POEMAS CECÍLIA MEIRELES
A chuva chove... A chuva chove mansamente...como um sono Que tranqüilize, pacifique, resserene... A chuva chove mansamente...Que abandono! A chuva é a música de um poema de Verlaine... E vem-me o sonho de uma véspera solene, Em certo paço, já sem data e já sem dono... Véspera triste como a noite, que envenene A alma, evocando coisas líricas de outono... ...Num velho paço, muito longe, em terra estranha, Com muita névoa pelos ombros da montanha... Paços de imensos corredores espectrais, Onde murmurem, velhos órgãos, árias mortas, Enquanto o vento, estrepitando pelas portas, Revira in-fólios, cancioneiros e missais... Canção Nunca eu tivera querido Dizer palavra tão louca Bateu-me o vento na boca, E depois no teu ouvido. Levou somente a palavra, Deixou ficar o sentido. O sentido está guardado No rosto com que te miro, Neste perdido suspiro Que te segue alucinado, No meu sorriso suspenso Como um beijo malogrado. Nunca ninguém viu ninguém Que o amor pusesse tão triste. Essa tristeza não viste, E eu sei que ela se vê bem... Só se aquele mesmo vento Fechou teus olhos, também...
Canção No desequilíbrio dos mares as proas giram sozinhas... Numa das naves que afundaram é que certamente tu vinhas. Eu te esperei todos os séculos sem desespero e sem desgosto, e morri de infinitas mortes guardando sempre o mesmo rosto Quando as ondas te carregaram meu olhos, entre águas e areias, cegaram como os das estátuas, a tudo quanto existe alheias. Minhas mãos pararam sobre o ar e endureceram junto ao vento, e perderam a cor que tinham e a lembrança do movimento. E o sorriso que eu te levava desprendeu-se e caiu de mim: e só talvez ele ainda viva dentro destas águas sem fim. Canção da tarde no campo Caminho do campo verde, Estrada depois de estrada. Cercas de flores, palmeiras, Serra azul, água calada. Eu ando sozinha No meio do vale Mas a tarde é minha.
Meus pés vão pisando a terra Que é a imagem da minha vida: Tão vazia, mas tão bela, Tão certa, mas tão perdida! Eu ando sozinha Por cima de pedras Mas a flor é minha. Os meus os no caminho São como os os da lua: Vou chegando, vais fugindo, Minha alma é sombra da tua. Eu ando sozinha Por dentro de bosques Mas a fonte é minha. De tanto olhar para longe, Não vejo o que a perto. Subo monte, desço monte, Meu peito é puro deserto. Eu ando sozinha, Ao longo da noite Mas a estrela é minha. Canção excêntrica Ando à procura de espaço para o desenho da vida. Em números me embaraço e perco sempre a medida. Se penso encontrar saída, em vez de abrir um como, projeto-me num abraço e gero uma despedida. Se volto sobre o meu o, é já distância perdida. Meu coração, coisa de aço começa a achar um cansaço esta procura de espaço para o desenho da vida. Já por exausta e descrida não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço, - do que faço, arrependida. Canção da alta noite Alta noite, lua quieta, muros frios, praia rasa. Andar, andar que um poeta não necessita de casa. Acaba-se a última porta. O resto é o chão do abandono. Um poeta, na noite morta, não necessita de sono. Andar... Perder o seu o na noite, também perdida. Um poeta, à mercê do espaço, nem necessita de vida. Andar... - enquanto consente Deus que seja a noite andada. Porque o poeta, indiferente, andar por andar - somente. Não necessita de nada. Lua Adversa Tenho fases, como a lua. Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. Fases que vão e que vêm, no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. E roda a melancolia seu interminável fuso! Não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua...) No dia de alguém ser meu não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia, o outro desapareceu... Epigrama nº 8
Encostei-me a ti, sabendo bem que eras somente onda. Sabendo bem que eras nuvem, depus a minha vida em ti. Como sabia bem tudo isso, e dei-me ao teu destino frágil, fiquei sem poder chorar, quando caí. Diálogo Minhas palavras são a metade de um diálogo obscuro continuando através de séculos impossíveis. Agora compreendo o sentido e a ressonância que também trazes de tão longe em tua voz. Nossas perguntas e resposta se reconhecem como os olhos dentro dos espelhos. Olhos que choraram. Conversamos dos dois extremos da noite, como de praias opostas. Mas com uma voz que não se importa... E um mar de estrelas se balança entre o meu pensamento e o teu. Mas um mar sem viagens. Fio No fio da respiração, rola a minha vida monótona, rola o peso do meu coração. Tu não vês o jogo perdendo-se como as palavras de uma canção. as longe, entre nuvens rápidas, com tantas estrelas na mão... -
Para que serve o fio trêmulo em que rola o meu coração?
