruzando plantações até o anoitecer. Como se fossem um, sem receio entraram pela noite saltando obstáculos. Pela madrugada, ensopados de suor, chegaram às margens de uma pequena lagoa. Kaspar desprendeu-se quando o cavalo entrou na água e ficaram boiando durante algum tempo. Depois dormiram juntos no gramado.

O sábado amanhecia. O motor de uma Mercedes se aproximando desafinava a música da natureza. Zeus levantou-se rápido, estirou o pescoço e relinchou.

- Pare o carro! – ordenou Cassiano Dantas ao avistar o potro.

- Que animal mais lindo! – soltou Aldo encostando a Mercedes.

- Quero vê-lo de perto.

- Seu Dantas, o cavalo está solto, pode ser perigoso...

- Perigoso? Conheço esse potro do focinho ao rabo. Nasceu lá na fazenda. É da minha criação. Tive que vendê-lo num aperto, mas logo vou comprá-lo de volta – e foi em direção ao animal.

Kaspar permaneceu sentado, observando curioso aquela figura de terno e gravata. O potro aproximou-se ao reconhecer o antigo dono, esticou o pescoço, cheirou-lhe a mão e permitiu que Cassiano acariciasse seu peito. Depois afastouse em disparada e desapareceu na primeira curva.

- O que fazia esse cavalo aqui? – gritou Cassiano para Kaspar que permanecia à beira da lagoa.

Como não houve resposta Cassiano acercou-se seguido pelo chofer.

Desamparado com a fuga do cavalo, assustado com os vultos humanos que cresciam em sua direção, Kaspar usou sua defesa preferida: desmaiou. Depois de tentar acordá-lo sem resultado, Cassiano decidiu levá-lo consigo.

- Este rapaz deve ser peão do haras que comprou o potro do senhor – arriscou o chofer.

- Quem comprou foi o pessoal daquela comunidade maluca. Mas já amos por ela.

- Tem o número do telefone deles?

- Ainda é muito cedo para ligar para desconhecidos. Vamos deixar o rapaz no posto de saúde mais próximo.

Esgotado pela aventura noturna sobre o cavalo, Kaspar ou direto do desmaio a um sono profundo. Na dimensão onírica ainda galopava sobre as águas de uma lagoa muito grande, sem limites, no infinito mar do inconsciente. Relaxada, sua cabeça tombou e aconchegou-se no ombro de Cassiano. Tomado por um raro instante de ternura ele se acomodou para melhor amparar a desgrenhada cabeça do rapaz.

À medida em que o carro avançava, Cassiano, um político que vivia uma realidade artificial repleta de ambições alheias às necessidades do corpo, voltou a perceber a própria respiração, a sentir o ar fresco vibrando em suas narinas, o que abriu espaço para lembranças. Não havia nuvens e o sol nascendo no fim da estrada obrigava-o a fechar os olhos. Foi quando começou a experimentar uma regressão à infância.

Na tela vermelha das pálpebras sua vida de adolescente jovem foi projetada em

cenas desordenadas até fixar-se na imagem da casa das máquinas. O lugar ficava na cobertura do prédio onde ele havia morado com a extensa família que incluía avós, tios e primos. Um destes primos, seu amigo íntimo, agora senador, costumava atraí-lo para lá, o único espaço sempre deserto onde podiam realizar o jogo predileto dos dois.

Acontecia quase todos os dias durante a adolescência. Bastava uma pequena troca de olhares entre si para que um, depois o outro, subissem sorrateiramente até aquela espécie de torre onde se dava a brincadeira, o ritual silencioso.

Lado a lado, sem proferir palavra alguma, ficavam um bom tempo olhando os telhados da vizinhança pela pequena janela. Mas nada enxergavam porque traziam o olhar voltado para dentro, para a crescente excitação que esquentava seus corpos, para as pernas que se tocavam, para o sexo adolescendo. Aos poucos o jovem Cassiano ia se colocando atrás do primo com muito cuidado. Cada movimento obedecia a uma sequência aprendida nas experiências anteriores, sem pressa, os olhos perdidos na retalhada imensidão dos telhados.

Assustado, Cassiano abriu os olhos e chacoalhou a cabeça para escapar da memória.

- Que foi? – perguntou o alerta chofer diminuindo a marcha.

- Pode continuar, foi apenas um susto – e Cassiano teve que enxugar a testa. Uma sensação de vazio dominava seu peito. No jogo relembrado ejaculava rapidamente dentro do primo e em seguida se afastava, quase fugindo. O primo lá permanecia olhando as nuvens, com os rastros do amigo dentro de si, em busca de um orgasmo solitário: insatisfação que podia ter deixado sequelas...

Mais tarde, no final da adolescência, o primo arranjou uma namorada e o ritual entre eles se extinguiu. Cassiano nunca se conformou com a separação, jamais voltou a experimentar algum tipo de homossexualismo físico, nem no abraço dos amigos. Tornara-se seco no tratamento com homens.

- Quer que eu feche as janelas e ligue o ar-condicionado? Quer que eu tire esse cara daí? – perguntou Aldo captando a alteração da respiração do patrão.

- Acho melhor deixá-lo no posto da polícia rodoviária – sugeriu Cassiano tomado de repente por uma estranha aversão ao indefeso Kaspar, que também era um homem e por isso lembrava seu primo. Uma velha fúria de vingança se moveu nas catacumbas de seu estômago.

Minutos depois, no posto militar um policial ajudou a tirar Kaspar ainda sonolento da Mercedes. Ouvidas as explicações de Cassiano, o sargento decidiu acordá-lo no berro. Abalado pelo grito ele despertou e num ato de defesa falou pela primeira vez, num tom e num ritmo que davam a impressão de algo decorado:

- “Quero minha cama”.

- Sua cama? Andou bebendo, mal amanheceu o dia? Senta aí – intimou o policial com um empurrão.

- Posso ir agora? – perguntou Cassiano de saída, envergonhado por deixar o rapaz nas mãos daquele homem bruto.

- Pode deixar comigo. Dou um jeito nele.

Kaspar acompanhou o ruído do carro se afastando e sentiu de novo um enorme desamparo. Não como aquele de quando estava no porão, onde tudo era uma coisa só e não havia separação entre ele e o todo. Agora ele habitava apenas o que estava dentro de sua pele. O mundo de fora estava cheio de objetos, sujeitos, verbos e predicados que o faziam sentir-se cada vez menor.

O sargento era assustador. Um homem cruel que provavelmente espancaria a família todas as noites se o dia a dia da polícia não lhe permitisse extravasar sua agressividade. Seu rosto, marcado em demasia pelas incontáveis repetições de caras feias e amedrontadoras que usava no trabalho, apresentava profundas rugas verticais que ampliavam sua expressão autoritária. Quando interrogava mostrava os caninos sem mesmo querer.

- Agora é entre mim e você. Não se faça de besta comigo, rapazinho! Nome, endereço e profissão.

Como sempre fazia, com um medroso gesto de mão em direção ao peito, o jovem disse baixinho:

- Kaspar.

- Kaspar? Nome esquisito... E o resto?

- “Todo o resto é mal. Minha cama é…”

- Tá querendo gozar com a minha cara?

- “Minha cama é o único lugar bom que conheço... Quero voltar ao porão...”

Um sonoro tapa em sua boca interrompeu a frase. Tomado de pavor, Kaspar escapou e correu trôpego pelo acostamento da estrada, com o policial atrás. Quando estava a ponto de ser pego desequilibrou-se e aterrizou no mato. Em seguida sentiu o peso do sargento caindo em suas costas.

Quilômetros adiante, enquanto o policial prendia Kaspar como suposto marginal, Cassiano Dantas mandou parar o carro, abriu a porta e vomitou grande parte da bílis que acumulara durante anos.

- Vamos fazer uma pequena mudança nos planos – e limpou a baba do queixo.

- Que mudança? – perguntou o motorista.

- Nada importante, vamos primeiro ar pelo jornal. Quero dar uma entrevista.

- Imprensa?

- É. Quero voltar a ocupar algum espaço na mídia. Não tenho direito?

- É claro. Ninguém mais do que o senhor tem esse direito. Mas é que o senhor não me parece bem. Ficou magoado com aquele sujeito do cavalo.

- Engano seu. Não sei ainda bem por quê, mas tenho a impressão de que aquele rapaz me ajudou a tomar uma decisão.

- Pensei que não tinha gostado dele.

Permaneceram calados até chegarem à sede do jornal. O patrão mandou que Aldo esperasse no carro e entrou sozinho.

Movido por um rancor velho e adolescente e por uma repentina crise de consciência Cassiano Dantas concedeu uma longa entrevista acusando o senador Dantas, seu primo e ex-amante, de orquestrar diversos esquemas nacionais de corrupção.

O jornalista que recebeu de mão beijada o furo de informação não cabia em si. Havia anos que esperava por um momento como aquele. A esperança de que essa hora chegasse mantivera sua fé na profissão e o ajudara a ar escrever sempre artigos insignificantes, meramente profissionais, que só serviam para ajudar o leitor a matar o tempo. Idealista, não podendo conter-se de satisfação, confessou emocionado a Cassiano:

- Estou pra estourar de alegria! São dois coelhos numa cajadada só! Uma reportagem que vai me projetar como jornalista e que ao mesmo tempo pode ser o toque de clarim anunciando o despertar da justiça na política do nosso país.

O peso da responsabilidade baixou nos ombros de Cassiano. Sentiu uma fraqueza nas pernas, no peito, foi atacado por vertigens. Pediu que chamassem Aldo.

Ao entrar na redação e ver o patrão tão pálido o chofer partiu para cima do jornalista, mas Cassiano interveio antes que a agressão se consumasse.

- Aldo, deixa esse homem em paz. Não estou nada bem. Pode me levar de volta para a fazenda?

- O senhor está sentindo alguma coisa grave? Não acha melhor a gente chamar um médico, um pronto-socorro?

- Não é caso pra isso.

- O que você fez com ele? – gritou Aldo, voltando a pressionar o jornalista.

- Ninguém fez nada comigo! – interveio outra vez o patrão, impedindo seu entrevistador de dizer algo que revelasse o conteúdo da entrevista que acabara de conceder. – Não se preocupe, Aldo. Só preciso descansar. Pode me levar até o carro?

Paternalmente Aldo sustentou-o pelos braços e o conduziu até a Mercedes. Ao jornalista que gentilmente os acompanhara até o carro Cassiano fez um pedido:

- Pode incluir na sua matéria que eu estou partindo para o exterior ainda esta noite?

- Claro, o que o senhor quiser.

- Também preciso de algum tempo antes que publiquem a entrevista. Até segunda-feira, posso confiar?

- Mas amanhã será domingo, o dia de maior tiragem...

- Preciso desse tempo.

- É pena... mas pode ficar sossegado. Dou a minha palavra. A matéria não sai antes de segunda-feira. E mais uma vez parabéns pela coragem e muitíssimo obrigado.

No caminho de volta Cassiano preferiu fingir que dormia para não ter que se preocupar com os pensamentos que atormentavam o chofer. Mesmo assim Aldo insistiu:

- O senhor vai pro exterior ainda hoje?

- Não, foi só uma jogada.

- E a do contrato do Stromberg, desistiu?

- Não há tanta pressa assim. Não estou me sentindo bem. E depois, sábado não é dia de trabalhar. Vamos deixar isso para segunda-feira. Agora chega de conversa. Preciso descansar.

Cassiano resolveu manter segredo até que a entrevista fosse publicada. Fechou os olhos antevendo os resultados de seu ato: uma procissão de escândalos na cúpula política do país.

13 Francisco

Enquanto isso, na grande praça do centro da cidade, Francisco, um jovem que mais tarde seria de grande importância no caminho de Kaspar, dormia num banco de jardim debatendo-se com um pesadelo recorrente, retrato onírico de sua vida: ruas sujas repletas de lixo, corpos jogados no chão, brigas de rua, perseguição policial, violência, fome e dor.

No pesadelo os piores momentos se deviam aos olhares vexados do pai, sempre presentes em cada ângulo, em cada circunstância apresentada, como anjo ou demoníaco espião. Cobrança sem trégua! O desejo paterno de transformá-lo no mais forte, no mais corajoso, o melhor em tudo, fez dele um homem de físico forte, vestido de músculos forjados no trabalho pesado e nos esportes marciais.

A mãe, olhar inquieto e sonhador, contava-lhe histórias de terras distantes, de aventuras, fazendo crescer nele a ânsia de conhecer o mundo. Talvez isso o tenha levado a fugir de casa ainda bem jovem. Veio sozinho para a cidade grande com o peito aberto como se fosse encontrar uma comitiva de recepção. Sabia falar com desenvoltura e escrevia muito bem. Pensava que tais habilidades, aliadas ao seu porte varonil, seriam suficientes para abrir-lhe as portas do sucesso.

Teve, porém, que baixar a cabeça logo na chegada, aprender a viver nas ruas, disputar um lugar nos intestinos da cidade. Nunca itiu a possibilidade de voltar à família, apesar das dificuldades. Preferia perder-se no anonimato das sarjetas a ar a vergonha de regressar fracassado à casa dos pais.

Molhado de suor, despertou. Urinou deitado embaixo do banco, ocultando-se do olhar dos transeuntes. Faminto, revirou as latas de lixo da praça. Como nada encontrasse que tivesse coragem de comer perambulou em busca de outras latas, de outras ruas, até deparar-se com a vitrine de uma confeitaria abarrotada de pães e bolos.

Cobiçou a comida como se tentasse satisfazer a fome com os olhos, mas seu estômago não se deixou enganar – ardeu. A necessidade o fez jogar uma pedra no vidro, agarrar dois pães e sair correndo. Mas o destino tinha para ele um plano inesperado: providenciou que uma patrulha policial asse por ali justamente naquele momento. Pego em flagrante, não resistiu à prisão.

A primeira pessoa que Francisco notou quando foi jogado na cela da delegacia foi o jovem Kaspar agachado num canto, espremido contra a parede, tremendo como se sentisse um frio intenso apesar da quentura do dia. A imediata ligação empática estabelecida entre eles materializou-se quando um prisioneiro abusado se aproximou do indefeso Kaspar imitando seu tremor e ameaçando-o com uma voz lasciva:

- Tremendo, boneca? Não adianta chorar. Daqui a pouco vai escurecer, vou satisfazer sua necessidade. Vai ver o que é bom pra sua hemorroida – e soltou uma risada tão falsa que silenciou a prisão.

Subitamente Francisco saltou entre Kaspar e o detento.

- Deixa o cara em paz! – avisou. – O primeiro que se meter com ele morre!

Amedrontados pela massa muscular do desafiante, ninguém retrucou.

Perdido em pensamentos Francisco nem viu as horas arem. Sua mente estava cheia de energia e funcionava de modo mais rápido do que de costume. Buscava uma explicação para os sentimentos e emoções que lhe invadiam a alma. Não conseguia atinar porque sentia a obrigação de proteger aquele desconhecido como um guarda-costas. Era como se o rapaz fizesse brotar nele uma generosidade esquecida, uma compaixão abandonada no sacrifício das ruas. Tampouco compreendia a espécie de paz que pairou no lugar, tirando-lhe a fome e até mesmo a vontade de fumar.

A noite encontrou a cela no mais profundo silêncio. Um carcereiro trazendo o jantar deteve-se intrigado com a calma atmosfera por detrás das grades.

- Hora da boia, seus putos!

Ao contrário do que seria natural para um bando de esfomeados, ninguém correu nem se atirou sobre a comida. Simplesmente despertaram do inusitado transe reinante no cárcere e permaneceram imóveis, sonolentos.

- Cerimônia, é? Fodam-se! – xingou o policial largando no chão a moringa de água e uma cesta de pães. Saiu chutando a grade, irritado por não ter entendido a cena.

Com generosidade e uma delicadeza jamais experimentada Francisco levantouse, pegou um pão e ou a cesta adiante. Educadamente, cada um dos prisioneiros retirou seu pão e entregou a cesta ao próximo. Em seguida Francisco bebeu da moringa e a fez circular. Quando terminaram o que mais parecia uma cerimônia de comunhão, a porta da cela foi aberta com violência.

- Você aí, o delegado tá chamando – e o policial apontou para Kaspar.

- “Minha chegada neste mundo foi uma queda muito dura” – respondeu ele mecanicamente.

- Larga de viadagem! Vamos logo! – ordenou o guarda.

Kaspar não se moveu. E quando o policial inadvertidamente avançava para apanhá-lo, recebeu o maior tranco de sua vida. Francisco agarrou o infeliz pelo pescoço e o jogou contra a parede. Estava aceso o estopim de uma revolta. Uma força descomunal transbordou e os detentos detonaram uma rebelião. Em fuga, derrubaram e destruíram tudo que encontraram pelos corredores: policiais, móveis, grades e portas. Alcançando a rua espalharam-se aos pares para todos os lados, desaparecendo no império da noite.

Kaspar permanecera inerte diante da confusão e Francisco teve de arrastá-lo. Correram de mãos dadas sobre o asfalto molhado, com Francisco a lembrar-se da infância, de um voo seguro quando seu pai o rodopiava no ar pelos bracinhos, e Kaspar a reviver o galope com Zeus. A sensação de unidade que sentira com o cavalo era a mesma que agora experimentava com Francisco.

Já com dores no baço de tanto correr, Francisco encontrou uma entrada de metrô. Sentaram-se por alguns segundos na escadaria para recuperar o fôlego. Kaspar olhava tudo com extremo interesse. Francisco tinha sempre que puxá-lo, desprendê-lo das imagens que o encantavam.

Penetraram no subterrâneo. Sem dinheiro, saltaram as catracas e chegaram à escada rolante sem ser notados pela vigilância. Até então Kaspar não se assustara com as entranhas da cidade, com a estação do metrô. Mas a escada rolante foi demais...

Primeiro experimentou uns pulinhos para ver se aquela coisa fria se soltava de seus pés. Depois subiu no corrimão, com a leveza de um gato, sem perceber que este também se movia. Despencou e rolou escada abaixo, de olhos fechados para o vertiginoso redemoinho de quinas metálicas que abalroava suas carnes.

Impotente diante da queda do companheiro que rolava mais rápido que os degraus, Francisco teve depois uma grata surpresa: quando chegou embaixo Kaspar já estava de pé, sem nenhum ferimento visível, apenas com um olhar de quem vira o inferno.

O vagão do trem que tomaram estava quase vazio. Os poucos viajantes, apesar de incomodados com aquela invasão de marginais, limitavam-se a observar, desejando escapar dali o mais rápido possível. A maioria desceu na estação seguinte. Durante a viagem Kaspar se divertiu a caminhar, correr e saltar sobre um chão que se movia, o do vagão, algo muito prazeroso.

Desceram numa estação escolhida ao acaso, mas não saíram direto para a rua. Entraram uma dezena de metros no túnel dos trens, espremidos numa arela estreita entre a parede e os trilhos.

- Vamos ficar aqui. A essa altura a polícia já deve estar nos procurando, de olho em todas as estações. Aqui é seguro. À meia-noite param os trens, poderemos ficar sossegados. Não se assuste com o trem. É só não se mexer que ele não pega você, entendeu?

- Trem... sossegado – repetiu Kaspar.

Quando a primeira composição se anunciou empurrando um vento frio, Kaspar pulou no colo do companheiro e se aninhou em seu largo peito. Foi então que Francisco se deteve naquele inocente olhar de bezerro e entendeu que tinha um grande problema nos braços.

Pensou em livrar-se dele, em abandoná-lo ali mesmo, porém não teve coragem. Percebeu que se Kaspar fosse deixado sozinho seria atropelado em poucos minutos. Mas agora tinham que sair dali porque os faróis do trem, como olhos de um traidor, os havia revelado ao condutor, que na certa já estaria avisando a segurança da presença deles no túnel.

Habilmente conseguiram burlar a vigilância e novamente de mãos dadas correram sem rumo pelas ruas. Pouco depois deram de cara com a lona azul de um circo; meteram-se por baixo dela. Não havia ninguém no picadeiro, era noite avançada, todo o pessoal estava dormindo nos caminhões e trailers.

Foi fácil achar um canto onde se encostar. Logo que sentiu o relativo sossego do lugar Kaspar espreguiçou e ajeitou-se no chão, pronto para dormir. Francisco pensou que ali seria um lugar seguro para abandonar o rapaz mas queria fazer a coisa de um modo limpo.

- Ainda não me disse o seu nome – puxou conversa sem ter ainda percebido que Kaspar só falava como os papagaios.

- Nome...

- Sou Francisco.

- Fan-fan... cisco.

- Tá brincando! Não sabe falar? Só me faltava essa... Mas você falou lá na cela...

- Kaspar.

- Kaspar? Que é isso, um nome? Ah, o seu nome. Então você se comunica, que alívio!

- Aliv...

- Nem precisa dizer. Já sei que foi burrice minha a ideia de nos escondermos no túnel do metrô. Mas você concordou... Pelo menos não disse nada. É o seguinte: não sei como entrei nessa onda com você. Desculpe dizer, mas acho que esse seu jeito de bobo me deu pena. E não estou gostando nada disso. Com você eu me sinto... esquisito. Bom, conseguimos fugir e agora é cada um por si. Vou te deixar aqui neste lugar. Gente de circo é boa, com certeza vão te acolher. Já vi que você não é muito certo da cabeça, que precisa de tranquilidade. Eu tenho que fugir... e é muito mais fácil fazer isso sozinho.

- Sóóó... – gemeu Kaspar sem medir o alcance de sua voz.

O som tristonho espalhou-se pelo ar. Sensíveis, os elefantes enjaulados responderam com gemidos dolorosos. Logo depois ouviram-se as vozes do pessoal do circo que se aproximava para ver o que acontecia com os animais agitados. Francisco percebeu que ali também não havia segurança. Partiram a correr, buscando abrigo noutro lugar.

14 Dia das Crianças

Kaspar ou a noite numa praça, aos pés de uma estátua equestre. Acordou primeiro mas não se moveu, encantado com o surgimento da claridade, sentindo o friozinho da manhã sobre a cabeça, deitado entre dois corpos quentes. De um lado estava seu salvador, Francisco, e do outro um jovem desconhecido. Era Carlos, amigo de Francisco, um garoto de 13 ou 14 anos que parecia muito mais novo devido à desnutrição.

Era domingo. Os sinos da igreja tocaram despertando Francisco.

- Bom dia, Kaspar!

- Dia.

- Acorda, Carlos!

- Que foi Francisco, tá louco? Nem é de manhã – resmungou o garoto virando para o outro lado, desejoso de voltar a algum sonho bom.

- Carlos, acorda! Vai ter que segurar uma barra pra mim.

- Barra? – a palavra acordou Carlos de vez.

- Você pode cuidar do Kaspar por umas horas?

- Sei lá. Tenho medo de me meter numa fria. Esse cara é tonto demais!

- De-mais – repetiu Kaspar gerando os primeiros risos da manhã.

- Não esquenta, Carlos! Basta ficar de olho nele. Toma um troco. Arruma alguma coisa pra vocês comerem.

- Onde você arrumou essa grana?

- Deixei um velho me chupar enquanto vocês dormiam. Me pagou cinco paus.

- Não vejo a hora do meu pau crescer pra pegar essa moleza – desejou o moleque.

- Não deixa o Kaspar sair daqui. Preciso arranjar um carro. Volto de tarde – informou Francisco afastando-se.

A praça malcuidada era o universo noturno dos desabrigados. Ali se juntavam a dormir ou matar o tempo. Kaspar fixou-se na estátua do cavalo e só desligou-se

dela quando o trânsito cresceu, atraindo sua atenção. Então se levantou e entrou na avenida inocentemente. Brecadas, gritos, palavrões. Quando tudo parou, Carlos o arrancou do centro do pandemônio e o trouxe de volta aos pés da estátua.

- Tá louco? O Francisco mandou esperar aqui. Se não obedecer vou te amarrar... Tá com fome?

- Fome.

Por precaução Carlos resolveu não mais se desgrudar de Kaspar. Chamou Damiano, outro jovem que dormia na praça, para que fosse lhes comprar alimento. Na volta fizeram um banquete porque o dinheiro alcançara até para algumas fatias de mortadela. Os adolescentes degustaram com um sorriso nos olhos o raro momento de prazer que o ato de comer produz, sobretudo em quem não está acostumado.

- Tem cola? – Damiano quis saber depois de devorar o sanduíche.

- Um finzinho – respondeu Carlos já lhe ando um saquinho com o entorpecente.

Os adolescentes cheiraram a cola e imediatamente relaxaram. Acostumados a partilhar, aram o saco plástico ainda com um resto de cola para Kaspar, que cheirou por imitação.

Damiano deitou no gramado, abriu os braços para o Sol e fechou os olhos, curtindo as manchas luminosas que se formavam em suas pálpebras. Em pé, Carlos estirou os bracinhos e ficou girando devagar sobre si mesmo. O iniciante Kaspar nada sentiu, apenas espirrou, tossiu, e ainda continuou hipnotizado pelo cavalo de bronze.

- Gosta do cavalinho, Kaspar? É rapidinho como eu. Tem que me ver roubando no calçadão. Sou um relâmpago! – gabou-se Carlos galopando seu imaginário corcel no gramado da praça.

- Vamos levar ele pra dar um rolê na cidade? – sugeriu Damiano.

Carlos retrucou:

- O Francisco falou pra gente não sair daqui.

- Quem é esse Francisco, parça seu?

- Já livrou minha cara uma pá de vez. É lá da minha terra. Conheço ele desde que eu era pequeno.

- Ele fala esquisito. Até parece que foi na escola – observou Damiano.

- Estudou no interior. A família dele era gente careta. Quando veio pra cidade foi que ele dançou.

- E qual é a dele?

- O Francisco não é pé-rapado como a gente, não entra em miudeza. Ele já se meteu em barra pesada.

- Tipo o quê?

- Qual é? Interrogatório logo de manhã?

- Será que ele demora muito? Estou louco pra dar um giro – reclamou Damiano com dificuldade em conter sua agitação, sua energia interior, o efeito da cola.

Então Carlos decidiu-se:

- Vamos experimentar. Se esse Kaspar começar a dar trabalho a gente volta.

O reflexo do dia nos automóveis e nas vitrines das lojas obrigava Kaspar a caminhar com os olhos quase fechados. Aqui e ali ele interrompia sua lenta caminhada irado com alguma coisa, uma lata de lixo, uma fachada de edifício, uma sirene, até que um dos garotos o puxava pela mão.

- Hoje deve ser algum dia importante. Olha quanta gente indo pra missa – comentou Carlos.

- Tem até televisão, mano! Vamos nessa – propôs Damiano.

Era mesmo uma data importante. O próprio cardeal dirigiria a missa em comemoração ao Dia das Crianças.

Um pouco antes da cerimônia, aos suspiros, o sacristão inspecionava os trajes do prelado.

- Está tudo perfeito, eminência!

- Não tem nada amassado?

- Tudo lisinho! O senhor está muito bonito hoje, quero dizer, mais bonito.

- Você é muito parcial. Isso não é bom. Afeta o seu julgamento – replicou o cardeal fingindo menosprezar a vaidade que brilhava em seu olhar.

Quase eufórico pela chance de aparecer na televisão o sacristão comentou:

- Hoje teremos uma grande missa!

- Toda missa é grande.

- Mas nem sempre estão presentes o governador, juízes. senadores, deputados... e também a imprensa!

- Os quatro poderes.

- Como eu disse: uma missa inesquecível!

- Que tudo seja pelo bem das crianças.

Nos bancos, homens engravatados e mulheres empoadas expunham suas mais convincentes caras de fé. No altar, ajudando o pontífice, ou espalhados pela nave, muitos outros padres ostentavam seus vários níveis de hierarquia com fantasias engomadas. Os primeiros assentos tinham sido reservados para uma dúzia de crianças de rua escolhidas a dedo. Banhadas, vestidas, muito bem instruídas quanto ao comportamento que deveriam manter durante a missa, representavam oficialmente todas as crianças homenageadas naquela data.

Seguindo Carlos e Damiano, Kaspar entrou na igreja e caminhou direto até a escadaria do altar. A mistura de desodorantes com perfumes caros e baratos produzia uma atmosfera fétida para suas sensíveis narinas, fazendo-o espirrar várias vezes e chamando a atenção do público. O cheiro, a figura de um homem de madeira sangrando numa cruz rodeado de estátuas de santos afeminados o amedrontaram e ele se encolheu junto aos degraus.

Então o coro começou a cantar. Como um banho, uma onda de emoções desceu sobre Kaspar. O canto o transportou ao porão onde todas as manhãs ouvia o cântico dos monges. Lágrimas brotaram.

Aos poucos apareceram na porta da catedral outras crianças de rua em pequenos grupos. Como ninguém lhes impedisse, foram entrando e também se alojando perto do altar.

Diante das câmeras de televisão, com a missa em curso, um saco de cola ou de mão em mão entre elas, num rito que ninguém ousou interromper. Que outra coisa poderia lhes dar a sensação de integração com o espaço, com o ambiente hostil em que viviam? A cola, assim como outras drogas, afastava temporariamente o desconforto, a fome e a desesperança, além de matá-los mais cedo e lhes encurtar o sofrimento.

Drogados, resgatavam uma débil reminiscência dos tempos de ventre materno, quando o mundo era redondo e envolvente. Inebriados pelo efeito da cola, espalhados pelos degraus, brincavam com as mãos no ar como se buscassem alcançar os dourados relevos do teto de Deus.

O cardeal, cada vez mais vermelho, fingia nada ver. A imóvel plateia o imitava.

- “Vinde a mim as criancinhas, porque delas é o reino dos céus…” – recitava ele quando Kaspar levantou os braços e gritou:

- “Quero ser um cavalo que voa para um combate sangrento!”

Como se esperasse aquela pausa de tensão para realizar sua cena, um casal de crianças de pouco mais de 10 anos que estava no alto, no ponto mais próximo do altar, beijou-se cinematograficamente rolando escadaria abaixo.

O cardeal não conteve um o de tosse, mas esperando desviar as câmeras daquele quadro retomou a ladainha. Quando tudo terminou os padres tiveram que acudi-lo na sacristia com um princípio de infarto. Sua mente delirante o condenava por um sentimento para ele inaceitável. Em algum momento da ladainha, entre uma e outra frase, ele, que sempre vivera sob as asas douradas da igreja, sentira inveja daquelas pobres crianças que se tocavam sem pudor. Décadas de masturbação o haviam afastado do contato direto com os “filhos de Deus”.

Quando o clérigo se retirou cambaleante, o sacristão, em parte por solidariedade e em parte por qualidades neuróticas próprias, foi tomado por uma fúria mística. Tirou da cintura o cordão que prendia sua túnica e se lançou sobre as crianças que ainda permaneciam na igreja, chicoteando o ar, orgulhoso de enfim encarnar seu personagem preferido, Jesus, expulsando os infiéis do templo de Javé.

A meninada deixou a catedral bem devagar. Maliciosos e indolentes, pareciam não sentir os gritos e chibatadas, aumentando o desespero do pobre sacristão. No auge de seu ataque histérico, ao chegar em Kaspar, sentiu as pernas bambearem. Caiu ajoelhado e chorou. Infelizmente as emissoras já haviam cessado as transmissões e sua cena não foi ao ar.

Carlos e Damiano trataram de tirar Kaspar da igreja depois de desgrudar o sacristão de seus pés.

15 Super-herói

Após o caso do “lobo que uivava para a Lua”, as crianças da Al Terna tornaramse mais imaginativas e avam grande parte do tempo inventando histórias fantásticas. Os desenhos animados e os filmes de aventura ganharam um novo interesse, pareciam mais vivos, mais reais, como se elas agora também pertencessem àquele mundo mágico e misterioso. Assim como certas obras de arte, acontecimentos inexplicáveis podem libertar a mente e permitir o contato com outras realidades.

Durante um intervalo comercial da sessão domingueira de televisão, o menino Eurico, que estava de posse do controle remoto, eava pelos canais quando sintonizou a transmissão da missa na catedral no exato momento em que as câmeras mostravam Kaspar dizendo a frase: “Quero ser um cavalo que voa para um combate sangrento!”

- É ele, o Kaspar, na televisão!

A criançada grudou os olhos na tela.

- Não disse que ele era um super-herói? – bradou uma menina sapateando e agitando as mãozinhas, lívida de emoção.

Logo depois invadiram o consultório de Alaor, todos gritando ao mesmo tempo.

Ele ouviu a notícia com tanta frieza que as crianças ficaram chocadas.

- Têm certeza de que não estão inventando? Estou cansado das histórias de vocês.

- Você sempre pensa que a gente é idiota. Vi com esses olhos – exclamou Eurico enrubescendo de raiva.

- Tá bom! Agora saiam que eu estou muito ocupado.

- Não vai ligar pra tevê?

- Já disse, vão embora!

Insatisfeitos e dispostos a vingar-se do descaso de Alaor, as crianças realizaram uma pequena eata pelos caminhos da Al Terna gritando:

- Abaixo a velharia! Viva Kaspar, nosso super-herói!

Logo depois as pessoas que trabalhavam na cozinha assistiram chocadas a uma selvagem incursão. As crianças se armaram de facas, jogaram copos e pratos no chão e cruzaram aos berros os portões sempre abertos da comunidade. Os pequeninos, que não puderam acompanhar o ritmo alucinante dos maiores, desistiram no meio do caminho e voltaram vencidos.

O caráter experimental da Al Terna exigia um cuidado redobrado com a educação das crianças. Acreditando ser inverossímil a história da missa, Alaor reuniu imediatamente os professores para apresentar suas preocupações.

- Temo que as crianças estejam perdendo contato com a realidade. Andam inventando coisas impossíveis, e...

Mal iniciada, a reunião foi interrompida pela notícia da inédita fuga de duas meninas e três meninos, os mesmos que estiveram visitando Kaspar na noite do lobisomem.

No centro da cidade a tarde de domingo estava quente, os gramados repletos de corpos ao sol: namorados misturados a camelôs, velhotes aposentados, marginais. Francisco chegou suado. Encontrou os meninos no mesmo lugar onde os havia deixado. Kaspar continuava com os olhos grudados na estátua, esperando flagrar algum pequeno movimento do cavalo.

- E aí, Carlos? Pelo jeito Kaspar não deu muito trabalho.

- Nenhum – responderam os dois meninos em uníssono, olhando para baixo, escondendo os pensamentos.

- Valeu, minha gente! Mas... o Kaspar está todo suado, parece meio cansado. O que vocês fizeram?

- Brincamos um pouco com ele e... Rolou o carro? – desviou Carlos.

- Foi fácil.

- Que tipo é?

- Uma caminhonete quase nova. Deixei numa quebrada longe daqui.

- O Damiano me ajudou a olhar o Kaspar.

- Damiano? Bonito nome. Quantos anos você tem?

- Falam que uns dez, como vou saber?

- É muito importante saber a idade, principalmente quando a gente é menor. Pode te livrar da cadeia.

- Não adianta nada, nem tenho documento mesmo!

Enciumado pela atenção que Francisco dedicava ao outro menino, Carlos mudou o rumo da conversa:

- Ô Francisco, não estou entendendo uma coisa. Você estava preso, não estava?

- Sim.

- Fugiu e veio se esconder bem aqui na praça?

- Achei que era menos previsível.

- E o rapa? Quase todo dia eles chegam por aqui.

- Será? Então vamos embora logo.

- Esse cara, por que ele está com você? – cochichou Damiano no ouvido de Francisco para que Kaspar não ouvisse.

- Estava preso comigo. Também deve estar sendo procurado. Temos de protegêlo.

- Ele não leva jeito de pobre, mesmo com pouca roupa – observou o garoto medindo Kaspar, que usava apenas uma calça suja e rasgada mas tinha uma pele fina e branca como ele nunca tinha visto.

- Deixa isso pra lá. Ele agora está comigo, então é pobre. Nós vamos dormir na

caminhonete que é mais confortável.

- Então até! Vamos nessa, Damiano! – e Carlos saiu puxando o amigo pelo braço.

Antes que os meninos desaparecessem na multidão vários pelotões da polícia cercaram o lugar tocando suas sirenes. Sem pestanejar Francisco agarrou a mão do companheiro e saíram correndo.

Por mais rápidos e experientes que fossem, muitos menores não conseguiram escapar ao cerco, entre eles Carlos e Damiano. Na delegacia os dois negaram todas as acusações, até mesmo que estivessem na tal missa, apesar de lhes terem mostrado suas imagens nos vídeos feitos na igreja. Negaram também ter estado com Kaspar, fugitivo procurado pela polícia.

- Pode ser truque de cinema... – argumentou Carlos com ares de entendido no assunto.

- Não era nós! – afirmava Damiano, cujo lema era “negar até a morte”.

Pouco depois estavam de volta às ruas, orgulhosos por não ter aberto o bico, ansiosos por encontrar Francisco e preveni-lo de que a polícia estava procurando por Kaspar e provavelmente por ele também.

- Não disse que o Francisco se metia em coisa pesada?

- Um amigo que nem esse que eu sempre quis ter – bateu no peito Damiano inebriado de aventura.

- Onde será que os dois se meteram?

No metrô outra vez, Francisco e Kaspar tinham se escondido para escapar da polícia. aram por várias estações, saltaram próximo de onde estava a caminhonete roubada. Pularam para dentro do veículo, Francisco travou as portas, respiraram aliviados.

- Puxa! Dessa vez quase nos pegaram.

- Qua-se.

- Vamos ficar aqui até a coisa esfriar um pouco e depois a gente se manda. O tanque está cheio e podemos rodar muito. Tem uma coisa que eu não disse pra você. Essa caminhonete é roubada. Já devem ter dado parte e... Bom, já sabe.

- Sabe.

Por um breve instante Francisco deteve seu olhar no do rapaz e só então desconfiou de que talvez ele não entendesse nada do que ouvia e nem mesmo do que via.

- Nho-nete.

- Ca-mi-nho-ne-te! Rou-ba-da! – corrigiu Francisco rindo do absurdo da situação, da loucura da vida.

Por imitação, mas também pelo contágio do riso, Kaspar riu exageradamente e logo ambos foram tomados por uma onda irresistível de gargalhadas semelhante à que sujeitara os terapeutas da Al Terna. Só cessou quando perceberam curiosos juntando-se ao redor do veículo.

- Melhor a gente sair daqui – falou Francisco como a um cão, que mesmo não entendendo as palavras capta uma mensagem simples.

Quilômetros mais tarde, Francisco trancou o companheiro na caminhonete e entrou num pequeno mercado. Pegou biscoitos, chocolates e cervejas. Depois que a moça do caixa empacotou os produtos, enfiou a mão no bolso e usou o dedo para apontar um falso revólver. A funcionária tremia de pavor enquanto ele apanhava todo o dinheiro ao seu alcance. Pouco depois a caminhonete cantou pneus.

Como se um cortejo abre-alas rodasse adiante deles abrindo agem, protegendo-os, aram despercebidos por duas barreiras policiais montadas na rodovia. Ao anoitecer chegaram à beira-mar, bem distante da cidade. Estacionavam embaixo de uma árvore numa estradinha de terra que levava à praia quando começou a trovejar.

- Aqui não há perigo. A praia está deserta. A essa hora já foi todo mundo dormir. Podemos descansar tranquilos. Temos comida, cerveja e aqui dentro não chove. Pode cair água à vontade! – gritou pela janela.

Bêbado por meia lata de cerveja, Kaspar também meteu a cabeça para fora e repetiu aos céus:

- Cai água... Vontade!

Como em resposta, o aguaceiro desabou. Kaspar dormiu profundamente. Durante o sonho percebeu algo desconhecido crescendo ao fundo: o cantar do mar por detrás do lamento da chuva.

16 Thales Duran

Muitas horas antes, na alvorada daquele mesmo domingo, na área central da cidade, um despertador ressoou irritante, trazendo o novo dia para dentro do pequeno apartamento do delegado Thales Duran.

- Acorda, gata! Quem disse que era pra você dormir aqui? – reclamou Thales chacoalhando a mulher que dormia ao seu lado.

Lânguida, Gladys rolou na cama e cobriu a cabeça com o travesseiro.

- Nada disso! – e puxando o lençol ele descobriu o belíssimo corpo mulato.

- Porra, Thales! Você é mesmo um chato – queixou-se Gladys virando de lado, com as mãos entre as pernas.

- Por que dormiu aqui? Eu não disse que queria ar a noite sozinho?

- Você dormiu, fiquei triste... Sabia que eu cansei de me esfregar em você e nada? Totalmente broxa. Que foi, virou a mão?

- Fugiram doze vagabundos durante o meu plantão e não recapturamos nenhum. Tive um dia infernal. Estava cansado – desculpou-se.

- Começa assim. E pensar que você nem chegou aos 40...

- Não enche, tá? Além de tudo tive pesadelos a noite inteira. Sonhei que um cachorro branco, enorme, quase mastigou as minhas mãos. Culpa sua! Se eu dormisse sozinho isso não aconteceria.

- Como assim?

- Aquele maldito cachorro que me perseguiu a noite toda deve ter saído da sua cabeça pervertida, entrado nos meus sonhos. Por isso é que eu gosto de dormir sozinho, pra não ficar pegando pesadelo dos outros.

- Ganhou! – e ela saiu da cama desfilando seu corpo de ébano em direção ao banheiro.

Antecipando-se, ele gritou:

- Nada disso! Estou com uma pressa danada. Se você se meter nesse banheiro vou ter que esperar horas!

- Qual é, delegado? Hoje é domingo!

- Polícia é como médico, não tem domingo, não sabia?

- Se a comparação com os médicos satisfaz seu ego, se faz você se sentir um doutor...

- Pô, Gladys! Você não deixa ar uma... Na verdade eu sou doutor, fiz doutorado em criminologia na universidade, esqueceu?

- Doutorado... Vamos fazer um trato, benzinho. Você entra no chuveiro e eu entro atrás. Fechado?

- Não vem com safadeza que eu estou com pressa.

Thales Duran mandara instalar um espelho dentro do box para ver o próprio corpo embaixo do chuveiro. Excitava-se muito quando ali se via acompanhado de Gladys.

Entrou sozinho e abriu a torneira, mas assim que a água quente escorreu sobre sua cabeça seu propósito afrouxou e ele desejou que ela entrasse também. Chamou-a e sem dar-lhe tempo para qualquer reação espremeu-a contra o espelho. Um corpo marrom, molhado e brilhante, definitivo contraste com a claridade de sua pele branca. Penetrou-a com toda a força de seus quadris até cravar-se nela como se ferisse um inimigo em batalha.

- Não falei pra você que de manhã também é bom? – comentou ela logo depois,

saindo molhada, quase satisfeita.

- Trepar de manhã é coisa pra velho frouxo – sentenciou ele.

- Como os homens são burros! Para que as mulheres não pensem que estão broxando, perdem a trepada da manhã. O machismo é mesmo uma tristeza! Quem vocês pensam que estão enganando?

- Você anda dando para algum intelectual ultimamente?

- Branquelo desbotado! Eu já sei que mulher não tem intelecto, principalmente uma negra como eu...

Já de bom humor Thales saiu do chuveiro correndo, lançando um grito de Tarzan, ostentando seu troféu ainda ereto, avançando sobre ela. Correram por algum tempo entre os móveis até caírem enrolados na cama. E como Gladys gostava de gritar durante o sexo...

- Isso é hora de foder? Seus filhos-da-puta! – gritou uma potente voz masculina, anônima entre as cortinas da vizinhança.

17 A busca

Na Al Terna Alaor atendeu o telefone:

- Meu nome é Aldo. Ainda não tive o prazer de conhecer o senhor pessoalmente. Sou secretário do doutor Cassiano Dantas, de quem o senhor comprou um potro árabe, o Zeus, está lembrado?

- Sim, lembro, sei quem é Cassiano Dantas.

- Queremos saber se já encontraram o potro. Ontem de manhã ele estava solto na estrada.

- Felizmente ele já voltou. Tinha fugido, não sabemos como – explicou Alaor.

- Tenho um recado para o senhor. Meu patrão deseja muito recomprar o potro.

- Sinto muito, o Zeus não está à venda.

- O doutor Dantas sente falta do animal que viu nascer. Ele se apegou ao bicho. Era o potro que gostava de escovar, de banhar, era o único que ele mesmo fazia

questão de exercitar todas as manhãs. Ontem, quando viu o cavalo, ficou muito emocionado. Pense com calma. Ele pode pagar bem.

Alaor, porém, estava mais preocupado com Kaspar.

- No momento não tenho nenhum interesse em vendê-lo. Mas me diga, quando encontraram o potro ele estava com alguém? Havia alguém por perto?

- Sim. Um rapaz muito esquisito. Parecia retardado.

- Sabe o que aconteceu a ele?

- Nós o levamos a um posto da polícia rodoviária. Ele é da turma de vocês?

- É um membro de nossa comunidade que anda desaparecido. Onde foi mesmo que o deixaram?

No posto policial indicado por Aldo, Alaor e Doro foram informados de que Kaspar estava na delegacia de Thales Duran. Lá chegando...

- Estamos procurando um rapaz. Fomos informados que ele foi trazido para cá.

- Qual o nome do meliante? – inquiriu o delegado Thales sentindo a boca ainda

inchada de tanto sugar Gladys.

- Ele não é meliante. Deve haver algum engano... – tentava Doro uma explicação quando foi interrompido.

- Já sei. O tal rapaz é amigo de vocês, uma pessoa muito boa que foi presa por engano etc. Acertei?

- Acertou – confirmou Doro inocentemente.

- Tá brincando, cara? – engrossou o delegado.

- Não é bem nosso amigo. É um paciente. Ele fugiu da nossa clínica. Não anda muito bom da cabeça – interveio Alaor mais ponderado, buscando acalmar a situação.

- Ah! É um carinha que se faz de sonso e diz frases absurdas?

- Pode ser. Ele se chama Kaspar.

- O branquelo cabeludo?

- Esse mesmo.

- Esteve preso; mas fugiu com outros prisioneiros.

- Fugiu? Mas por que ele estava preso?

- Porque fugiu do policial rodoviário.

- Fugir não é crime – argumentou Doro.

- Mas desacato à autoridade é. O senhor acha que fugir durante um interrogatório não é desacato?

- O senhor o interrogou?

- Foi justamente quando eu ia fazer isso que... desapareceram no ar... – e o olhar do delegado tornou-se absorto, parecendo presenciar a cena que descrevia.

- Como assim, no ar?

- No ar, como um furacão. Eles destruíram metade da delegacia, não está vendo tudo quebrado por aqui? Olha aquelas cadeiras. Quatro policiais foram parar no pronto-socorro.

- E ainda não encontraram os fugitivos, não prenderam ninguém, tem alguma ideia de onde possam estar?

- Não achamos nenhum ainda. Mas o seu amiguinho foi visto na televisão hoje, numa missa.

- Como? Então as crianças estavam falando a verdade... Disseram que o tinham visto na televisão... – lembrou-se Alaor, arrependido de mais uma vez ter ignorado as crianças.

- Vocês sabem de alguma coisa? – indagou Thales. – Ele parecia enturmado com uns moleques de rua. Foi uma fuga organizada, provavelmente por ele mesmo. Seu amiguinho está numa enrascada grossa. Se não mentirem será melhor.

- Não é possível, meu senhor. Ele não conhecia ninguém, não sabia nem falar – tentou explicar Alaor.

- Não sabia falar? Pois aqui ele falava sim. Dizia coisas muito estranhas, frases sem sentido aparente, mas achamos que era algum tipo de senha que estava ando aos outros. Além disso, como o senhor explica o fato de ele ter saído daqui puxado pela mão por outro prisioneiro?

- Não é possível. Tenho certeza de que ele não conhecia ninguém. Que outro prisioneiro é esse?

- Não sabemos. Todos os que estavam naquela cela tinham chegado ontem. A

fuga aconteceu quando íamos começar a triagem. Eram doze. Não chegamos a fichar nenhum.

- Meu senhor, sou psiquiatra da Al Terna e o rapaz era meu paciente. Desapareceu e nos informaram que estava aqui. Não sabemos nada do que possa ter acontecido.

- Da Al Terna, aquela comunidade de malucos?

- É uma clínica terapêutica.

- Documentos! – intimou Thales.

A essa altura os dois começaram a temer por si mesmos mais do que por Kaspar e apressaram-se em atender o delegado.

Sempre que experimentava uma situação aborrecida a mente de Thales Duran pensava em Gladys, no duelo que seus corpos travavam até a exaustão. O que mais desejava agora era voltar ao apartamento, arrastar aquele corpo moreno ao chuveiro e nele descontar todas as humilhações do dia. Entretanto estava ali, numa delegacia cheia de homens suados. Sua paciência rapidamente chegou ao limite.

- Estão com muita sorte! Se eu não estivesse com o saco a ponto de estourar ia prender vocês por cumplicidade com esse... Kaspar. Agora fora daqui! E não saiam da cidade! Estou de olho em vocês.

Os dois saíram voando da delegacia, entraram no carro e zarparam.

- Por um momento pensei que ele ia grampear a gente – disse Doro ao volante.

- Também tive medo – completou Alaor.

- Eu não disse que tive medo.

- Que homem! Pois eu tive medo mesmo! Você acreditou nesse delegado?

- Acreditei. Sabe por quê? Pelo fato de alguém ter tirado Kaspar da prisão. Alguém se compadeceu dele, como eu, cuidou dele. Isso tem cheiro de Kaspar.

- E agora, voltamos à comunidade?

- Já está anoitecendo. Podemos ar na minha casa? Preciso pegar umas roupas limpas – demandou Doro.

18 Baixaria

Sob o clarão do luar, quando Amélia entrou na casa de Doro o gato Goethe desceu do telhado em disparada. Ela vinha alimentá-lo todas as noites desde que o amante fora para a comunidade.

- Olha só o que eu trouxe pra você, meu querido: fígado de frango!

Abriu a lata e serviu o patê num pratinho sobre a mesa. Depois encheu uma pequena tigela com leite.

O gato se revezava entre o fígado e o leite, o rabo ondulante, ronronando agradecido. Amélia irou e afagou o animalzinho que naquele momento era por tabela o ser amado. Depois andou pela casa buscando Doro nos móveis, nas estatuetas, nos quadros...

No quarto cheirou suas roupas, agarrou seu roupão de banho com leve odor de suor e deitou-se com ele na cama. Despiu-se para sentir o contato do tecido no corpo todo. Depois esfregou-se nos lençóis, no travesseiro, na mão... Já estava inteiramente suada quando ouviu o ruído de um carro entrando na garagem. Inquietou-se, memórias adolescentes afloraram, lembrou-se de quando sua mãe entrava no quarto sem bater... A mesma vergonha.

Eram Alaor e Doro que chegavam inesperadamente.

- Vamos entrando, Alaor. Quer beber alguma coisa? Fica à vontade.

- Aceito um refrigerante se tiver.

Na cama, quase pega em flagrante intimidade, Amélia colocou a mente para trabalhar e rapidamente encontrou uma solução: fingir que estava dormindo. Diria que viera alimentar o gato, que estava muito cansada e que pegara no sono sem querer. No entanto, deitada na cama, podia ouvir com clareza o que os homens conversavam na sala.

Alaor se queixava:

- O pior é que nem podemos dar parte à polícia sobre o desaparecimento das crianças. A comunidade não está em condições de receber publicidade negativa, basta essa história do Kaspar. Sem falar que as crianças podem estar escondidas lá por perto mesmo.

- Também acho. Não entendo por que você não acreditou nelas quando foram avisar que o Kaspar estava na tevê.

- Eu também não entendo. Ultimamente tenho tido dificuldade em tratar com crianças. Elas me dão nos nervos. Por momentos perco o controle sobre mim mesmo – confessou Alaor num tom de autorrecriminação.

- Ufa! Que domingo!

- Não há mais nada que possamos fazer essa noite. O melhor é descansar.

- A polícia não encontrou nem pista do Kaspar.

- Amanhã quem sabe tudo volta a brilhar e as crianças aparecem trazendo o Kaspar com elas – desejou Alaor dando vazão a seu lado místico e romântico.

- Que os orixás te ouçam!

- Tem certeza de que quer voltar para a comunidade ainda hoje, Doro? O Kaspar não está mesmo lá e não há...

- Claro que quero! Só tenho que pegar umas roupas. Além do Kaspar deixei lá outro problema.

- Coisa pessoal?

- Alaor, meu amigo, me diz uma coisa com franqueza: você está interessado na Lia?

- O que você quer dizer?

- Se está a fim dela, ora.

- Ela e eu somos bons amigos. Já senti muito tesão mas consegui não me envolver.

- Então posso te contar: acho que me apaixonei por ela.

- Tá perdido, meu amigo. Melhor desistir enquanto está no começo.

- Não posso. Ela é linda demais, gostosa demais...

- Experiente demais, esperta demais...

- Me diz com toda a sinceridade: você já viu uma bunda mais...?

- Em matéria de bunda ela está muito bem servida.

- E os peitos, dois pêssegos, duas cerejas... O pescoço dela me dá vontade de ser um vampiro.

- É, ela pegou você, pobre pintor.

- Até os pentelhos são lindos! Pelo amor de Deus, é demais! Aquela mulher é maravilhosa!

- Mas quando foi que você viu tudo isso?

- Nós transamos... Não vou entrar em detalhes, mas juro que em toda a minha vida nunca me meti numa boceta tão quente. De fritar o cacete.

Sem poder ar ouvir mais a baixaria masculina, Amélia vestiu-se rapidamente, entrou na sala, ou rápido pelos dois, e antes de bater violentamente a porta gritou:

- Enfia o seu gato no cu!

19 Esconderijo

Quando fugiram da Al Terna, as cinco crianças correram algumas centenas de metros pela estrada antes de se embrenhar na mata. Meses antes, com galhos e pedaços de corda, haviam construído uma paliçada para fechar a entrada de uma pequena caverna descoberta entre as árvores. Como dispunham de uma casa só para si não tinham necessidade de vir àquele esconderijo com frequência, mas agora era lá que estavam escondidas.

A noite começou difícil. A barriga vazia e o heroísmo em queda, assim como a temperatura, obrigavam-nas a se juntar. Enquanto os outros tentavam dormir, Eurico velava ruminando as lembranças da queda que sofrera no pátio de Kaspar. ava e reava a cena na memória muitas vezes, querendo compreender o raro fenômeno que lhe ocorrera quando ao cair batera a cabeça no chão.

Lembrava que havia subido no muro e se deparado com Kaspar uivando. Depois o desequilíbrio e o tombo. E também que permanecera sobre o muro, de onde podia ver seu próprio corpo lá embaixo no chão. Viu Kaspar tentando estancar o sangue que escorria do corte. Estava em cima do muro e ao mesmo tempo embaixo, estirado no solo. Como?

Outro detalhe intrigante foi o fato de Kaspar, enquanto estancava o sangue, ter olhado diretamente para ele no alto do muro, certamente o tinha visto. Embora a experiência tenha acontecido em poucos segundos, para Eurico o tempo foi longo o suficiente para gravar os muitos detalhes que agora relembrava.

Estranhou que Kaspar o tivesse visto simultaneamente embaixo e no alto e não tivesse esboçado nenhuma surpresa, já que para ele tudo era surpreendente demais. Lembrou-se ainda de como tudo terminara bruscamente quando Doro apareceu e gritou. Foi sugado de cima do muro para dentro do corpo tão violentamente que perdeu a consciência, só recuperada minutos depois na enfermaria da Al Terna.

Não contara isso a ninguém porque temia ser tomado por louco. Na comunidade permitia-se todo tipo de sandices, mas dentro do que chamavam de loucura normal – doentes mentais não eram aceitos.

A proximidade dos corpos, a intimidade do lugar e a insônia evocaram outro segredo, outra descoberta de Eurico:

- Vou ensinar uma coisa, mas só pros homens.

- Qual é? Não tem essa, não! A gente fugiu junto e vamos fazer tudo junto – estrilou uma das meninas.

- Não estou falando de direitos iguais. É que é uma coisa que não dá pra vocês fazerem – argumentou ele levantando o nariz acima das fêmeas.

- Duvido! Fazemos qualquer coisa que vocês fizerem. Quer apostar? – rebateu outra.

Para encurtar a polêmica Eurico abriu as calças, tirou para fora seu pequeno e

imberbe pênis e começou a se masturbar tranquilamente sentado, olhando as expressões boquiabertas dos demais. Sem piedade, ainda desafiou as meninas:

- Quero ver vocês fazerem isso!

Não é preciso dizer que as meninas também acharam meios de se masturbar; e todos dormiram inchados e saciados apesar do frio. Sonharam que já não mais eram crianças.

Somente Eurico, um líder responsável, lutou contra o sono e permaneceu na guarda do esconderijo. Quando o dia clareou o suficiente para que se visse a estrada ele despertou a criançada. Sem pensar em nada além do desjejum com pão, geleia de morango e chocolate quente, esqueceram a revolta do dia anterior e retornaram correndo aos portões da Al Terna, recebidos de braços abertos.

20 Teatro

A segunda-feira prometia revelações. Como fazia regularmente, o carteiro deixou na porta da comunidade um maço de correspondências, revistas e jornais. Eurico era o encarregado de recolher e distribuir o material. Mesmo cansado das aventuras da noite anterior, resolveu cumprir sua tarefa, entretendo-se com as capas de revistas e jornais enquanto caminhava de porta em porta.

Foi então que se deparou com uma manchete de primeira página: “Intérprete de Kaspar Ha desaparecido”. Segundos depois o jornal chegava às mãos de Doro, que sem pestanejar partiu para o teatro de onde o ator havia sumido.

Do lado de fora da casa de espetáculos uma faixa anunciava uma peça sobre a vida de Kaspar Ha – “A Besta de Nuremberg”. Doro olhou o grande edifício de arquitetura colonial, sentiu saudades. Anos antes, como aspirante a ator, participara de uma montagem do mesmo diretor que agora assinava o espetáculo anunciado, Ricardo Navona.

A experiência que tivera com Navona fora tão marcante que dividira sua vida em antes e depois dela. Ele era então um jovem perdido numa encruzilhada de opções e, como a maioria da juventude civilizada, sonhava ser um astro de cinema ando antes pelo teatro ou pelas arelas da moda.

Ricardo Navona realizava em seus espetáculos um trabalho de luzes muito esmerado, o que dava às cenas uma qualidade pictórica. Foi o que estimulou a sensibilidade de Doro para o mundo das formas e cores. Uma noite, durante o

ensaio, o diretor o chamou de lado e disse:

- Soube que você leva jeito para as artes plásticas. Preciso de quatro máscaras de mais ou menos dois metros de altura, que possam ser carregadas por atores sem que eles sejam vistos. Pode fazer?

- Posso.

- Tem uma semana.

Assim, Doro, que estava ali para ser ator, teve que se envolver numa pesquisa sobre técnicas de execução de máscaras e sobre pintura propriamente dita. Em uma semana entregou o trabalho pronto e dali em diante seu caminho ganhou o foco das belas-artes – ao invés de ator tornou-se pintor. Por isso sentia agora uma reconfortante sensação de gratidão pelo antigo mestre e amigo que não encontrava havia muitos anos.

Rodeado por uma nuvem de fumaça de cigarro e uma garrafa térmica com café forte, Navona presidia um ensaio com o grupo de atores no palco. Lars Borges, assistente de direção, veio avisá-lo de que havia um homem chamado Doro procurando por ele.

- Doro? É um antigo amigo meu, gente boa, mas não posso interromper o ensaio agora. Veja o que ele quer, trate-o bem.

No saguão do teatro Lars recepcionou Doro:

- Meu nome é Lars, sou assistente do Navona. Ele não pode atendê-lo agora, mas pediu que eu o recebesse. Em que posso ajudar?

- Pena! Gostaria muito de rever o Navona. Busco informações sobre o ator que representa Kaspar Ha.

- Já sabe o que aconteceu?

Decidido a não falar ainda sobre o seu Kaspar, Doro quis primeiro ouvir a história do outro. Esquivou-se:

- Você pode me contar?

- Em resumo, Jonas Arco, o ator central desta peça, desapareceu nos bastidores no meio de um ensaio. Foi logo no início, após o prólogo. Pensamos que tivesse ido ao banheiro. Esperamos algum tempo e então começamos a procurá-lo. Nada. Sumiu. Não deixou pista alguma, não apareceu na casa dele e ninguém o viu depois daquela madrugada. Já faz quase uma semana.

Um leve tremor agitou os maxilares do pintor, que decidiu acender um cigarro para soprar as emoções e eliminar o tremor das mãos.

- Como ele é, esse Jonas?

- Uma pessoa maravilhosa. Muito jovem. Sentimos muito amor por ele.

- Tem alguma explicação para ele ter sumido?

- Só tenho uma intuição absurda.

- Aprecio intuições absurdas. Diga.

- Você sabe alguma coisa sobre Kaspar Ha? – indagou Lars.

O olhar de anzol com que Lars o encarou penetrou a mente de Doro e revirou-a como se soubesse o que queria encontrar. A sensação obrigou-o a achar depressa uma boa resposta sem expor-se inteiramente:

- Vi o filme do Herzog... recentemente.

- Vou dizer qual é minha intuição absurda: acho que é possível que o Jonas tenha assumido integralmente o personagem e o esteja vivendo por aí, exposto a todos os olhares e desejos, indefeso diante dos perigos da civilização.

- Assumido o personagem? Um pouco romântico, não acha?

- Você sabe como nós artistas somos. Talvez inventemos essas coisas para nos

consolar.

- Sei como é, eu também sou artista.

Sem mais poder segurar o segredo, Doro respirou fundo e decidiu terminar de vez com aquela dúvida:

- Tem uma foto dele, desse Jonas?

- Os programas da peça já ficaram prontos, deve haver alguns ali no balcão.

Lars apanhou um libreto e apontou uma foto:

- Jonas Arco, que faz o Kaspar, é esse aqui.

Lágrimas encheram os olhos de Doro de saudades, como se as fotos estivessem molhadas. Não havia mais dúvidas, a constatação era cabal. O seu Kaspar chamava-se Jonas Arco.

- Que foi, conhece o Jonas?

- Conheço. Eu o encontrei na madrugada em que deixou o teatro e o levei para minha casa.

A narração dos fatos foi sintética porém muito emocionada para ambos. No final, o desaparecimento de Kaspar da comunidade os trouxe de volta ao ponto de partida: onde estaria Jonas, ou Kaspar? Vivo, morto, ferido ou apenas perdido?

- Por tudo o que você me disse sobre as atitudes dele na comunidade, acho que a minha intuição está certa – concluiu Lars. – Ele está usando o personagem. Só nos resta desejar-lhe sorte.

- Pelo jeito, sorte continua sendo a palavra favorita dos grupos do Navona – lembrou-se Doro.

- É, mas todo mundo estranha por causa do velho mito teatral de que essa palavra traz o oposto do que promete. Navona detesta a mania que os atores têm de imitar os ses e dizer “merda” antes da estreia. Não gostamos de “merda” nem de “quebre a perna”, como dizem os americanos. Coisa de gente esnobe! E depois, sorte é a única coisa com que podemos contar, não é?

- Eles eram muito parecidos, o Jonas e o personagem Kaspar? – quis saber Doro.

- Acho que sim. O Jonas teve uma infância difícil, e em alguns aspectos parecida com a de Kaspar. Isolamento.

- Mas ele é muito jovem para protagonizar uma peça, você não acha?

- Na verdade ele parece muito jovem mas já tem 20 anos e é um ótimo ator.

- É mesmo? Eu achei que ele era um adolescente. Me diz uma coisa, você não acha mais fácil acreditar que o Jonas pirou, que enlouqueceu? Ele tinha algum sintoma de esquizofrenia?

- Não queremos acreditar nisso.

- Mas pode ter havido um distúrbio mental, alguma perda de identidade... Amélia, uma namorada minha que é médica, acha que é esquizofrenia.

- Talvez, mas e daí? Nomes, rótulos... Ele pode simplesmente ter entrado num outro universo, o da ficção. Nós que vivemos o mundo da arte sabemos que é muito tênue o limite entre uma coisa e outra. Não existe uma realidade objetiva. Cada indivíduo tem uma noção distinta e única do que seja a realidade. Tudo não a de uma projeção pessoal. O mesmo se dá com a ficção. É apenas uma realidade alternativa.

- É uma teoria interessante; tão absurda como toda essa história – replicou Doro irado com a fluidez e profundidade de pensamento do rapaz.

- Doro, o que acontece ao ator quando está no palco? – inquiriu Lars.

- Muita coisa, suponho. Minha experiência foi curta.

- O personagem vive uma realidade subjetiva criada pelo autor. Se o ator que apresenta ou representa o personagem acreditar naquela realidade, a então a

ser o personagem. Bom ator é aquele que acredita na realidade criada no palco.

- Você acha que basta acreditar para se penetrar em outro universo?

- Navona diz que é exatamente o oposto do que dizia São Tomé: “ver para crer”. Para entrar em outras dimensões como o mundo da arte, da magia, da cura, da paranormalidade e muitos outros fenômenos, é preciso dar um crédito, deixar-se envolver, aceitar, se entregar. É preciso crer para ver! Não podemos dizer que o Jonas está louco se elegeu viver a ficção. Não é isso que faz a maioria das pessoas com seus sonhos e fantasias? A realidade criada pelos desejos também é um produto de projeção particular, exatamente como a criação artística.

- Jovem Lars, estou com uma certa dificuldade de acompanhar as suas viagens mentais.

- O que eu aprendi com o nosso diretor é que realidade é tudo em que a mente acredita – afirmou Lars vasculhando na cabeça a correção de sua afirmação.

Doro se incomodou com aquele olhar voltado para dentro e resolveu cortar o assunto, trazer Lars de volta à terceira dimensão:

- O Jonas tem família?

- Ele nunca gostou de falar sobre parentes ou amigos. Vivia só.

- E o que vocês vão fazer agora?

- Já percorremos hospitais e delegacias, mas temos que fazer tudo outra vez. Podemos também ir à imprensa de novo. As novas informações que você trouxe, o fato de ter se encontrado com ele, podem nos abrir mais espaço na mídia. O Navona vai adorar saber que você esteve com ele.

- Achei estranho só terem noticiado no jornal hoje, seis dias depois.

- No começo achamos melhor não dizer a ninguém. Jonas poderia voltar a qualquer momento, estamos muito perto da estreia. Somente ontem fomos aos jornais. Sabe o que comentaram? Que essa história estava cheirando a golpe publicitário para atrair a atenção do público, falsa publicidade para o lançamento da peça.

- Em parte eles têm razão. Não seria a primeira vez que se inventam tragédias ou fatos escandalosos com essa intenção.

- Infelizmente tenho que concordar.

- De qualquer jeito devemos insistir com a imprensa, pedir mais espaço nos noticiários de tevê, espalhar fotos do Kaspar, quero dizer, do Jonas. É difícil chamá-lo de Jonas. Kaspar lhe cai tão bem... – concluiu Doro, comovido.

- Como foi que ele desapareceu da comunidade?

- Ninguém viu.

- Só espero que ele continue com sorte e encontre quem o abrigue como vocês fizeram – rogou Lars com um olhar agradecido. Depois prosseguiu: – Sabe o que mais nos preocupa? Se o Jonas assumiu a personalidade de Kaspar, pode talvez assumir também o seu destino. Já foi preso e pode ser... assassinado.

- Isola! Quer me assustar ainda mais?

- Desculpe.

- Cá entre nós, você acredita mesmo que um personagem pode dominar um ator?

- Já ouviu falar na expressão “Cavalo de Baco”?

- Não.

- Baco era um deus folgazão que introduziu o teatro na Grécia antiga. Ele buscava os atores mais vulneráveis e os possuía para usar seus corpos no palco. O maior sonho dos atores daquela época era ser um Cavalo de Baco.

- Que interessante! A Ludmila, uma terapeuta da Al Terna, disse que o Kaspar podia estar sendo cavalo para um espírito qualquer ou que um espírito chamado Kaspar estava usando alguém como cavalo, no caso o Jonas.

- Que incrível coincidência! – surpreendeu-se Lars. – Isso pode ser uma confirmação das nossas suspeitas. Ele pode ter sido tomado pelo personagem e não por um espírito. São universos diferentes...

Quando Doro deixou o teatro já era noite. Retornou à pracinha onde encontrara Kaspar pela primeira vez, na esperança de reencontrá-lo, como num círculo vicioso. Sentou-se no mesmo banco, esperando que o lugar derramasse alguma luz na tela de sua vida.

Sem saber se sonhava, visualizou na névoa da aurora imagens do mar lambendo a praia. Voltou correndo para casa, louco para retornar ao prazer da pintura. Sem conseguir dar uma pincelada sequer havia tempos, pintou vorazmente algumas marinas num estilo novo, rápido e quase livre. Em poucas horas fez diversos quadros muito parecidos que reproduziam as imagens da praia que sua mente vira no ar.

“Estaria Kaspar em alguma praia?” – foi a última coisa que pensou antes de adormecer exausto.

21 Assédio

Ainda na segunda-feira de manhã, na portaria da fazenda de Cassiano Dantas, Aldo apanhou o jornal com a fotografia de seu agora patrão na primeira página. Sentou-se ali mesmo e engoliu notícias que lhe provocaram azia instantânea. Stromberg, seu patrão oficial, era denunciado por Cassiano como a eminência parda dos esquemas fraudulentos do senador Dantas.

Apesar de acostumado às armações da classe dominante a quem servia diretamente, Aldo ficou muito abalado: poderia ficar desempregado. Mas seu personagem servil logo o dominou. ou pela cozinha, bebeu um copo de leite gelado para recompor o estômago, foi despertar o delator. Sem demonstrar sua ebulição interior, serviu o desjejum de Cassiano na cama e entregou-lhe o jornal.

Encoberto pela notícia de sua falsa viagem, Cassiano permanecia na fazenda para evitar confrontos com os recentes inimigos e ao mesmo tempo manter-se afastado da família, enlouquecida com o escândalo. Os filhos, dois jovens mimados, adolesciam em sonhos próprios de sua abastada classe social numa escola do exterior. Viriam a saber das notícias somente alguns dias depois. A senhora Cassiano Dantas, com quem ele estava casado há quinze anos e que só lhe cobrava um único e frio coito por mês, teve que ser internada com um ataque histérico quando leu a entrevista. O membros restantes da extensa família praguejavam, atingidos pela insegurança.

Qualquer evento apresenta uma dualidade. Antigos amigos que andavam afastados voltaram a pensar em Cassiano Dantas com respeito depois que ele “chutou o pau da barraca”, como se diz. iradores anônimos surgiram na imprensa, dando-lhe a chance de pesar prós e contras.

Atravessando a famosa crise dos 40, em plena curva da vida, sem ter sequer um vislumbre da outra metade, quando se via no espelho pensava: “Cheguei ao ponto máximo. Daqui pra frente é só descida”.

Enquanto Cassiano lia o jornal Aldo permaneceu ao seu lado, calado, proporcionando-lhe uma necessária sensação de segurança, além da mordomia.

Mais tarde, o Sol a pino sobre a terra quente obrigava os animais a buscar refúgio nas sombras das árvores. Era meio-dia. Aldo serviu ao chefe uma limonada gelada na varanda e entregou-lhe outras publicações.

- Seu Cassiano, adivinha quem ganhou a Exposição Nacional do Cavalo Árabe ontem?

- Que cabeça a minha, Aldo! Esqueci completamente dessa exposição.

- O pai do Zeus ganhou o grande prêmio de pureza racial por unanimidade de votos. E tem mais: o próprio Zeus participou na categoria dos potros.

- Aquela gente teve a coragem de expor...

- Ganhou uma menção honrosa, mas pelo jeito foi muito mal apresentado. Escute o que diz o repórter: “O potro Zeus, um show à parte, quebrou quase todas as regras disciplinares da exposição. Mesmo assim, os juízes estrangeiros concederam-lhe menção honrosa por sua indiscutível beleza, indicando que se

estivesse mais bem preparado poderia ter sido o vencedor na sua categoria”. Olhe a foto.

- Que maravilha! O meu Zeus... – mas interrompeu a exclamação quando um pensamento enrugou sua testa.

Decifrando as rugas do patrão, Aldo se antecipou:

- Já sei. Agora o Zeus vale uma fortuna. Não é isso o que o senhor pensou?

- Você também tem a mania de ler os pensamentos dos outros?

- Na minha profissão ajuda muito. É bem melhor quando o patrão não precisa pedir, o senhor não acha?

- Sem dúvida! Diga-me então, será que o tal Alaor já se deu conta de que o potro agora vale muito mais? Aquele pessoal é muito desligado. Vivem preocupados com o mundo espiritual como se não bastasse ar o material. Ou seria por isso mesmo, para escapar do material?

- Desculpe, de espírito eu não entendo nada – e limpou o suor da ampla testa. – Doutor Dantas, o senhor me permite tirar a camisa? Estou fervendo!

- Sempre que estivermos a sós não precisa me chamar de senhor nem de doutor e muito menos de Dantas. Meu nome é Cassiano. Tire a camisa quando quiser.

Fique pelado se lhe der vontade.

Surpreendido pela solicitude do patrão, Aldo não fez cerimônia.

Enquanto bebia a limonada, olhando apenas de soslaio, Cassiano não pôde deixar de invejar o chofer: a pele lisa queimada de sol, quase livre de pelos, o peito amplo, os ombros largos, os braços fortes. Inevitavelmente olhou para baixo e observou o volume do sexo e das vigorosas coxas sob a bermuda. Os pés portentosos inspiravam solidez e equilíbrio, as nádegas salientes lembravam as do primo, agora senador.

- Você está em forma, Aldo.

- Obrigado – irou-se o criado com o afago do patrão.

- Muito exercício, não é?

- Minha vida é um eterno exercício. Já fui até cortador de cana, quer coisa pior?

- Quantos anos você tem?

- 30.

- É ainda muito jovem.

- O senhor fala como se já fosse um velho.

- O meu corpo é que não tem mais jeito. Depois que eu peguei essa barriguinha tenho vergonha até de andar sem camisa.

- É por isso que não vai nadar no riacho?

Pego de surpresa, o patrão apenas disse:

- Talvez.

- Que pena! O senhor... Você tem um corpo legal.

- Acha mesmo? – insistiu Cassiano, mendigo de elogios, mirando pela primeira vez os olhos do empregado, percebendo ali um brilho esverdeado. Imediatamente lhe veio à memória a música de um filme que vira na infância, O Cangaceiro. Uma frase da canção-tema a repetir-se claramente em sua lembrança: “Os olhos da cobra verde, hoje foi que arreparei. Se arreparasse há mais tempo, não amava quem amei”.

Aldo manteve o olhar firme e respondeu encarando o patrão:

- É claro. Você é alto, vistoso. É disso que as mulheres gostam, não é?

- As mulheres... Estou cansado delas. E você? É solteiro, casado, separado...

- Sou livre pro que der e vier.

Desconcertado com o tom insinuante do rapaz, Cassiano fingiu olhar para alguma coisa distante, criando uma pausa misteriosa, deixando-se contemplar enquanto digeria as frases que seu pensamento destilava. Estaria Aldo insinuando a possibilidade de alguma coisa mais afetiva entre eles? Seria um assédio? Ou estaria apenas sendo gentil e submisso como um bom serviçal? Com o traquejo social de que dispunha, resolveu fugir do assunto:

- E dizer que uns dias atrás o Zeus andava perdido na estrada com um peão lelé e não valia nem quinhentos mil... Tem gente que nasceu com o cu pra Lua.

22 Tentação

- Não deveríamos ligar para a Al Terna, Cassiano? E oferecer, digamos, quinhentos mil pelo Zeus? É possível?

- Aldo, isso é menos da metade do que ele vale hoje. Mas se quiser pode ligar.

- É pra já.

Aldo ligou:

- Receba os meus cumprimentos e os do doutor Cassiano pela menção honrosa recebida pelo Zeus – foi logo dizendo quando Alaor atendeu.

- Obrigado. Ficamos todos muito empolgados. Mas fiquei preocupado com o seu patrão.

- Então o senhor já leu a entrevista que o doutor Cassiano...

- Acho que a essa altura o país todo já leu.

- E ficou preocupado com quê?

- Ele mexeu com gente poderosa. Gente poderosa é perigosa. Diga a ele para se cuidar.

Um arrepio percorreu a espinha do criado: “Será que podem querer eliminar meu estimado patrão?”, pensou.

- Vou transmitir os seus comentários, doutor Alaor. Agradeço a sua preocupação. Mas estou ligando por outro assunto: Zeus. O doutor Dantas insiste em tê-lo de volta. Diz que não pode viver sem ele. O senhor há de entender. Ele anda muito carente.

- Sinto muito, Aldo, mas acho que fui bem claro com você.

- Pense no bem do potro, doutor Alaor. O senhor, que é um amante dos animais, sabe muito bem que se o Zeus for tratado num haras moderno terá mais chances nas exposições. Longe de querer ofendê-lo, mas o senhor mesmo há de concordar com os críticos quanto à deficiência na apresentação dele.

- Depende do ponto de vista. O Vasco, nosso domador que apresentou Zeus na exposição, não gosta de regras rígidas.

- Não que tenha sido uma falha de vocês. Quem sou eu para dizer uma coisa dessas? Mas o doutor Dantas acha improvável que um haras com poucos

animais, como é o seu, possa sustentar uma estrutura de treinamento à altura de uma exposição nacional. Isso é tarefa para os grandes haras. O senhor sabe que está cada vez mais difícil competir com os gringos, mas o Zeus é um produto nacional com enorme potencial.

- Quanto a isso não temos dúvidas. Mas o haras do Cassiano não foi desfeito?

- Apenas os cavalos foram vendidos, a estrutura continua intacta. Pense no futuro do animal. O doutor Dantas pretende agora adquirir um novo plantel de primeira linha e tem uma oferta muito generosa, mesmo considerando que depois da premiação o Zeus tenha subido de preço.

- Sinto muito, mas ele não está à venda.

- Quinhentos mil, cash!

Como a soma era muito superior à que Alaor jamais supa, não conseguiu no momento manter a negativa.

- Prometo que vou pensar. Me dê alguns dias.

Feliz pelo resultado de seu trabalho, Aldo desligou o telefone com um sorriso escancarado.

- Esse está no papo! Desculpe eu perguntar, Cassiano, mas você pode pagar esse

valor? Não estava com dificuldades financeiras?

- Quando um político diz que está na miséria é porque ainda lhe sobram as contas no exterior e os dólares no cofre de casa.

- Se é assim não há problema. Mas então por que vendeu o potro?

- Vendi todos os animais. Achei que depois da eleição do meu primo eu me mudaria para Brasília, me embrenharia de vez na política.

- O cabeça da Al Terna, o Alaor, ficou preocupado. Acha que podem querer acabar com a sua vida.

Cassiano estremeceu mas procurou disfarçar:

- Meu primo não chegaria a tanto. Porém a minha vida já não vale muito – disse olhando as nuvens ageiras.

Sentindo que o patrão necessitava de ânimo, Aldo sugeriu:

- Com sua licença vou tomar um banho bem gelado no riacho, não quer vir junto? Prometo que não vou reparar na sua barriguinha.

O convite era tentador mas Cassiano sentiu uma reação inconsciente, um velho medo.

- Não, não quero andar no sol a essa hora. Aliás, não quero me mexer para nada. Antes de ir nadar por favor me traz um ventilador.

O canto das cigarras aumentou quando Aldo se aproximou do arvoredo que abrigava em suas sombras o alimento de suas raízes – o riacho. Aqui e ali as águas eram detidas pelas pedras, formando pequenos poços e abrindo clareiras por onde o Sol a pino penetrava no verão. Aldo livrou-se da bermuda e por algum tempo ficou sentindo a própria nudez como se estivesse exposto aos olhares de algum deus. Depois pulou na água, sendo acolhido por um frescor penetrante que fez seu sangue ferver.

Desde criança ele sonhava em ser dançarino. Tivera algumas oportunidades nas quermesses da juventude, mas fora se tornando tímido, perdera a coragem de dançar diante de alguém. Às vezes, sozinho em seu quarto, ligava o rádio e soltava-se no estreito espaço entre a cama e o guarda-roupa.

Certa vez, em visita a uma pequena vila litorânea, ele brincava nas ondas do mar quando ouviu os atabaques de um grupo de candomblé que fazia seus rituais na praia. Suas pernas, que se moviam naturalmente para que o corpo não afundasse, começaram a seguir aquele ritmo. Descobriu então que dentro d’água era um lugar perfeito para dançar. Apenas com a cabeça de fora perdia o receio, pois mesmo que outras pessoas olhassem para ele não poderiam ver seus movimentos subaquáticos.

Entrou na cascata. A ereção foi inevitável quando ele dançou contra a correnteza, balançando os quadris, penetrando o fluxo da água.

Enquanto isso, movido por um irresistível impulso dos instintos, Cassiano resolveu também descer ao riacho mas evitou a trilha. Não queria ser notado, aproximou-se com cuidado. Mas como quase nunca andava pela mata, por mais que se esforçasse ainda enroscava-se, quebrava galhos e produzia um estilhaçar de sons que afugentavam pequenos animais.

Apesar disso sua aproximação não foi percebida por Aldo, envolto em sua dança sensual. Também a música que a água repetia ao dobrar-se sobre si mesma impedia o dançarino de ouvir o que se ava ao redor.

Quando chegou próximo à cascata, perto o suficiente para ver sem ser visto, Cassiano escondeu-se detrás das folhagens. A imagem que viu paralisou-o completamente: abraçado à coluna líquida, Aldo atingia o clímax: um cordão branco de esperma se esvaía da boca de uma serpente vermelha engrandecida pela refração da água. Aldo estremeceu e afundou. Arquejante, Cassiano fugiu para casa.

23 Praia

As gaivotas da praia aqueciam os músculos das asas para mais uma jornada aérea. Fugitivo da polícia, perseguido e acuado, Francisco não conseguira se aprofundar no sono. Os primeiros raios de sol já o encontraram desperto. Ao seu lado, Kaspar abriu os olhos inocentes, espantou um mosquito do nariz, espreguiçou-se e bocejou.

- Bom dia, Kaspar!

- Dia, Fan-cisco, Fran-cisco! – respondeu ele com um sorriso, parecendo feliz por acertar o nome do companheiro, por estar de volta à realidade tridimensional que fazia o corpo funcionar.

- É melhor mijar fora da caminhonete. Cuidado pra não escorregar, a terra está molhada. A chuva foi embora ainda agorinha. Sabe, Kaspar, acho que não há latrina no mundo que ofereça ao homem um prazer minimamente comparável ao de urinar sobre a terra, ao ar livre, olhando o horizonte.

Ambos desceram do veículo e regaram as areias do chão.

A dureza da vida urbana tornara Francisco um tipo calado e até então ele não sentira necessidade de conversar muito com Kaspar. Mas naquela manhã estava ansioso por esclarecer as muitas possibilidades que lhe vieram à mente durante a

noite em claro.

- Quem é você?

Apesar de muito intrigado com o rugido do mar, que de longe alcançava seus tímpanos sensíveis, Kaspar repetiu automaticamente:

- Você.

- Sem brincadeira! Estou falando sério. Não vai me dizer?

Kaspar gostava de ouvir a voz forte e quente do companheiro que lembrava o monge do porão, mas sua atenção estava no desconhecido e magnético som do mar que preenchia todo o espaço.

- Ando muito esquisito desde que entrei naquela cela e vi você.

- Es-qui-ci...

- Não precisa fingir que é débil mental. É um truque bom, eu sei. Eu mesmo já usei uma vez quando fui preso. Mas não acha muito cansativo? A gente precisa ter uma atenção danada pra não ser pego de surpresa e reagir de um jeito normal. Pode relaxar, meu chapa, não precisa disfarçar, eu sou seu amigo.

- A-migo.

A batalha das ruas minara sua confiança a tal ponto que amigo, para Francisco, era uma palavra dos contos infantis que sua mãe usava ao embalar seus sonhos. Já nem se lembrava da última vez que usara tal substantivo; mas naquele instante reconhecia que era amigo de alguém. Seu peito latejou de profunda emoção, seus olhos se encheram de lágrimas.

Assustando-se com um estrondo de ondas muito forte lançado pelo mar, Kaspar falou:

- “Quero voltar ao porão. Aqui fora ninguém gosta de mim.”

Francisco se inquietou. Como aquela pessoa de repente falava com fluência, numa entoação perfeita...? Mesmo assim sentiu necessidade de se defender:

- Não é verdade! Não estou aqui, cuidando de você? – argumentou então, supondo que Kaspar falava com ele.

Atraído pela inabalável melodia do mar que invadia seu corpo, Kaspar saiu correndo. Zeloso, Francisco correu atrás dele, mas só conseguiu alcançá-lo num povoado caiçara próximo dali. O lugar parecia não ter policiais; e já que estavam ali foram matar a fome num boteco.

O atendente demorou a servi-los porque estava entretido com o jornal do dia anterior, mais precisamente a seção de esportes. Sobre o balcão Francisco viu a

primeira página com a manchete sobre o artista desaparecido e uma foto em close de Jonas Arco. Imediatamente constatou que o ator era Kaspar. Aproveitou uma distração do balconista e roubou a página do jornal.

24 O sequestrador

Penumbra. No centro da plateia, Ricardo Navona sentia a alma do teatro no silêncio denso daquele espaço sem janelas, o templo onde reconhecia suas diversas faces numa dança de máscaras. Gostava de chegar antes dos atores e observá-los entrando pelo fundo do palco, acendendo as luzes, falando baixinho...

Cada um que chegava era golpeado pela quietude do lugar e levava algum tempo para soltar a voz. Só de fitá-los ao chegar o diretor percebia como estavam naquele dia e podia levar isso em consideração para pressionar ou aliviar a tensão durante os ensaios.

Um diretor de teatro é um voyeur profissional. Como sua ação básica é observar atores, além de viciar-se em olhar aprende a ler corpos em movimento. Navona chegava antes em todo e qualquer encontro. Mais que um gosto, era uma obsessão, como se tivesse receio de ser abordado desprevenido. Sempre se colocava numa posição de onde podia ver antes de ser visto.

Pouco depois o teatro pulsava nervoso, quando pela quinta vez seguida os atores erraram as marcas de seus movimentos, saindo das posições de luz determinadas. Impaciente, Navona não deixava ar nada:

- Parem! Outra vez, até acertar!

Lars Borges, o diretor-assistente, aproximou-se cauteloso.

- Tempo! Podemos falar um minuto, Navona?

- Se acha que devemos parar, tudo bem – aquiesceu o diretor ao que com certeza o assistente viera lhe pedir.

- Cinco minutos de intervalo! – avisou Lars aos atores.

Para desarmar-se, Lars sorria enquanto se servia da garrafa de café e acendia um cigarro.

- Tá pesado. Ensaiar de manhã é um saco, não é? Pior ainda quando se tem a sensação de que estamos perdendo tempo. Nada está dando certo! Não podemos descarregar nos atores, Navona.

- A culpa é minha, então? – tentou defender-se o diretor.

- Acho que não é culpa de ninguém. Estamos todos na mesma enrascada, inseguros, preocupados com o andamento das coisas. Quase na véspera da estreia e não temos ainda nenhuma pista do Jonas. Sabe-se lá onde andará! Não há estímulo para trabalhar...

- Falta de profissionalismo. É isso!

- Pode ser... Mas pode ser também que estejamos cometendo algum engano. A estreia está marcada, há muita coisa envolvida, sobretudo dinheiro, e insistir em não substituir o Jonas...

Acostumado a lançar mão de sua autoridade quando não queria sujeitar-se a uma argumentação, o diretor disse friamente:

- Isso é assunto encerrado!

- Navona, você sabe como a minha posição é ingrata. Sou intermediário entre você e o elenco. Recebo fogo cruzado. Tento ser imparcial, mas neste caso está muito difícil. Sei que nenhum novo ator poderá substituir o Jonas com quatro dias de ensaio, mas temos dois outros atores no grupo que sabem todas as falas e marcas dele, podem quebrar o galho.

- E daí?

- Se adiássemos a estreia por uma semana poderíamos fazer um arranjo trocando alguns papéis. É claro que não seria a mesma coisa, mas por outro lado teríamos a certeza de haver uma estreia. Isto poderia devolver o entusiasmo a todos, poderia compensar...

- Quantas vezes vou ter que repetir? Não vou substituí-lo, ponto final. E acabou o intervalo!

Embora humilhado, Lars Borges não baixou a cabeça – adornada por longos cabelos negros, bem cuidados, que lhe davam um toque andrógino. Em seu íntimo desconfiava que Navona devia saber algo que ele não sabia, por isso estava tão resoluto apesar da crise que viviam. Voltou ao palco onde os atores esperavam instruções. Nesse instante uma funcionária do teatro chamou:

- Seu Ricardo! Telefone pro senhor na portaria.

Aproveitando a ausência do diretor para relaxar, os atores se reuniram em torno dos jornais que noticiavam o desaparecimento de Jonas. Navona atendia ao telefonema:

- Sim?

- É o Ricardo Navona, diretor da peça? – perguntou uma voz masculina do outro lado.

- Eu mesmo. Quem fala?

- Estou com seu artista!

- Meu artista? Jonas Arco?

- Esse mesmo.

- Graças aos céus! Ele está bem?

- Está muito bem por enquanto. Pode piorar de repente.

- Desculpe, não estou entendendo. Quem está falando?

- Não interessa quem está falando. O negócio é o seguinte: vão ter que pagar pra ter ele de volta.

- Que história é essa? – e Navona começou a se assustar.

- É um sequestro, ainda não sacou, bichona?

- Seques... Calma, vamos conversar...

- Eu estou bem calmo. Não quero saber de conversa fiada.

- Escuta, deve haver algum engano. Eu sou pobre, o Jonas também é pobre, não tem parentes...

- Sem choradeira!

- Me deixa falar com ele. Como eu posso ter certeza que é verdade?

- Problema seu.

- Ele já se recuperou, está falando normalmente?

- Isso não é uma consulta médica.

- Como eu posso saber se ele está vivo?

- Vai ter que pagar pra ver.

Pela primeira vez desde que Jonas desaparecera Ricardo Navona sentiu que perdia o controle, como se o espetáculo escae de suas rédeas. O sequestrador prosseguiu:

- Pode começar a pensar onde vai arranjar o dinheiro. Presta bem atenção: quero um milhão, grana viva. Não desgruda do telefone. Pode ser que eu ligue amanhã, antes do almoço. E se avisar a polícia, já sabe...

A ligação terminou deixando nos ouvidos do diretor um zumbido desesperador. Lars veio ao seu encontro trazendo jornais, alheio ao que acabara de acontecer.

- Já viu as notícias, Navona?

- Não, não leio jornais, você sabe.

- Fotos do Jonas estão em todos...

- Desculpa, Lars. Estou precisando ficar só.

Foi então que o assistente percebeu o medo estampado no rosto do diretor.

- Aconteceu alguma coisa? Você está branco!

- Nada não, Lars. Tenho que sair. Não sei quando volto. Toca o ensaio sem mim. Sei que estou deixando uma bomba na sua mão. Confio em você.

Navona deixou o teatro a pé. Precisava caminhar para alimentar os pensamentos: “Onde conseguir tanto dinheiro? Justo eu, que mal ganho para viver? Deve haver algum engano... Onde foi que erramos?”.

25 Conselho de guerra

O hotel onde Navona se hospedava não alcançava três estrelas; no entanto era limpo, a recepcionista era simpática e o ascensorista muito afetivo, caso raro nessa profissão subumana. Tarde da noite ele ligou para Doro na comunidade pedindo que viesse encontrá-lo porque tinha notícias de Jonas.

Doro atendeu ao chamado e Alaor veio junto, ansioso para colaborar e também conhecer o diretor. Navona iniciou a reunião indo direto ao ponto:

- Recebi uma chamada de um homem que diz ter sequestrado o Jonas. Pediu um milhão de resgate.

- O quê? Era só o que faltava!

- Então ele está vivo!

- Mas sequestrado.

- Conseguiu saber como ele está? Falou com ele?

- Não, não falei com ele. O sequestrador disse que está bem, por enquanto. Ameaçou “coisa pior” se avisarmos a polícia.

- Eles sempre dizem isso; mas está provado por estatísticas que é sempre melhor contar com ajuda policial.

- Tenho medo. Não confio em estatísticas e muito menos na polícia – retrucou Navona.

- E o dinheiro, como vamos conseguir? Não podemos alertar muita gente.

Diligentemente fizeram as contas de quanto poderiam juntar entre si mas chegaram a uma quantia irrisória.

- É quase nada.

- Como vamos conseguir o resto?

- Espera um pouco. Pagar o resgate não significa que vamos encontrar o Jonas vivo. É comum pegarem a grana e matarem o refém – balbuciou Doro, cujas mãos trêmulas não conseguiam acender o cigarro.

- Peço que tomemos cuidado com as palavras. Elas têm o poder de influir no destino – advertiu misticamente Alaor. – Ainda acho que devemos falar com a polícia.

- A polícia não dá o menor valor pra vida dos reféns. Querem matar os bandidos e o resto que se ferre.

- Não é bem assim. Já vimos muitos casos, aliás a maioria, em que há um “desfecho satisfatório”, como eles dizem.

- E o delegado Thales Duran, o que você acharam dele?

- Senti firmeza. Ele disse que o Jonas saiu levado pelos prisioneiros. Talvez tenha sido sequestrado justamente por eles. A própria fuga pode ter sido parte do plano.

- Também tive uma impressão boa do delegado – concordou Alaor. – Gostei da energia dele, acho que pode nos ajudar. Além disso eles eram seus prisioneiros, talvez sejam os responsáveis pela onda de assaltos que anda acontecendo na cidade. A essa hora ele pode ter mais informações.

- Não podemos nos esquecer que Jonas é procurado pela polícia como fugitivo.

Diante da situação Alaor decidiu abrir mão do segredo que ocultava desde o dia anterior:

- Ontem recebi uma oferta de quinhentos mil por um potro nosso que foi premiado numa exposição. Se ofereceram quinhentos é porque deve valer no mínimo um milhão.

- Que loucura! Nunca imaginei que um cavalo pudesse valer tanto.

- Mas você quer vendê-lo, Alaor?

Sem pressa em responder Alaor coçou a barba rala, avaliando o efeito que a venda do potro teria sobre a comunidade e sobre si mesmo.

- O Zeus é muito amado por todos. Por outro lado, é muito dinheiro num só animal.

- De qualquer modo a oferta é tentadora.

- Ele é um patrimônio de valor incalculável.

- Mas não seria um patrimônio supérfluo?

- Depende do que se considera supérfluo. O Zeus é uma obra de arte viva. A sua presença, a presença da arte é sempre benéfica – assegurou Alaor.

- Concordo – apoiou Doro.

- Entretanto, antes de qualquer coisa, acho que devemos falar com o delegado Thales. Se for necessário, pelo Kaspar, ou Jonas, vendemos o potro mesmo ele sendo um deus.

Mais tarde, na entrada da delegacia, Navona e Doro atravessaram com dificuldade um grupo de prostitutas que eram desembarcadas de um camburão como se fossem gado.

- Doutor Thales, desculpe aparecer numa hora dessas, parece que o senhor está com muito serviço – comentou Doro referindo-se às putas.

- Não por elas. Estou fora dessa rotina por uns tempos. Agora cuido apenas das investigações sobre a quadrilha que está com o seu amiguinho Kaspar.

- Ele está com uma quadrilha?! – exclamou Doro surpreso, esquecendo de apresentar Navona ao delegado.

- Suposições – amenizou Thales soltando um sorriso indecifrável, típico de quem nada sabe sobre o caso. Depois encarou o diretor: – Prazer em conhecê-lo, Ricardo Navona.

- Já ouviu falar de mim, delegado?

- Um pouco. Tenho uma namorada que é fã de suas peças.

- Eu trouxe o Navona aqui porque temos notícias. É melhor ele contar.

- Estou ouvindo.

O diretor repetiu a história palavra por palavra:

- Uma pessoa, um homem me ligou. Disse que está com o Jonas, que quer um milhão de resgate...

- Espera lá, vamos devagar, seu Ricardo. Tente se lembrar de tudo com detalhes e comece outra vez.

- Ameaçou matar o Jonas se eu contasse à polícia.

- Agora é tarde, já está contando. Não se preocupe com isso. O criminoso disse quando voltaria a ligar?

- O que ele disse foi: “pode ser que eu ligue amanhã, antes do almoço”.

- Antes do almoço de quem? Provavelmente do seu... A que horas almoça, senhor diretor?

- Três, quatro...

- Vão trabalhar de manhã?

- Vamos, às dez horas.

- Manhã de artista começa tarde, não acha?

- E acaba cedo. De madrugada, delegado.

- Entendo... Bem, vamos armar uma estratégia e quero contar com a colaboração de vocês. Quanto ao dinheiro não precisam se preocupar. Temos um estoque de notas falsas para essas emergências.

- O senhor nem imagina o alívio que essa notícia nos dá. O cavalo do Alaor está salvo – comemorou Doro.

- Cavalo, que cavalo? O que isso tem a ver?

- Deixa pra lá, delegado.

- Muito bem – retomou Thales. – Vamos combinar o seguinte: vá ao teatro na hora marcada. Quando o sequestrador ligar, atenda.

- Mas o que eu devo dizer, o que...

- Não se preocupe, eu estarei lá. Tenho mesmo que interrogar os atores e o pessoal do teatro.

- Interrogar? Por quê?

- O diretor gostaria que eu me metesse na direção de suas peças?

- Desculpe, tem razão.

- Tem mais uma coisa – pediu o delegado. – Você daria um autógrafo pra eu levar pra minha gata?

- Com todo o prazer. Como se chama sua...?

- Gladys. Ela vai ficar maluquinha. E cá entre nós, quando fica feliz ela grita e balança a... – interrompeu-se ao perceber que se precipitava na indiscrição.

26 Personalidades

Desde que ouvira a conversa de Doro sobre Lia a doutora Amélia se fechara em ostra, só deixava o apartamento para atender emergências. Pediu licença do ambulatório onde atendia mulheres vítimas de violência, não aceitava novas consultas e ava o tempo ouvindo música andina – cujas melancólicas queñas aprofundam qualquer tristeza.

O orgasmo que tivera com Kaspar lhe dera um novo vislumbre do futuro. Estava pronta para ser feliz! Entretanto, para que seu romance pessoal ganhasse mais intensidade, não poderia deixar de aparecer a outra – a tal Lia.

Quem ganhou com isso foi seu diário íntimo, que engordou algumas páginas. De resto um muro de lamentações, milhares de decisões impraticáveis, o choro autopiedoso e o ancestral movimento pendular da mente pulando do amor ao ódio e vice-versa, sempre nos extremos do mesmo círculo infernal. No fim do poço, água de lama... E como não havia mais como afundar teve início a escalada redentora. Ela partiu ao encontro de Doro.

Era noite. Entediado com a barata que não ara suas selvagens brincadeiras e já não movia senão as quebradas antenas, Goethe entrou na sala da casa, lambeu os vestígios que a desastrada vítima deixara em suas patas e ajeitou-se na almofada a esperar que o casal no sofá lhe proporcionasse um espetáculo interessante.

- Vim me desculpar. Estou envergonhada. Ficou com raiva de mim? – começou

Amélia.

Para quem estava esperando uma tremenda bronca, aquelas frases foram um bálsamo.

- Com raiva? Nem um pouco. Para ser sincero, acho que me fez bem. Não é sempre que alguém sente ciúmes de mim. Além do mais o caso com a Lia foi apenas uma aventura sem consequências.

- Seja como for, não quero que aquela bobagem nos afaste. Sua amizade é fundamental pra mim, Doro.

- E para que servem os amigos se não podem entender pequenos momentos de descontrole?

- Obrigada.

- O que vamos fazer pra quebrar esse gelo?

Ele já estava preparado para uma reconciliação completa. Contudo, com seu ar profissional, a doutora o surpreendeu:

- Vamos falar sobre o Kaspar. Andei investigando. Quando eu soube que ele era Jonas Arco fui consultar um colega que está desenvolvendo uma tese sobre as qualidades holográficas do cérebro.

- O que é isso?

- É muito complicado para explicar sem utilizar conhecimentos avançados de Física, que é uma coisa que você detesta.

- Pois é, não conheço a matéria nem tenho saco pra aprender.

- É uma teoria que explica o universo como sendo um grande holograma em movimento.

- Como é?

- O que importa no momento é que uma parte dessa tese se apoia em estudos sobre o TDI, Transtorno Dissociativo de Identidade, ou Transtorno de Múltiplas Personalidades, como também é chamado. Achamos provável que seja o caso do Jonas.

- Tipo dupla personalidade?

- Muito mais grave. Essa doença fragmenta a personalidade em várias. Os cacos se juntam em totalidades menores, completas e autossustentadas, com características próprias, motivos, desejos... Múltiplas personalidades.

- Mas Amélia, o Kaspar nem sabe falar...

- Você ainda não viu nada! Uma pessoa pode chegar a ter dezenas de subpersonalidades e uma personalidade nem saber da existência das outras. Você sabia que normalmente o padrão de onda cerebral de uma pessoa não muda, mesmo em estados de extrema emoção?

- Claro que não sabia.

- Deixa eu continuar. No caso de pacientes com TDI, cada uma das personalidades tem um padrão de onda cerebral diferente. E não é a única coisa que varia. Para cada personalidade variam também os padrões de fluxo sanguíneo, tônus muscular, ritmo do coração, postura...

- Puxa!

- Uma mesma pessoa pode se apresentar com uma imagem muito distinta de uma hora para outra. Cada subpersonalidade tem seu próprio nome, idade, memória e capacidades. Pode haver diferenças radicais. Às vezes até estilos próprios de letra, históricos raciais e culturais discrepantes, sexo diferente, talentos artísticos, fluência em línguas, QI...

- Sexo diferente?

- Uma personalidade é hétero, outra gay, ou bi...

- Que flexibilidade! Queria isso pra mim.

- Sabia que algumas subpersonalidades têm doenças que as outras não têm? Uma pode ter alergia mas quando outra assume o comando a alergia a.

- Mas esse transtorno aparece assim de repente, da noite pro dia?

- Em quase cem por cento dos casos acontece por trauma infantil, abusos sexuais, físicos ou psicológicos. A divisão da personalidade começa na infância e vai se ampliando com a idade. Parece que ter várias personalidades faz a pessoa ar o que seria demais para apenas uma.

Surdo como era, Goethe não conseguia encontrar nenhum interesse no bate-boca que as pessoas costumavam praticar por horas. Espreguiçou-se na poltrona, bocejou, lamentando ter ado dos limites com a barata: “Na próxima vez não vou deixar que ela morra!”

A hipótese de que Kaspar fosse uma subpersonalidade de Jonas agradava a Doro bem mais que a versão espiritualista de Ludmila ou as teorias multidimensionais de Lars, que lhe pareciam fantasiosas demais. Mesmo não o compreendendo perfeitamente, o TDI lhe pareceu algo mais palpável que uma disputa de espíritos ou de personagens por um corpo. Sentiu renascer a esperança de ainda vir a reencontrar Kaspar e conhecer melhor o seu misterioso mundo multifacetado.

- Quer dizer que ele pode mudar para outras personalidades a qualquer momento?

- É o que parece.

Seguiram conjeturando sobre Kaspar enquanto seus corpos e mentes iam quase se esquecendo dos desencontros anteriores. Mas ela se lembrou:

- E a tal deusa da Al Terna, continuam se vendo?

- Foi apenas uma ilusão ageira. A Lia só se interessa pela espiritualidade. Nós tivemos apenas um único e último encontro.

A resposta relaxou Amélia de vez. Polidamente Goethe retirou-se ao perceber que finalmente o casal ia partir para o objetivo real daquele encontro.

Lembrando da conversa que tivera com Lia sobre o prazer, Doro superou-se nas carícias e conseguiu chegar com Amélia a um gozo extremo. Porém, preocupados em fazer tudo dar certo, acabaram esquecendo de algo importante: o preservativo.

27 Encontro terapêutico

Ainda era manhã. Estirado na rede da varanda Cassiano Dantas já estava cansado de tanto rear sua vida, como se tivesse que decorá-la para um exame final, quando uma súbita ventania o fez lembrar-se do potro Zeus, de sua crina a balançar ao vento. Um enorme desejo de rever o corcel, mesmo que pela última vez, ergueu-o da rede.

- Vou sair, Aldo.

- Agora? Trago a Mercedes?

- Não. Vou sozinho.

- Como assim? Não acha melhor que eu vá junto? Acho perigoso...

- Não se preocupe. Não vou de Mercedes. Com o meu Fiat velho ninguém vai me reconhecer nem querer me assaltar. Estou precisando ficar só. Há mais de uma semana que eu não guio. E só vou até a Al Terna, aqui bem perto, um pulo.

- Então boa viagem. Mas eu vou ficar preocupado até você voltar – e Aldo ficou irado com seu próprio tom de voz não apenas franco mas íntimo,

emocionado, quase materno.

- Sei que você é sincero quando diz preocupar-se comigo. Também sou sincero quando digo que gosto muito de você. Fique tranquilo, antes que anoiteça estarei de volta.

Da varanda Aldo seguiu o ronco do carrinho esgueirando-se para fora da propriedade. Percebeu uma ruga na testa, um aperto no peito, teve a certeza de que se afeiçoara ao patrão em demasia e secretamente o desejava.

Os portões da Al Terna estavam abertos. Como não conhecesse o lugar Cassiano foi entrando com cuidado, seguindo as placas de orientação. Diminuiu a marcha em respeito a um grupo de pessoas que meditava à beira do lago praticando a dança giratória dos dervixes turcos. Depois contornou os barracões da lavanderia em meio aos pomares e chegou ao haras.

Contido em seu piquete particular por uma cerca de madeira alta o suficiente para que não saltasse em perseguição às éguas, Zeus erguia a cabeça ensaiando o relincho dos garanhões, provocando o cio nas potrancas que pastavam ao largo.

Cassiano desceu do carro e se aproximou do cercado. Cheio de graça Zeus esqueceu o encanto das fêmeas, veio cheirar-lhe as mãos e abençoá-lo com uma lambida na testa. Olharam-se nos olhos, cúmplices e melancólicos diante de uma nova despedida.

Desta vez foi Cassiano quem se afastou, sentindo o olhar do cavalo fixo em sua nuca durante o trajeto até o bangalô de Alaor que ficava no topo da montanha.

- Não sabia que este lugar era tão agradável, Alaor. Tem uma vista magnífica. Daqui você pode ver tudo o que acontece na comunidade.

- Este lugar está ao seu inteiro dispor, Cassiano. Se interessou em fazer alguma terapia conosco?

- Na verdade eu vim mesmo ver o Zeus. Tenho uma grande afeição por ele.

- Nós também nos afeiçoamos, sinto muito, não queremos vendê-lo por enquanto. Mas você pode vir visitá-lo quando quiser.

- Que idade você tem, Alaor?

- Começando uma nova vida aos 40.

- Ah! Como eu... Me diga uma coisa: você tem medo da morte?

- Mesmo as religiões cristãs que falam tanto da vida eterna evitam o tema. Almejar a morte, o reencontro com o todo, deveria ser um objetivo de todos nós; mas o que eu vejo é que as pessoas têm pavor à palavra. Já os samurais e os vikings pareciam desejá-la.

- Mas você não respondeu à minha pergunta. Você tem medo da morte?

- É um assunto difícil. Em muitos anos de busca religiosa eu consegui tirar o medo da morte da minha cabeça, mas não tirei o medo do corpo. Não vejo como isso seja possível devido ao instinto de sobrevivência. E você, como vê essa questão?

- Não sei. Nos últimos dias tudo que vejo parece impregnado de saudade. Como se fosse tudo pela última vez.

Como já lhe ocorrera muitas vezes antes, sem nenhuma razão aparente Cassiano Dantas voltou a sentir naquele instante que algo monstruoso avançava sobre ele pelas costas. Voltou-se rapidamente e viu Zeus através da janela, relinchando no horizonte.

- Cassiano, aconteceu alguma coisa? Você ficou branco de repente.

O tom preocupado e zeloso da voz de Alaor despertou nele a vontade de se abrir, de falar de si e dos medos que o perseguiam, mas Cassiano preferiu disfarçar.

- Não é nada. Vocês têm notícias do ator, aquele seu paciente que desapareceu?

- Ainda não... E pensar que você esteve com ele.

- Saiba que ultimamente ele não me sai da cabeça. Talvez eu me sinta culpado por tê-lo entregado aos policiais.

Buscando seu melhor tato de terapeuta, Alaor fez uma pausa misteriosa antes de dizer:

- Não sabemos ainda o porquê, mas temos observado que todas as pessoas que entraram em contato com o Jonas Arco sentiram uma espécie de interferência psíquica. Quando eu soube das suas denúncias à imprensa pensei que talvez tivessem algo a ver com ele. Se por um lado foi preciso muita coragem para fazer as denúncias, por outro...

- Não foi coragem, foi vingança.

Acostumado com o trabalho de aconselhamento pessoal que vinha desenvolvendo havia muitos anos, Alaor percebeu que o visitante estava a ponto de extravasar seus sentimentos e preparou o terreno para que a conversa se estendesse:

- Você se importa se eu preparar um café enquanto conversamos? – inquiriu o anfitrião.

- Fique à vontade. Sinto muito, estou interrompendo seu trabalho sem nem ter avisado antes...

- É um prazer recebê-lo. Tive vontade de saber mais sobre você depois que vi a sua foto no jornal. Veio a calhar, eu não tinha mesmo nada para fazer agora. Sinta-se em casa. Pode olhar e mexer no que quiser... – ia Alaor enredando o paciente.

Depois do café o assunto foi retomado diretamente:

- Denunciou seu primo por vingança. Ele deve ter feito você sofrer muito para que acumulasse tanto rancor. Mas denunciá-lo pode não ter sido suficiente para livrar você dessa energia destrutiva. Gostaria de falar a respeito?

- Meu primo me trata com indiferença, como se eu fosse inferior – queixou-se Cassiano claramente se colocando na posição de paciente.

- Sempre? Desde que eram crianças?

A pergunta deixou Cassiano mudo por algum tempo, alternando a visão entre a janela que emoldurava Zeus e os olhos do terapeuta. Quando finalmente falou, suas frases eram entrecortadas por uma espécie de soluço.

- Na infância éramos muito unidos. Unha e carne. Até a adolescência. Quando ele fez 16 anos o pai dele lhe arranjou uma namorada. Depois disso ele foi se afastando rapidamente de mim. Logo ou a me ignorar. Fiquei muito solitário durante alguns anos, depois segui a rotina dos jovens daquele tempo: me casei por conveniência para relaxar meus pais, tive filhos...

- Não gosta da sua mulher?

- Mal o.

- E dos filhos?

- Formalmente.

- Nunca voltou a amar alguém?

O verbo amar mexeu na ferida. Cassiano remexeu-se na cadeira, acendeu um cigarro e pediu mais café antes de voltar à entrevista.

- Reconheço que era amor o que eu sentia pelo meu primo na infância.

- Bom. E depois dele, amou outras pessoas?

- Acho que não. Fiquei com aversão ao toque e a qualquer intimidade. Me sinto seco como a casca de uma árvore.

- E você acha que a culpa é dele, do seu primo?

- Mantínhamos relações sexuais com frequência, coisa normal entre jovens, não é?

- E você gostava?

- Muito. Era o centro das nossas vidas.

- Depois do seu primo você sentiu atração por outros homens?

- No começo sim, eu tinha curiosidade de saber como seria com outro. Mas jamais me permiti. Minha família me mandaria a um sanatório na Romênia se soubesse. Jurei a mim mesmo que jamais olharia de novo o corpo de um homem, não permitiria abraços apertados nem cumprimentos prolongados com homens. Queria matar aquela coisa dentro de mim, aquele desejo. Quando encontro um homem dificilmente olho o corpo ou me detenho na fisionomia.

- Já percebi sua relutância. Mas olhe para mim sem medo – pediu Alaor docemente.

Cassiano foi olhando Alaor parte por parte até chegar aos olhos. Uma coragem inusitada o fez confessar:

- Outro dia me aconteceu uma coisa... inesperada. Não sei dizer por quê. Desci ao riacho e fiquei espiando meu funcionário nadando nu.

- E o que você sentiu?

- Fiquei... Fiquei muito surpreso com o que senti... Fiquei excitado. E fugi de

medo – revelou com humilhação e vergonha.

- Que maravilha! – exclamou Alaor pegando o paciente de surpresa.

- Maravilha?

- Prova que você não é uma casca seca, ainda está bem vivo. Foi um sinal de que você deve se aceitar como é. Cada um de nós é um ser único. Não temos que ser iguais aos outros.

Cassiano desatou num choro incontrolável que aumentou quando Alaor o aninhou em seu colo como se fosse um bebê, apertando-o contra o peito, buscando transmitir-lhe segurança. Quando o choro cessou não voltaram ao assunto.

- E a sua carreira política, pretende continuar, Cassiano?

- Acho que não nasci para o jogo do poder, onde é preciso pisar nos outros para poder subir. Estou abandonando a arena e... Bom, é hora de ir, quero chegar em casa o quanto antes.

O sol puxava o horizonte para cima, entardecendo este lado da Terra. A estrada cortava montes pelo meio, deixando abruptas escarpas laterais que desciam até o acostamento. Embora o trânsito fosse escasso Cassiano guiava devagar. Já estava a poucos quilômetros da fazenda quando voltou a estremecer – a mesma sensação! Olhou pelo retrovisor e viu um caminhão escuro avançando em sua

direção em alta velocidade. Reconheceu então a chegada do temido momento que se anunciava havia vários meses. Tentou defender-se, diminuiu a marcha e saiu para o acostamento mas o caminhão o seguiu.

Atingido por trás com extrema violência, o carro subiu alguns metros pela escarpa da direita e depois rolou de volta para a estrada, capotando três vezes antes de parar com as rodas para cima.

Em vez de desespero, como seria normal, Cassiano atingiu um estado alterado de consciência. Como se o tempo se estendesse para que sua mente trabalhasse, ele pôde pesar prós e contras, pois naquele momento, enquanto o carro dava cambalhotas, lhe foi dado escolher se preferia morrer ou continuar vivo. Lembrou-se de viagens alucinógenas que fizera na juventude, quando o tempo parecia parar.

Quis continuar vivo, e para tanto teve apenas que instintivamente arredondar o corpo, deixá-lo acompanhar os movimentos do carro, soltar-se. Num dos giros do veículo foi jogado para fora, caindo numa valeta.

O caminhão que o atingiu parou uma dezena de metros adiante. Dois brutamontes desceram, olharam de longe o carrinho totalmente amassado, as rodas para cima ainda girando. Em seguida viram uma explosão que transformou o velho Fiat numa bola de fogo.

- Dessa ele não escapou – concluíram os agressores e se foram.

Cassiano conseguiu erguer-se, e a primeira imagem que lhe veio à mente foi o rosto preocupado de Aldo. Com muita dificuldade, as pernas doloridas, as costas

arranhadas, um corte na testa, tentou caminhar mas não resistiu e caiu à beira do caminho.

Simultaneamente, na fazenda, Aldo sentiu um choque dentro da cabeça. Fechou os olhos e viu fogo. Correu para a Mercedes e lançou-se estrada afora, desesperado. De longe viu Cassiano deitado no chão. Desespero, dor, teria morrido? Quando chegou viu que ainda estava vivo. Sem pestanejar, já chorando, pegou-o no colo e carregou-o até o carro. Rumou para a fazenda enlouquecido.

Quando lá chegou, o ferido despertou. Olharam-se fundo nos olhos, derramando lágrimas. Com esforço Cassiano pediu:

- Nunca mais me deixe, meu Aldo querido.

- Eu juro, meu amor.

28 Espelhos

Às dez horas em ponto o delegado Thales chegou ao teatro e encontrou toda a companhia à sua espera. Navona pedira ao elenco que chegasse mais cedo para contar sobre o sequestro e preparar o grupo para receber com boa vontade a visita do delegado. Para diluir a tensão resolveram que os atores iriam estudar a maquiagem de seus personagens, cada um em seu camarim, dando assim mais privacidade ao interrogatório e evitando que o delegado ocue mais de um ator por vez.

O último entrevistado foi Lars Borges, que além de assistente de direção fazia na peça o papel do monge que cuidava de Kaspar Ha no porão. O espelho diante do qual estavam sentados era bastante grande para refletir os dois, ele e o delegado. Enquanto conversavam Lars ia transformando sua jovem e delicada figura no monge de rosto marcado pela solidão dos anos.

- Acho que somos culpados, seu delegado.

- O que quer dizer esse “somos culpados”?

- O diretor e eu, que o ajudo a cumprir os seus desígnios.

- Pode ser menos enigmático, jovem Lars?

- A ficção é tão concreta quanto a realidade. É o que Navona pensa e diz. É uma filosofia que ele desenvolveu ao longo da carreira baseado em técnicas incorporadas durante décadas de pesquisas em laboratórios teatrais.

- Você pode explicar melhor?

- Num primeiro o ele pede ao ator que mantenha o personagem em situações imprevisíveis, o que nos leva a vivenciá-lo nas ruas. Ele defende a tese de que o ator deve ser um instrumento do personagem, deve se deixar tomar por ele em qualquer situação. A multiplicidade de situações que se apresenta nas ruas ajuda a desenvolver a concentração. Todos aqui já amos por isso. E não é fácil. Nunca fui além de duas horas. Na rua sempre aparece alguém que nos distrai.

- Atuação na rua é o primeiro o; e o segundo?

- O segundo é acreditar na realidade que a cena instala no palco. Depois disso... Bem, só sei até onde eu fui. Nunca consegui ar do segundo o.

- Mas se você é assistente dele, devia saber mais.

- Como assistente as minhas funções são de caráter organizacional. Não tenho interferência na preparação dos atores. Eu mesmo sou apenas um iniciante como ator. E o Navona não é desses que ficam vomitando o que sabem nas orelhas dos outros.

- Mas você acha que o desaparecimento do Jonas tem a ver com isso? Que o Jonas Arco pode estar apenas fazendo um exercício que o diretor mandou? Que saiu por aí pelado brincando de elo perdido? – emendou Thales.

Já aborrecido por falar com pessoas que se olhavam em espelhos apurando detalhes faciais de personagens, o delegado foi se interessando mais por seu próprio reflexo. Fixou-se nele enquanto falavam.

- As ideias do Navona fizeram o Jonas pirar, é isso o que você pensa, Lars?

Notando o interesse do delegado pelo espelho e doido para saltar da corda bamba que sentia sob os pés, Lars tentou desviar o tema:

- O senhor gosta de espelhos?

Talvez de tanto fixar-se em sua imagem, Thales entendeu que o que via no espelho era apenas um personagem seu: “E eu, onde estaria?” Ele nem saberia dizer o quanto durou aquela reflexão porque esteve suspenso, fora do tempo. Muito menos poderia explicar a razão de sua resposta quando apontou o espelho e disse:

- O delegado gosta de espelhos.

O gesto de súbito desprendimento encantou o sensível Lars, que se animou com a conversa:

- Então o senhor acredita que a ficção possa interferir na realidade?

- Você está falando da influência da arte na vida das pessoas?

- É, mas de um modo mais concreto. O senhor sabe o que é um happening?

- Mais ou menos.

- É um tipo de manifestação teatral feita em geral nas ruas, muito popular nos anos 70 mas que agora anda fora de moda. Os atores partem de um tema central e improvisam em função das reações do público.

- Já vi coisas desse tipo.

- Apesar de a mensagem ser transmitida quase corpo a corpo no meio da rua, continua sendo indireta porque o espectador sabe que está diante de atores, que tudo aquilo não a de encenação. O poder da mensagem se enfraquece. Infelizmente há uma péssima associação entre representação e fingimento.

- Onde quer chegar, senhor Lars?

- Na política, por exemplo, é diferente. O político cria um personagem, age como tal, mas o povo ouve o que ele diz como se fosse o que ele realmente pensa. O político é direto, pode fazer uma ficção parecer realidade mais facilmente...

- Boa explicação. Algo mais a me dizer?

Lars ficou um tempo pensativo, indeciso sobre expressar seus pensamentos, e por fim:

- Tem outra coisa. Nos últimos tempos o Navona andou fazendo uns cursos baseados na física quântica que lidam com as funções do cérebro.

- Explique melhor.

- Não sei explicar, parece que são técnicas para derrubar a mente inferior, ou seja, a lógica, a razão, os números, as palavras, e libertar os instintos.

- Como é?

- Não conheci essas técnicas, mas o Jonas e o Navona conheceram. Parece que é possível entrar num estado em que a pessoa seja apenas instinto.

- Tá brincando!

- Não sei dizer mais nada. Tem que perguntar pro Navona.

- E você acha que isso tem a ver com o sumiço do Jonas Arco?

- Talvez...

O interrogatório foi interrompido por um chamado de Navona. O telefone estava tocando. O delegado interrompeu a conversa, saltou do espelho, reincorporou Thales e correu para uma extensão montada pela polícia.

- Alô? Aqui é Ricardo Navona.

- Parece nervoso, cagando de medo, né diretor? Isso é bom. Já conseguiu a grana? – disse a voz do outro lado.

- Já. Consegui a grana, mas...

- Nem mais nem menos. Até que enfim uma boa notícia! Então vamos fazer a troca hoje mesmo. Já avisou a polícia?

- Como? – perguntou Navona assustado, temendo ter sido desmascarado.

- A polícia, aquela facção de bandidos que usa uniforme. Lembrou?

- Não sei nada de polícia. Não falei com ninguém.

- Não banque o espertinho, ouvi seu pensamento gaguejar. Presta bem atenção: o seu ator é muito frágil, eu posso matá-lo com os dentes.

- Não faça isso. Vamos pagar tudo.

- Vamos? Quem mais sabe, quem está com você?

- Tive que contar a uns amigos pra conseguir o dinheiro. Eles juraram manter segredo.

- Ligo no fim da tarde, às seis. Aí digo o local onde você deve deixar a grana. Tchau!

A ligação foi muito rápida, impossibilitando o seu rastreamento pela polícia.

- E agora, o que eu faço? – perguntou Navona desarmado.

- Esteja aqui às seis. Eu também estarei. – instruiu o delegado.

- E nesse meio-tempo, estou dispensado?

- Procure relaxar. Quero ainda retomar o interrogatório com o pessoal do teatro. Importa-se, senhor diretor?

- São todos seus. Lars, por favor atenda o delegado em tudo o que ele precisar. Sigam com o trabalho de maquiagem e deem uma ada nas luzes. Se tudo der certo amanhã teremos o Jonas pro ensaio. Boa sorte!

29 O resgate

O crepúsculo descia sobre a cidade distribuindo pinceladas cinzentas. Uma garoa fina molhava a vidraça do pequeno estúdio cheirando a tinta. Doro deixava o pincel correr livremente, matizando várias telas de azul ultramar. Atrás dele, sentada numa poltrona, Amélia observava o artista a criar.

- Não há dúvida de que alguma coisa mudou em você, Doro. Gosto muito dessa nova série de quadros.

- É como um vômito, um desabafo – definiu ele.

- Praias vazias! O que significam?

- Não sei, começou lá na praça essa obsessão pelo mar.

- Desculpa eu me meter, mas por que você não experimenta colocar uma figura? – sugeriu ela temerosa, esperando uma bronca. No entanto ele respondeu amavelmente, considerando a sugestão:

- Quem sabe...

- Querido, se importa se falarmos enquanto você trabalha?

- Sim. Quando eu pinto minha mente se esvazia de pensamentos.

- Nós temos que esperar aqui enquanto a polícia resolve o caso? Pra que horas está marcado? – ela quis saber.

- A qualquer momento depois do anoitecer. Daqui a pouco, espero. Agora vê como ficou este quadro.

A pintura era dominada por faixas horizontais. A de baixo verde, a seguinte areia amarelada, depois o mar e finalmente o horizonte trazendo as primeiras cores do dia, o céu. Nas ondas, debatia-se uma figura humana.

Anoiteceu. Do outro lado da cidade, Ricardo Navona, só, dirigiu seu carro até a rua quase deserta indicada pelo sequestrador. No banco ao lado mantinha o rádio da polícia. Estacionou no ponto estabelecido, deixou a maleta com o dinheiro falso numa cabine telefônica e se afastou rapidamente. Perto dali veículos da polícia aguardavam sorrateiros. Num dos carros estava Thales Duran com três ajudantes, policiais do grupo antissequestro nos demais.

Minutos depois surgiu uma caminhonete que parou diante da cabine. Uma pessoa desacompanhada desceu encapuzada, apanhou a maleta, voltou ao carro e partiu.

Os policiais poderiam ter realizado a prisão ali mesmo, mas queriam que o

bandido os levasse até Jonas. Era melhor segui-lo. O sequestrador dissera a Navona que o refém apareceria algumas horas depois num ponto qualquer da cidade e que ele seria informado, mas quem confia num sequestrador?

Encaixado com precisão no fundo da maleta, um minúsculo transmissor enviava sua posição à central que ava instruções aos policiais. Afortunadamente o criminoso levara a maleta consigo, possibilitando o monitoramento de seu percurso pela cidade na tentativa de livrar-se de possíveis perseguidores. Chegou por fim num bairro de periferia e parou diante de uma casa antiga, aparentemente abandonada.

Minutos depois a casa foi cercada sem despertar nenhuma suspeita em seus ocupantes. Os policiais especializados entraram com muito cuidado, mas Thales teve que atirar num enorme cachorro branco que avançou querendo lhe devorar as mãos. Para seu espanto a imagem era a mesma do pesadelo que tivera quando dormia com Gladys.

Em seguida, silêncio.

Na sala, espalhados pelo chão, pedaços de corpos humanos meio comidos, em putrefação. No quarto, sentado sobre a maleta do resgate com a cabeça entre as pernas, o sequestrador tremia diante das muitas armas apontadas para ele. Na cozinha Thales abriu um velho freezer e encontrou meia dúzia de corações humanos congelados. Seria um deles de Jonas Arco?

30 Sofrida indecisão

No começo da tarde o delegado Thales Duran veio ao teatro não apenas para solidarizar-se, mas também para tentar esclarecer muitas dúvidas que lhe povoavam a cabeça. Quando entrou os atores estavam reunidos ao redor de Navona, que mal podia abrir os olhos inchados de tanto chorar:

- Chegue-se, Thales.

- Não estou atrapalhando?

- Pelo contrário. Você pode me ajudar a responder às perguntas do grupo.

Sem mesmo esperar que o delegado se acomodasse, Lars Borges perguntou diretamente:

- O senhor já confirmou se era mesmo o Jonas que foi... comido pelo cachorro?

- Não temos nenhuma forma de saber enquanto o assassino não falar. E como o Jonas não tem família ou parentes conhecidos, não há com o quê comparar o DNA dos pedaços encontrados. O criminoso não disse uma palavra desde que o encontramos. É um elemento sinistro, frio, perigoso.

- Pela linguagem que usava, não era um ignorante qualquer, parecia instruído – interveio Navona.

- É possível que seja estudado; mas muito sanguinário. A contar pelos corações no freezer ele matou no mínimo seis pessoas. Assassinos em série quase sempre têm um estilo de ação que se repete. Se nos casos anteriores ele matou as vítimas e arrancou os corações, a probabilidade maior é que tenha feito o mesmo com o Jonas. Pela maneira como falava com Navona ao telefone parecia ser um cara muito esperto, inteligente...

- Nem tanto! – rebateu Navona. – Se fosse mesmo inteligente não teria levado a maleta com o transmissor.

- Talvez ele seja inexperiente em sequestros, mas não em crimes. Hoje à tarde volto a interrogá-lo; vou pressionar até arrancar, quem sabe, uma confissão. E aproveito a ocasião para fazer a vocês um convite desagradável: identificar os pedaços de corpos que encontramos na casa do sequestrador. Vocês devem ter visto muitas vezes o Jonas nu, talvez consigam reconhecer alguma parte.

A náusea que a simples imaginação de uma cena de identificação no necrotério provocou nos atores fez com que logo começassem a pensar numa desculpa para escapar da macabra incumbência.

- Amanhã, a qualquer hora que queiram ir ao IML serão bem-vindos.

- E a estreia? Devemos avisar a imprensa?

O silêncio dominou o teatro outra vez. Navona levantou a cabeça, farejou o ar em busca de inspiração. Todos esperavam sua resposta com muita ansiedade, pois naquele instante a vida do grupo estava em jogo. Mas o diretor respondeu com outra pergunta:

- Delegado Thales, o senhor já comunicou os fatos à imprensa?

- Não. Achamos melhor esperar até que se termine de analisar cada pedaço que foi encontrado, mesmo os menores que estavam na barriga do cachorro. A verdade é que não podemos afirmar que os pedaços eram do Jonas. Nessa altura a imprensa não ajuda em nada.

- Concordo inteiramente, nada de imprensa! Nem sobre a possível morte do Jonas nem sobre a estreia da peça.

31 Suicídio

Noutra parte da cidade um forte trovão balançou os alicerces da realidade. Goethe se afastou da janela assustado pelos raios que iluminavam a sala toda, pressentindo a tragédia que estava por se abater sobre aquela casa. Viu Doro engolir uma enorme quantidade de comprimidos, deitar-se sobre o tapete com os braços abertos e fechar os olhos para observar a morte por dentro. Solidário, o gato foi aninhar-se sobre o peito do companheiro amado.

Em sua casa a doutora Amélia tinha ido ao banheiro, ansiosa para fazer o teste que confirmaria suas suspeitas – o resultado foi positivo. Sem pestanejar partiu ao encontro do pai da criança.

A campainha tocou várias vezes, ninguém respondeu. Amélia, que vinha trazer uma surpreendente notícia, ensopada pela chuva que despencava lá fora, levou a mão à maçaneta e descobriu que a porta estava destrancada. Entrou.

Mesmo muito abalada com a cena que encontrou, a doutora foi eficaz. Conseguiu fazer Doro ingerir um copo de água morna com sal que o fez vomitar. Porém isso talvez não fosse suficiente para livrá-lo da morte. Em meio a muita agonia, ele recobrou os sentidos e voltou a falar gaguejante:

- Quando Kaspar apareceu eu estava num beco sem saída, a vida... Pra quê? Ele me devolveu a vontade de... seguir, a esperança de descobrir algum... grande mistério que traria um novo sentido à existência... Me fez descobrir um novo tipo de amor. Um amor paternal que faz a vida parecer contínua. Agora voltei à

estaca zero. A pintura, o sexo, as drogas, não me satisfazem. Por que você não me deixa morrer?

Foi um desses momentos em que a vida parece um sonho tão efêmero que pode se acabar num simples piscar de olhos. Então, entre lágrimas, Amélia levou as mãos ao ventre e disse:

- Eu trago dentro de mim uma razão. Você partiria, abandonando nesse mundo cruel seu filho verdadeiro que vai nascer?

As palavras penetraram no cérebro de Doro como um bisturi, abrindo as portas para um poder oculto capaz de transformar veneno em energia vital, um milagre químico. Levantou-se chorando, abraçou Amélia, o ventre salvador.

32 Interrogatório final

A sala de interrogatórios era grande, repleta de instrumentos de tortura fora de uso que permaneciam ali só para assustar os interrogados.

- Tá vendo isso aqui, rapazinho? Especial pra capar machinhos como você – ameaçou o delegado Duran. – É a sua última chance. Se não falar comigo agora vou chamar o pessoal que trabalha com esses instrumentos... Se gosta de sofrer, continue mudo – e ou a mão pelos aparatos com velhas manchas de suor e sangue de muitos prisioneiros ali outrora torturados.

O sequestrador parecia não ouvir. Embora calado, as expressões de seu rosto eram incomuns e mudavam constantemente como se expressassem uma discussão interna. Finalmente decidiu falar:

- O que o senhor quer saber, delegado?

- Foi você quem matou aquelas pessoas?

- Apenas seis. Não viu os corações?

- Posso saber por quê? Qual o motivo?

- O cachorro tinha fome. E o que ele mais gostava de comer era carne humana.

- Você está dizendo que matava para alimentar o cão?

- Não só. Matar pessoas é reconfortante – revelou o assassino com um sorriso curto. – A humanidade é a pior praga do planeta.

- Por que guardava os corações?

- Eram meus troféus! Além disso, corações humanos são venenosos. Eu não queria que o meu cachorro se intoxicasse.

- Conhecia as vítimas?

- Não.

- Costumava sequestrá-las?

- Não.

- Então por que sequestrou Jonas Arco?

- Sequestrei?

Pausa.

- Também enganei você, não é, delegado?

- Enganou?

- Li a notícia do desaparecimento do ator no jornal, quis aproveitar a chance. Achei que podia dar certo...

- Inventou um falso sequestro?

- Não foi uma boa ideia, chefe? Eu precisava de dinheiro.

- Quer dizer que você não matou o ator? – entusiasmou-se o delegado.

- Claro que não! Agora, se o cachorro estivesse com fome e eu cruzasse o tal ator...

- Então você não tem nada a ver com o desaparecimento dele?

- Já disse que não.

Thales respirou aliviado como se uma enorme cruz fosse retirada de suas costas. Queria imediatamente dar a notícia a Navona mas teve antes que concluir o interrogatório:

- Então, você gosta de matar? – perguntou encarando o assassino de frente.

O rapaz relaxou o corpo e armou-se com uma aura de triunfo. Levantou-se para falar, assumindo uma postura professoral:

- Não basta a confissão, não é, delegado? Os humanos são animais muito vorazes... Vou ter que encarar uma aula de moral burguesa? Quer conhecer minha mente doentia, não é? Está bem... Você acha que é cruel matar uma pessoa para alimentar um cão, mas considera normal matar uma vaca, retalhar seu corpo em bifes e depois devorar o animal.

- Aí concordo com você – afirmou o delegado. – Mas isso não me dá o direito de sair matando pessoas para alimentar um cão.

- Depende do cão. Ele era meu único amigo na Terra. Você é cruel, matou meu único amigo a sangue frio.

- Não tive escolha. Se não atirasse ele engoliria a minha mão – tentou justificarse Thales.

Houve um momento de silêncio; os dois se olhavam buscando entendimento. O assassino voltou a falar como se desse uma aula.

- As pessoas nem ao menos se dão conta de que mastigam milhões de seres assassinados diariamente. A humanidade caminha sobre um lamaçal de cadáveres! Cadáveres por baixo de nossos pés, cadáveres por detrás dos nossos pensamentos. Daqui a algumas décadas, se a civilização ainda existir, talvez prendam pessoas por comer animais. Quase cem por cento dos habitantes deste planeta não am de robôs defeituosos, mal configurados, que só conseguem repetir aquilo que lhes foi programado...

O discurso pleno de revolta mas bastante lúcido continuou. Thales deixou-o falando sozinho, precisava dar a boa nova ao pessoal do teatro.

A notícia de que Jonas não tinha sido sequestrado e que talvez não estivesse morto causou grande euforia em todo o grupo teatral, sem falar no povo da Al Terna, em Doro e principalmente em Navona, que correu até a delegacia para se encontrar com o delegado Thales Duran.

- Também fiquei muito contente. De tanto ver a aflição de vocês acho que também me afeiçoei ao Jonas Arco, mesmo sem conhecê-lo – confessou Thales oferecendo uma cadeira ao diretor.

- E agora? Quais serão os próximos os, delegado?

- O primeiro o é você me contar a verdade.

- Que verdade?

- Quero saber tudo sobre os seus métodos de trabalho com os atores. E tudo o que você sabe sobre o sumiço do Jonas e andou me escondendo.

Encurralado, Navona percebeu que estava diante de alguém disposto a lhe arrancar até mesmo as intuições. Assim, mesmo sem a certeza de que suas teorias e experimentos teatrais tinham realmente conexão com o desaparecimento, resolveu se abrir e expor suas conjeturas.

- Acredito que o ator deva ser possuído pelo personagem, acreditar na realidade da cena, o que torna sua atuação mais espontânea e natural. Para tanto usamos técnicas de meditação, laboratórios de indução imaginativa, improvisações, fricções gurdjieffianas e outros procedimentos.

- Seu assistente, Lars, comentou ligeiramente algo a respeito. Mas você acredita mesmo que uma pessoa possa ser dominada por um personagem?

- É o que acontece na realidade. Um profissional de medicina é tomado pelo personagem Doutor e age automaticamente segundo as indicações do Conselho de Medicina, que no caso seria o diretor do espetáculo. O doutor é apenas um personagem que está no comando. Você, por exemplo, vive quase o tempo todo representando o papel de delegado, mas quando chega em casa...

- Mas isso é diferente. Eu desempenho um papel social real.

- A realidade... O que para alguém é real para outro é fantasia.

- Está bem, Navona. Digamos que seja possível. Isso já aconteceu antes com outro ator?

- No palco eu já vi muitos atores possuídos, mas fora dele, nas ruas, a possessão dura poucas horas. Claro que há muitos loucos soltos por aí possuídos por Napoleão, Jesus Cristo ou outro personagem qualquer. O Jonas me contou que um dia teve uma experiência que o deixou muito assustado. Era noite, ele estava na cama tentando dormir, naquele estado entre sonho e realidade, quando saiu do corpo e ficou flutuando no espaço sobre a cama. Ele podia ver o próprio corpo dormindo lá embaixo. Como o quarto estava na penumbra, ele tentou alcançar o interruptor para acender a lâmpada e se livrar daquilo que achava que fosse um sonho. Moveu o interruptor para baixo e para cima e nada de a lâmpada acender. De repente ouviu uma brecada de carro muito barulhenta na rua e então viu-se jogado de volta ao corpo. Levantou às pressas, acendeu as luzes e tudo voltou ao normal.

- Sabe que também tive uma experiência parecida com essa? – interveio Thales interessado pelo assunto.

- Como foi? – instigou Navona.

- Eu era criança, uns 10 ou 12 anos. Estava dormindo quando ouvi um barulho na sala. Levantei para averiguar o que era e encontrei meu pai caído no chão. Tinha chegado bêbado em casa e tropeçado no tapete. Tentei levantá-lo mas percebi que ele não se movia, como se as minhas mãos não o tocassem de fato. Logo apareceu a minha mãe, que nem notou a minha presença e começou a

tratar dele. De repente ela veio na minha direção, sem me ver, e eu não tive tempo de me desviar. Quando ela me atravessou despertei na cama. Assustado, levantei e fui ver o que acontecia. Meu pai estava deitado no tapete e minha mãe jogando água no rosto dele, tentando despertá-lo.

- Uma experiência fantástica! – comentou Navona.

- Mais tarde contei a outras pessoas o ocorrido e me contentei com a explicação que me ofereceram.

- E qual foi a explicação?

- Que eu estava dormindo, despertei com o barulho da queda do meu pai na sala e imaginei toda a sequência posterior, já que não era a primeira vez que ele chegava naquele estado. Parece uma explicação lógica, não acha?

- Não sou irador da lógica – contestou Navona. – Depois da experiência do Jonas fomos pesquisar a respeito. Os místicos chamam esse acontecimento de viagem astral, mas há muita especulação doentia a esse respeito. Pesquisas indicaram que nos Estados Unidos uma em cada quatro pessoas já viveu pelo menos um evento desses mas quase nunca levou a coisa adiante; por medo, como foi no seu caso. Com o Jonas a coisa é diferente, ele já saiu do corpo muitas vezes – voluntariamente.

- Não diga!

- Acredite se quiser. É a mais pura verdade.

- Espera um pouco. Você está querendo me dizer que o Jonas abandonou o corpo e o personagem Kaspar o ocupou?

- Abandonou, não. Cedeu espaço. É o que eu acho ser possível.

- Mesmo que fosse verdade, por que ele permitiria que o personagem o usasse durante tanto tempo, principalmente sabendo que tem uma estreia marcada pra amanhã?

- Isso eu não sei. Talvez ele esteja com dificuldade de recuperar o corpo.

- Isso é demais. Não posso aceitar essa explicação. Se ainda você me dissesse que um espírito o tomou, como vemos acontecer em sessões espíritas, mesmo sem acreditar em espíritos eu poderia atribuir a minha desconfiança à minha espiritualidade pouco desenvolvida e encarar essa possibilidade; mas ter o corpo roubado por um personagem...

- Existe também essa perspectiva espiritual. Kaspar Ha foi uma pessoa que existiu de verdade. Seu espírito pode estar vagando por aí e ter sido atraído pela peça teatral que estamos fazendo sobre a sua vida. Embora eu acredite mais na hipótese do personagem não descarto essa alternativa.

- O Lars comentou sobre uma técnica baseada na física quântica...

- Ele não sabe nada a respeito – cortou Navona.

- E você sabe?

- É algo experimental, nada comprovado. Não quero falar sobre isso.

- Está bem. E agora, o que vamos fazer? – ruminou Thales desanimado, sentindo-se incompetente para continuar a conversa e também as investigações.

- Voltemos aos jornais e emissoras. Alguém tem de achar Jonas Arco e trazê-lo de volta.

33 Mar

Amanhecia no horizonte do mar. Francisco dormia com a cara enterrada na areia. Kaspar abriu os olhos, atraído pelo rumor das ondas que dominavam seus sonhos. Sentiu a areia macia e fresca. Levantou-se. A luz frontal do Sol nascente obrigou-o a caminhar às cegas até que molhou os pés. Finalmente entrou no mar, o infinito som. Sem oferecer resistência deixou-se tragar pelas ondas. Tombou ainda no raso e rolou para dentro.

Quando a areia assentou, a água tornou-se quase cristalina. Kaspar viu conchas coloridas, um cardume de peixes listrados ziguezagueando ao seu redor como uma comitiva de recepção. A alegria que sentiu possuía uma qualidade emotiva só atingível por grandes atores.

Entregar-se ao mar, fundir-se com o todo, retornar à origem: a meta final. Deixou o corpo pousar nas areias do fundo sem se preocupar com a ausência de ar. Fosse ele um personagem histórico ou teatral, um espírito aventureiro num corpo alheio, um arquétipo do inconsciente coletivo, uma projeção mental ou holográfica, uma subpersonalidade doentia, uma figura mitológica, o elo perdido ou até mesmo uma criatura que havia liberado todos os instintos, Kaspar parecia dominá-los todos, menos aquele que obriga os corpos a viver a todo custo, o que preserva os seres vivos. O organismo precisava respirar.

No seio da unidade, deleitado pelo aconchego do reino de Netuno, inteiramente entregue às forças primordiais, ele nem pensava em oxigênio. O corpo, porém, reunindo todas as suas forças, venceu a batalha. E bruscamente voltou à superfície.

Um dos filhos dos caiçaras armou a maior gritaria quando viu alguém se debatendo entre as ondas, exatamente como na pintura de Doro. Junto com Francisco vários homens entraram no mar para o salvamento de Kaspar, que parecia não ter ado aflição alguma.

Embora feliz com este desfecho, Francisco não conseguiu vencer o pânico que o dominava desde que viu Kaspar se agitando na água. Percebeu que, apesar do seu apego, não tinha condições de mantê-lo a salvo consigo. Resolveu devolvêlo ao teatro.

34 Estreia

Sexta-feira, dia de estreia. Os melhores lugares da plateia encontravam-se naturalmente reservados aos amigos. Inebriados pelo ambiente teatral até então desconhecido, na primeira fila estavam os meninos Carlos e Damiano junto com Eurico e as outras crianças da comunidade. Logo atrás Alaor, Lia, Ludmila e muitos outros moradores da Al Terna. E também Doro e Amélia, Cassiano e Aldo, Thales e Gladys.

As peripécias de Jonas e as singularidades do evento garantiram casa lotada e atraíram um número recorde de jornalistas, críticos e profissionais de arte.

No palco, protegidos pelas cortinas de veludo, os atores terminaram o ritual preparatório já suando. Formaram um círculo de mãos dadas, numa breve prece sem palavras. Depois abraços emocionados e votos de boa sorte.

Jonas Arco ainda agia como Kaspar: calado, inocente.

Logo depois, da janela da cabine de luz no fundo da plateia, molhado de suor apesar da ventilação ligada, Navona podia ver os últimos convidados se acomodando. Soou o terceiro sinal. Gradualmente o teatro mergulhou na escuridão enquanto se ouvia o leve ranger das cortinas. O diretor gostava da sensação de pilotar aquela barca de fantasia chamada teatro. Da ponte de comando ele mesmo regia as luzes de suas obras – que quase sempre começavam com fogo ou, como esta, com um tênue azul evocando a alvorada.

Subterrâneo de um mosteiro medieval. Finas frestas, rachaduras minúsculas no espesso paredão permitem que a luz do dia penetre no ambiente em tênues fachos, revelando um jovem adolescente a dormir num catre tosco.

Ele desperta lento. Como um felino se espreguiça e abre os olhos, pupilas dilatadas. Boceja longamente. De si tem apenas a noção da pele, divisória que delimita uma área interior que virá, mais tarde, a chamar de corpo.

O olhar é o de quem não pensa nem conhece palavras. Sua mente livre de ideias acompanha o foco de atenção do olhar, um ponto qualquer daquele espaço que ele percorre palmo a palmo todos os dias.

Sons matinais. O jovem sente ondas sonoras tocando-lhe o corpo. O canto do galo infla seu peito, o piado do gavião peregrino lhe arrepia a pele, as seis badaladas de um sino ardem em seus indefensáveis tímpanos e despertam uma angústia antiga. Por fim o canto de um coro religioso vindo de cima, da nave do mosteiro, o relaxa. Tudo continua igual como sempre.

Um jarro d’água e uma travessa com pães atraem seu olfato. Bebe guloso, a água escorre pelo queixo, depois mastiga um naco de pão. Ao lado, um cavalinho de madeira empresta um toque infantil à sombria cena.

Está nu, preso por um cinturão de couro ao redor do ventre, ligado a uma corrente de ferro cujo fim se perde na escuridão do labirinto de colunas do porão. Outra vez se espreguiça antes de lançar-se à única aventura que conhece: percorrer o espaço através das colunas até o limite que a corrente lhe permite alcançar. Cumpre sempre a mesma trajetória, desprovida de qualquer sentido aparente, sem jamais erguer-se como um humano.

Balançar o cavalinho como um autista, de maneira monótona e repetitiva, ocupa a maior parte de sua ação diária. Mover o brinquedo o faz sentir-se destacado do resto do ambiente, um indivíduo ativo.

A noite chega, o jovem se recosta sonolento. Não consegue dormir de imediato como de costume, pois estranhas impressões lhe invadem o cérebro. Intuição? Nesta noite seu destino mudará para sempre.

No limite entre sonho e realidade ouve um ruído inesperado: os. Subitamente desperta. Vê a única porta do lugar se abrir e criar um retângulo luminoso que invade o porão. A luz é pouca, suficiente porém para cegar sua sensível retina por alguns segundos. Defende-se tapando o rosto mas logo arrisca um olhar por entre os dedos.

Na porta aberta um monge, figura que ele jamais vira, traz um candelabro aceso. O tempo e a respiração travam, o coração dispara.

O monge entra, fecha a porta atrás de si, dá uma olhada ao redor, coloca o candelabro no chão. Diante do fogo a curiosidade do jovem aumenta e o faz, receoso, aproximar-se e tocar a chama da vela. Queima-se. Dor. Salta para trás chacoalhando os dedos. O monge o alcança e pousa a mão sobre sua cabeça tão suavemente que ele se detém. Parece reconhecer aquele toque carinhoso, familiar. Aquieta-se.

Então o monge se manifesta:

- Hoje você pode ver meu rosto, pode ouvir minha voz. Deve estar muito assustado, meu pobre menino!

O susto é de fato grande. O jovem emite um som desafinado de medo, fecha os olhos, esfrega as pálpebras tentando apagar aquela visão incompreensível. Pego de surpresa, não esperava que aquele vulto enorme fosse soltar ondas pela boca que abalariam seus tímpanos. O excesso de informações ultraa seu limite mental, ele desmaia.

O monge toma-o no colo. Observa sua fronte salpicada de gotículas de suor, corre a mão pelo corpo liso querendo reter para sempre aquele prazer tantas vezes degustado na calada das noites. Sabe que essa é a última chance de irar tal obra: a pele clara como mármore pela ausência de sol deixa ver uma trama de veias azuis, o que dá ao corpo um tom lilás; os cabelos descem espiralados até os ombros, desgrenhados; os lábios, avermelhados como tomates maduros.

O homem tira uma chave do bolso e abre o cadeado que prende o cinto. Acaricia os calos que o couro produziu na cintura do cativo ao longo dos anos como se pudesse curá-los num toque de amor.

Quando volta a si, o jovem abre os olhos devagar, salientes como os de um peixe. Nos lábios do monge brota um sorriso e ele volta a falar:

- Criança, minha criança!

Num salto o adolescente foge novamente até onde a corda outrora lhe permitia avançar, estanca pelo puro vício que não o deixa perceber que já está livre e

poderia ir além. O monge busca controlar-se falando baixo, sussurrando:

- Perdão... Perdão! Devia ter sido mais cuidadoso, minhas emoções estão desencontradas, meu amor! Agora já posso me comunicar, mesmo que você não consiga entender palavra alguma. Não podia deixar que aprendesse a falar, nem que viesse a me reconhecer. Um dia você entenderá por quê. Era eu quem trazia água e comida todas as noites enquanto você dormia. Era eu quem penteava seus cabelos, limpava seu corpo e velava seus sonhos, sempre em silêncio. Seria muito perigoso se você aprendesse a falar... Kaspar, este é o seu nome, Kaspar. Agora terá que aprendê-lo! Vejamos: Kas-par, Kaspar.

Acalmado pelo tom meigo da voz do monge, Kaspar permite que ele se aproxime mais. Como um espelho, procura imitar os movimentos que percebe nos lábios, na boca e na garganta do monge. Começa então a emitir alguns grunhidos.

Com uma paciência monástica o homem repete o nome tantas vezes até finalmente conseguir que o rapaz o diga, quase com precisão:

- Kas-parr, Kash-par...

O aprendizado segue através da noite. O monge endireita-lhe a coluna, mostralhe como andar ereto e ultraar o espaço que a corrente antes delimitava, fazendo-o perceber que está solto.

- Que maravilha! Nosso príncipe herdeiro manteve a inteligência, apesar de tudo – exclama o homem aliviado.

Apesar da satisfação de ver o jovem reagir muito bem a qualquer ensinamento, o monge não consegue disfarçar seu sofrimento: aquela seria uma despedida. Kaspar, inocente e fascinado, anima-se mais a cada pequeno avanço, a cada pequena coisa que consegue aprender.

- Kaspar, chegou a hora. Você está pronto para cair no mundo dos homens?

- Homes – tenta Kaspar repetir a última palavra.

Uma revoada de pássaros saúda a alvorada. O monge deixa o mosteiro conduzindo Kaspar pela mão.

O espetáculo fluía vigorosamente, como um rio caudaloso que busca o mar. Jonas estava soberbo. As experiências que tivera na última semana acrescentaram peso e dramaticidade à sua ação. Navona chegou inclusive a atrasar alguns movimentos de luz, fascinado pelo seu desempenho.

Para que não corresse o risco de ser preso, acomodaram Francisco nos bastidores. Dali ele tinha uma visão lateral da peça e também podia vigiar na plateia o delegado Thales ao lado da magnífica Gladys.

Durante o espetáculo Francisco descobriu que todas as frases que de vez em quando Kaspar dizia nada mais eram que falas do personagem, proferidas na prisão e em outras situações de aperto: “Quero voltar para o porão. Aqui tudo é mau... O melhor lugar desse mundo é minha cama... Minha chegada neste mundo foi uma queda muito dura... Quero ser um cavalo que voa para um combate sangrento!”

Num dado momento, Eurico, o jovem líder da Al Terna, viu algo surpreendente no espaço cênico. Imediatamente cutucou a menina ao seu lado, dizendo:

- Tá vendo um outro Kaspar ali no fundo do palco?

- Não estou vendo nada. Ficou louco?

Na verdade, cada espectador registrava as cenas a seu modo. A médium Ludmila enxergava o espírito de Kaspar Ha dominando o corpo de Jonas, temporariamente trancafiado nos porões do inconsciente. Amélia via uma das subpersonalidades do ator em ação. Para Doro era como presenciar uma manifestação extraterrestre, algo impalpável.

Na cena final, apunhalado no peito, Kaspar Ha é assassinado. As cortinas descem enquanto um foco de luz realça seu corpo inerte.

Ao se alinhar para receber os aplausos, ainda com as cortinas fechadas, os atores perceberam que Jonas não se movia. Lars Borges tomou a iniciativa de reanimálo; nada. Ele conservava a expressão da última cena... Teria morrido?

Apavorados, foram buscar Navona. Chegando apressado ao palco ele chamou:

- Acorda, Jonas!

No mesmo instante Jonas Arco abriu os olhos. Ergueu-se meio tonto mas com um sorriso contagiante.

Depois de receber centenas de congratulações de amigos e iradores, tudo o que Jonas e Navona queriam era escapar de qualquer festividade e encontrar um lugar onde pudessem conversar tranquilos sobre toda aquela aventura. Sorrateiramente iam saindo pela porta do fundo do teatro quando deram de cara com Gladys e Thales Duran.

- Fugindo? – brincou Thales.

- Estamos sim.

- Meus parabéns! Boa peça.

Mas o diretor nem prestou atenção ao elogio; ficou encantado com a beleza da mulher que acompanhava o delegado, que o fitava como se visse um deus.

- Quem é esta pessoa maravilhosa?

- Esta é Gladys, uma... minha mulher – respondeu grosso o delegado, enciumado com o modo inteiramente desavergonhado com que o diretor media sua fêmea.

- Muito encantado! – explicitou Navona; e deu nela um abraço caloroso.

- Também estou muito... encantada! – respondeu Gladys corando instantaneamente.

- Já fez teatro? – quis saber o diretor.

- Faço o papel de psiquiatra num salão de beleza. Sou cabeleireira – ela confessou-lhe ao ouvido, tocando-o com os lábios.

Surpreso com a iniciativa da jovem, Navona se entusiasmou:

- Ótimo! Cabeleireiras são grandes artistas. Gostaria de fazer algum papel no palco? Não sei se será uma boa atriz, mas sua imagem conta muito.

- Sempre sonhei em ser atriz.

- Pois então venha fazer um teste, quem sabe achamos um lugar pra você em nosso grupo. Meu telefone...

Thales puxou a mulher para trás e esbravejou:

- Gladys, entra no carro agora! E vocês dois também. Vamos já pra delegacia.

- Delegacia? Podemos saber por quê?

- Por quê? Ora, vocês não acham que ainda me devem explicações, a mim e ao público em geral? Quero saber o que aconteceu realmente, quero saber o que andou fazendo, senhor Jonas. Se tornou puro instinto? Estava tomado pelo personagem? É um cavalo de Baco? E mais: também vai me contar direitinho quem liderou a rebelião que arrasou a minha delegacia, quem orquestrou aquilo tudo, onde anda aquele cara que te puxou pra fora, onde está o resto da quadrilha...

Sobre o autor

Marinho Piacentini dedicou-se, sobretudo, ao teatro e a literatura. Escreveu e dirigiu 13 peças teatrais e como diretor teatral, recebeu premiações no Brasil e no exterior. Criou inúmeros contos postados em marinhopiacentini.blog.br e 5 romances, a saber: “Fundo do Céu”, “Doce Alquimia”, “Das Mãos do Imperador”, “Fantoches” e “Cavalo de Baco”, todos já editados.

Sumário

1 Prólogo

2 Doro

3 Amélia

4 Conjeturas

5 Al Terna

6 Zeus

7 Diagnósticos

8 Cova do lobo

9 Falcatruas

10 Tantra

11 Kaspar Ha

12 Regressão

13 Francisco

14 Dia das Crianças

15 Super-herói

16 Thales Duran

17 A busca

18 Baixaria

19 Esconderijo

20 Teatro

21 Assédio

22 Tentação

23 Praia

24 O sequestrador

25 Conselho de guerra

26 Personalidades

27 Encontro terapêutico

28 Espelhos

29 O resgate

30 Sofrida indecisão

31 Suicídio

32 Interrogatório final

33 Mar

34 Estreia

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