Aceitação É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens e sentir ar as estrelas do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus os. É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas, que desejar que apareças, criando com teu simples gesto o sinal de uma eterna esperança
Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu. Desenrolei de dentro do tempo a minha canção: não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar. Desapego A vida vai depressa e devagar Mas a todo momento Penso que pode acabar. Porque o bem da vida seria ter Mesmo no sofrimento Gosto de prazer. Já nem tenho vontade de falar Senão com árvores, vento, Estrelas, e águas do mar. E isso pela certeza de saber Que nem ouvem meu lamento Nem me podem responder. Motivo Eu canto porque o instante existe E a minha vida está completa Não sou alegre nem sou triste: Sou poeta. Irmão das coisas fugidias, Não sinto gozo nem tormento Atravesso noites e dias No vento. Se desmorono ou se edifico, Se permaneço ou me desfaço, — não sei, não sei. Não sei se fico ou o. Sei que canto. E a canção é tudo
Tem sangue eterno e asa ritmada E um dia sei que estarei mudo: — mais nada. Timidez Basta-me um pequeno gesto, feito de longe e de leve, para que venhas comigo e eu para sempre te leve... — mas só esse eu não farei. Uma palavra caída das montanhas dos instantes desmancha todos os mares e une as terras mais distantes... — palavra que não direi. Para que tu me adivinhes, entre os ventos taciturnos, apago meus pensamentos, ponho vestidos noturnos, — que amargamente inventei. E, enquanto não me descobres, os mundos vão navegando nos ares certos do tempo, até não se sabe quando... — e um dia me acabarei. Reinvenção A vida só é possível reinventada. Anda o sol pelas campinas e eia a mão dourada pelas águas, pelas folhas... Ah! tudo bolhas que vêm de fundas piscinas de ilusionismo... – mais nada Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços, Projeto-me por espaços cheios da tua Figura Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura. Não te encontro, não te alcanço... Só – no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva,
Só – na treva fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Eclipse lunar Pois ali está, no meio da noite, a Lua. É mesmo um lago de prata, com vagas sombras cinzentas – sombras de árvores, de barcos, de aves aquáticas... O céu está muito límpido, e é puro o brilho das estrelas. Mas em breve se produzirá o eclipse.E, então, pouco a pouco, o luminoso contorno vai sendo perturbado pela escuridão. A Terra, esta nossa misteriosa morada, vai projetando sua forma naquele redondo espelho. Muito lentamente sobe a mancha negra sobre aquela cintilante claridade. É mesmo um dragão de trevas que vai calmamente bebendo aquela água tão clara; devorando, pétala por pétala, aquela flor tranqüila. E o globo da Lua, num dado momento, parece roxo, sangüíneo, como um vaso de sangue. Que singular metamorfose, e que triste símbolo! Ali vemos a Terra, melancolicamente reproduzida na apagada limpidez da Lua. Ali estamos, com estas lutas, estes males, ambições, cóleras, sangue. Ali estamos projetados! E poderíamos pensar, um momento, na sombra amarga que somos. Sombra imensa. Mancha sangüínea. (Por que insistimos em ser assim?) Ah! – mas o eclipse a. Recupera-se a Lua, mais brilhante do que nunca. Parece até purificada. (Brilharemos um dia também com o maior brilho? Perderemos para sempre este peso de treva?) Noções Entre mim e mim, há vastidões bastantes Para a navegação dos meus desejos afligidos. Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, Só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram. Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a. Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, E este abandono para além da felicidade e da beleza. Ó meu Deus, isto é a minha alma:
Qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário, Como o vento largo do oceano sobre a areia iva e inúmera... Meu Sonho Parei as águas do meu sonho para teu rosto se mirar. Mas só a sombra dos meus olhos ficou por cima, a procurar... Os pássaros da madrugada não têm coragem de cantar, vendo o meu sonho interminável e a esperança do meu olhar. Procurei-te em vão pela terra, perto do céu, por sobre o mar. Se não chegas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar ? Quando vierem fechar meus olhos, talvez não se deixem fechar. Talvez pensem que o tempo volta, e que vens, se o tempo voltar. Canção Não te fies do tempo nem da eternidade, que as nuvens me puxam pelos vestidos que os ventos me arrastam contra o meu desejo! Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo! Não demores tão longe, em lugar tão secreto, nácar de silêncio que o mar comprime, o lábio, limite do instante absoluto! Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã eu morro e não te escuto! Aparece-me agora, que ainda reconheço a anêmona aberta na tua face e em redor dos muros o vento inimigo... Apressa-te, amor, que amanhã eu morro, que amanhã eu morro e não te digo... Serenata " ... Permita que eu feche os meus olhos, pois é muito longe e tão tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te. Permite que agora emudeça: que me conforme em ser sozinha. Há uma doce luz no silencio, e a dor é de origem divina. Permite que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo ... " Sem título O meu amor não tem importância nenhuma. Não tem o peso nem de uma rosa de espuma! Desfolha-se por quem? Para quem se perfuma? O meu amor não tem importância nenhuma. Canteiros Quando penso em você fecho os olhos de saudade Tenho tido muita coisa, menos a felicidade Correm os meus dedos longos em versos tristes que invento Nem aquilo a que me entrego já me traz contentamento Pode ser até manhã, cedo claro feito dia mas nada do que me dizem me faz sentir alegria Eu só queria ter no mato um gosto de framboesa Para correr entre os canteiros e esconder minha tristeza Que eu ainda sou bem moço para tanta tristeza E deixemos de coisa, cuidemos da vida, Pois se não chega a morte ou coisa parecida E nos arrasta moço, sem ter visto a vida. Ou Isto Ou Aquilo Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo. Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo 4º Motivo Da Rosa (Cecília Meireles) Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Rosas verá, só de cinzas franzidas, mortas, intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim.