O BARROCO BRASILEIRO
Profª Vivian Trombini
Revisão: São três as condições para a existência de uma literatura nacional: a presença de escritores que produzam continuamente, a possibilidade de publicação e circulação das obras literárias e um público que leia regularmente as obras produzidas. Quando essas três condições são atendidas, começa a funcionar o que denominamos sistema literário. Essas condições ainda não eram atendidas durante o período colonial visto que o Brasil do século XVII ainda era um vasto território inexplorado. Apenas os centros urbanos mais importantes, como Salvador e Recife, apresentavam alguma organização. Por isso, os poucos escritores que existiam estavam separados por quilômetros de matas começando a ser exploradas. As obras que escreviam raramente eram publicadas, o que dificultava sua circulação. Em 1601 surgiu o poema épico Prosopopéia, escrito por Bento Teixeira. Esse texto costuma ser considerado o marco inicial da literatura barroca brasileira, embora não possua lá grandes qualidades literárias. Nesse momento, o Brasil era o grande celeiro da cana-de-açúcar. Os colonos portugueses que vinham para cá estavam interessados na exploração e no enriquecimento rápido. Poucos entre eles sabiam ler e escrever. Entretanto, aos poucos foi surgindo na colônia um grupo de pessoas cuja formação intelectual acontecia em Portugal – geralmente advogados, religiosos ou homens de letras, na maioria filhos de comerciantes ricos ou de fidalgos instalados no Brasil. Essa elite foi responsável pelo nascimento de uma literatura brasileira, inicialmente frágil, presa a modelos lusitanos e sem um público consumidor ativo e influente. A realidade brasileira era então muito diferente da portuguesa. Tratava-se de um centro de comércio, de exploração da cana-de-açúcar; de uma realidade de violência, em que se escravizava o negro e se perseguia o índio. Não se via aqui o refinamento da aristocracia européia, que, como público consumidor, apreciava e estimulava a boa arte. Apesar disso, os modelos literários portugueses chegaram ao Brasil, e o Barroco, cujas origens se confundem com as da nossa própria literatura, deu seus primeiros os. Não havia sentimento de grupo ou de coletividade: a literatura produzida em meio ao espírito de aventura e de ganância da mentalidade colonialista foi fruto de esforços individuais. Aqueles que escreviam encontraram na literatura um instrumento para criticar e combater essa mentalidade, para moralizar a população por meio de princípios de religião ou, ainda, para dar vazão a sentimentos pessoais profundos. O Barroco no Brasil ganhou impulso entre 1720 e 1750, quando foram fundadas várias academias literárias por todo o país. Nas artes plásticas, esse desenvolvimento só aconteceu no século XVIII, quando, em decorrência da descoberta do ouro em Minas Gerais, construíram-se igrejas de estilo barroco no país.
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Padre Antônio Vieira (1608-1697): Nasceu em Lisboa, mas ainda menino veio com os pais para a Bahia, onde estudou no colégio dos jesuítas. Ordenado em 1634, começou a carreira de pregador. No século XVII, em meio às disputas entre católicos e protestantes, o sermão, discurso religioso sobre alguma verdade da doutrina cristã, tornou-se uma importante arma para divulgar os valores da Igreja romana. Os sermões escritos pelo Padre Antonio Vieira ficaram famosos pela argumentação engenhosa e pela retórica perfeita. O domínio incomum das palavras garantiu ao jovem jesuíta entrada nas cortes mais importantes da Europa e influência junto ao rei de Portugal, Dom João VI. A defesa dos cristãos-novos, judeus convertidos ao catolicismo, fez com que Vieira fosse julgado e condenado pela Inquisição. Permaneceu preso por dois anos, impedido de pregar. Seu grande prestígio como orador acabou lhe garantindo o perdão do Papa. De volta ao Brasil, fez questão de editar todos os seus 207 sermões. Morreu aos 89 anos deixando um legado da arte de escrever aos seus contemporâneos.
Características: Se esse caráter magnífico do grande escritor que Vieira é fica logo evidente, para ler Vieira com criticidade, e com aquele olhar clínico que consegue identificar os recursos que esse artista usa, é preciso de um pouco de treino e o conhecimento dessas ferramentos do seu estilo. Os recursos estéticos e estilísticos usados por Vieira em seus sermões estão sempre a serviço do seu estilo conceptista (quevedista). O que Vieira quer, quando os usa, é buscar a clareza da idéia, mesmo quando seu pensamento chega quase a formar paradoxos. Conceptismo ou quevedismo - valorização do conteúdo/conceito, jogo de idéias através do raciocínio lógico. Há o uso da parábola com finalidade mística e religiosa. "Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos."
E qual a diferença entre estéticos e estilísticos? Os estéticos são os que buscam os efeitos de beleza do texto, são as figuras de linguagem e outros tipos de manipulação linguística. Os recursos estilísticos são elementos típicos da composição de um autor que não atingem, necessariamente, o efeito estético, mas que são tão presentes no conjunto da obra do indivíduo que, através deles, temos dica da autoria de determinado texto. Os principais recursos estéticos usados por Vieira são a comparação, a metáfora, a antítese e o trocadilho. Comparação e metáfora são figuras de linguagem muito confundidas pela maioria. Para saber quando é uma e quando é outra é só procurar palavras e expressões de teor comparativo. Se houverem termos que explicitam comparações (como, tal qual, tal como, assim como) comparação; se não, metáfora. Então, o que há de mais relevante nelas é lembrar que Vieira costuma usar elementos da natureza ou do cotidiano comum das pessoas na construção dessas imagens. Ele quer ser ível, quer ser compreendido por qualquer pessoa. Assim, as imagens comuns, a que qualquer homem, por mais humilde que seja sua condição social, são as que mais significado vão trazer para o seu público. Por isso o céu, o mar, os peixes, as árvores, o ato de semear, as abelhas, o ato de se olhar ao espelho são imagens usadas por Vieira: qualquer homem do século XVII vai compreendê-las e assimilá-las, compreendendo e assimilando, por extensão, o conteúdo de sua mensagem. Alegoria é um recurso estilístico em que se faz uma metáfora para ações e sentimentos humanos através de uma narrativa curta. As parábolas bíblicas são alegorias. Em todas elas o pregador conta uma história que representa um comportamento humano e depois avalia a história, mostrando o que significa cada um de seus símbolos. É exatamente isso que alegoria é: uma 2
narrativa metafórica (tem que ter a união de mais de um símbolo para se mostrar esse comportamento, como na alegoria do ver-se ao espelho = ver-se a si mesmo, do Sermão da Sexagésima), que tem sua simbologia explicada. Uma metáfora vem sozinha e não tem explicação no texto (senão acaba com a mágica da metáfora de nos deixar imaginar o que o autor quer dizer e o discurso torna-se pobre) Antítese é um contraste dos elementos opostos. Vieira gosta muito de unir a antítese, um recurso estético, à reiteração (ou repetição), um recurso estilístico. No caso da antítese, como a oposição é de atributos de seres diferentes, ou de um mesmo ser, mas que só existem nele em momentos diferentes, esse contraste de opostos da antítese é perfeitamente aceitável do ponto de vista lógico, racional. Racionalmente compreendemos que uma pessoa pode ser muito boa aluna de Matemática e péssima em Português; compreendemos que uma pessoa esteja triste pela manhã e feliz à tarde; ou que um atleta que ganha medalha de prata chora, enquanto o que ganha a medalha de ouro, ri. Racionalmente essas coisas são perfeitamente compreensíveis. Já o Paradoxo, que Vieira também usa, embora com bem menos frequência, é incompreensível do ponto de vista lógico, racional. Isso porque os elementos opostos convivem no mesmo ser, ao mesmo tempo. Uma sensação ser ao mesmo tempo azeda e doce, boa e ruim, alegre e triste racionalmente não são explicáveis. Emocionalmente nós compreendemos muito bem que o atleta de ouro chora copiosamente, feliz e triste, porque avalia as dificuldades e perdas no caminho e essas duas emoções se manifestam na mistura de reações que emocionam todos que estão perto. O trocadilho consiste num jogo com palavras que têm mesma forma (pelo menos mesma sonoridade), mas sentidos diferentes. Além do trocadilho, Vieira gosta também de demonstrar a sutil diferença que expressões sinônimas têm. Aqui a forma das palavras não é igual, mas se você achava que elas significam a mesma coisa, está redondamente enganado – pelo menos é o que ele vai acabar nos convencendo. Paço x o é um exemplo de trocadilho; semeador x o que semeia é esse segundo uso (que não tem nome) recorrente no estilo de Vieira. Além da alegoria, da reiteração e da diferenciação dos quase sinônimos há a pergunta retórica. A tal da pergunta retórica é uma forma de condução argumentativa de um texto de caráter dissertativo. Ela está presente não só nos sermões de Vieira, mas pode aparecer em qualquer texto de caráter opinativo e, principalmente, persuasivo. Quando faz uma pergunta retórica, o autor elabora um questionamento que ele mesmo responde no texto, como uma forma de conduzir o raciocínio e rebater possíveis contra-argumentos.
Montagem argumentativa de um sermão: Para persuadir sua platéia, Vieira combinava trechos marcados pela formalidade com outros dominados pela oralidade e pela descontração. Havia também uma preocupação em manter uma “amarração” constante entre a parte e o todo. Outra de suas marcas estilísticas foi o uso insistente do paralelismo (repetição de estruturas sintáticas). As metáforas e as analogias ajudavam os fiéis a compreender as agens mais obscuras da doutrina católica. Para demonstrar, por meio de exemplos, o ponto de vista que defendia, Vieira utilizou, com grande efeito, agens do Antigo e do Novo Testamento. Embora religioso, Vieira nunca restringiu sua atuação à pregação religiosa. Sempre pôs seus sermões a serviço das causas políticas que abraçava e defendia e, por isso, se indispôs com muita gente: com os pequenos comerciantes, com os colonos que escravizavam e até com a Inquisição. Valendo-se do púlpito, o grande padre pregou a índios, brancos e negros, a brasileiros, africanos e portugueses, a dominadores e dominados. Suas ideias políticas foram postas em prática por meio da catequese, da defesa do índio e do domínio português sobre a colônia por ocasião da invasão holandesa. O sermão barroco devia demonstrar uma posição moral por meio de uma imagem que, associada a um fato ou a uma citação da bíblia, pudesse ser um símbolo da posição a ser defendida. 3
Argumentos baseados na observação da realidade, em verdades históricas, em princípios éticos ou filosóficos deviam ser evitados. A agudeza e o engenho só se manifestavam caso o autor da argumentação fosse capaz de ilustrar por meio de imagens e metáforas o tema do sermão. Vieira era uma mestre nesse processo.
Os os da argumentação: A estrutura consagrada para os sermões no século XVII envolvia quatro os, em que se percebia a preocupação com as ideias que marcaram a corrente conceptista do Barroco.: Exórdio: o orador começa a expor o plano a que vai submeter-se as ideias que vai defender. Invocação: o orador pede auxílio divino para expor suas ideias. Confirmação: desenvolvimento e exposição do tema, realçado com alegorias, sentenças e exemplos. Peroração: conclusão; o orador, recapitulando tudo o que foi dito, termina com um desfecho vibrante para impressionar os fieis e estimulá-los a seguirem os ensinamentos bíblicos apresentados. O SERMÃO DA SEXAGÉSIMA No Sermão da sexagésima, pregado na Capela Real de Lisboa, em 1655, ele pretende responder a uma pergunta básica: por que não faz fruto a palavra de Deus? Com sua argumentação, o jesuíta tenta convencer os fiéis de que a culpa é dos pregadores, que, em lugar de desenvolverem uma argumentação consistente, preocupam-se em enfeitar a linguagem, tornando o texto incompreensível. No trecho a seguir, Vieira usa a imagem da árvore como símbolo do conceito que procura demonstrar: o sermão precisa desenvolver um único tema (uma só matéria), que deve estar em seu inicio e ao qual deve retornar o pregador ao concluir sua argumentação. [...] Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hãode nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há-de ser o sermão: há-de ter raízes fortes e sólidas, porque há-de ser fundado no Evangelho; há-de ter um tronco, porque há-de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão-de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos hão-de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão-de ser vestidos e ornados de palavras. Há-de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há-de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há-de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há-de ordenar o sermão. De maneira que há-de haver frutos, há-de haver flores, há-de haver varas, há-de haver folhas, há-de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, à que podemos chamar «árvore da vida», há-de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como hão-de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles. Sentenças: frases que contém um pensamento de ordem geral e de valor moral; provérbios, máximas. Maravalhas: aparas ou lascas de madeira: Verças: folhas de couve. Em sentido figurado: palavreado pobre de ideias, oco. Seminare semen: em latim, semear a semente.
Observe, no esquema a seguir, como funciona a metáfora da árvore para representar o sermão. 4
Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Considerado a maior das obras de Vieira, o Sermão da Sexagésima é uma verdadeira aula de como escrever para atingir os fiéis e conseguir sua conversão. É um texto basilar na literatura em língua portuguesa. Em O Sermão da Sexagésima, Vieira expôs o método que adotava nos seus sermões: 1. Definir a matéria. 2. Reparti-la. 3. Confirmá-la com a Escritura. 4. Confirmá-la com a razão. 5. Amplificá-la, dando exemplos e respondendo às objeções, aos "argumentos contrários". 6. Tirar uma conclusão e persuadir, exortar. Como todo sermão efetuado para um rito católico, o Sermão da Sexagésima parte do comentário da agem bíblica escolhida para o dia: a parábola do semeador, resumida na máxima Semen est verbum Dei (A semente é a palavra de Deus. Lucas 8, 11 ). A partir dela, Vieira começa a apresentar o assunto escolhido para a reflexão naquele dia: o papel do pregador na sociedade setecentista. Esta apresentação é feita em um longo exórdio — ou intróito, ou, ainda, introdução, 5
na qual, primeiro, Vieira destaca o início da parábola (Saiu o pregador a semear a palavra de Deus), ligando-o à realidade do momento, na qual muitos evangelistas não saem de suas pátrias para evangelizar os gentios e entre os que saem a evangelizar, muitos retornam à Europa por desistirem do trabalho diante das dificuldades. Essas dificuldades são o gancho para uma segunda reflexão, ainda introdutória, a respeito do trabalho do pregador: porque é que, mesmo havendo tantos evangelizadores espalhados pelo mundo, tão pouco efeito tem o trabalho por eles exercido? Com estas duas primeiras reflexões, Vieira apresenta a temática central do texto: o papel do pregador na evangelização do mundo. Encerra-se então o exórdio e tem-se início a confirmação (desenvolvimento argumentativo). Nela, primeiro o autor estabelece uma série de hipóteses, as quais vai descartando, com argumentos baseados em citações bíblicas. Com ele, Vieira assinala irrefutavalmente que sua tese (que é culpa do pregador a ineficácia de seu trabalho) é verdadeira. A partir de então, ele conduz sua plateia para que ela compreenda quais são os erros dos pregadores e como eles devem se portar para redimi-los. Esse elemento é de extrema importância no sermão, pois o grande objetivo deste texto é justamente conseguir a modificação do comportamento do ouvinte. De acordo com Vieira, o pregador exerce seu trabalho através de cinco atributos seus: “a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz“. Isto significa que o pregador exerce seu trabalho através do exemplo pessoal que ele é para seu público; através do conhecimento que tem do mundo e das leis divinas; dos sermões em si, em toda sua confecção, desde a escolha do assunto até a sua estruturação; do estilo que usa para confeccioná-los; e da maneira como se expressa oralmente no momento em que professa o sermão. Cada um destes elementos é examinado cuidadosamente pelo autor, que mantém o uso constante das citações, das perguntas retóricas e da reiteração em todo texto. Seguindo a mesma linha de raciocínio usada antes, Vieira então verifica cada um destes elementos, assinalando sua importância e descartando aquele que não é, efetivamente, o culpado pelo fracasso da evangelização. Assim, embora o pregador deva fazer da sua vida um exemplo para os fiéis, não é esse o fatal impedimento para a evangelização dos ouvintes, o que Vieira comprova com base num exemplo bíblico: Jonas, cuja vida desregrada não poderia servir de exemplo a nenhuma audiência, com um único sermão consegue evangelizar todo um reino gentio. Embora o estilo usado nos púlpitos da época seja condenável, por ser rebuscado e ininteligível (no que Vieira faz uma severa crítica aos autores cultistas), também não é ele a causa principal do fracasso, visto que há grande fundamento dos sermões destes pregadores nos grandes conhecedores em teologia — o que, a meu ver, é das minimizações feitas por Vieira, a menos eficiente de todas. Vieira ainda descarta a possibilidade da falta de domíno da matéria, isto é, da falta de domínio de como deve ser produzido um sermão, apesar de demarcar como deve ser um sermão e que são muitos os sermões que não seguem os procedimentos por ele apontados (neste trecho, a metalinguagem, ou seja, a reflexão sobre o ato de escrever ou discursar, alcança um elemento máximo na obra, pois o autor dedica-se a uma descrição minuciosa de como deve ser confeccionado o texto pelo sermonista). Também não é a falta de conhecimento empírico (vivenciado pessoalmente pelo pregador) a causa fatal para o problema levantado — embora a importância deste conhecimento seja ressaltada, Vieira afirma que São João Batista pregava aquilo que havia sido vivido pelo profeta Isaías, sem ter, ele mesmo, vivenciado aquelas experiências e que o mesmo ocorreu com outros grandes santos e pregadores. Por fim, a forma de expressão oral também não é considerada a causa maior da pouca frutificação do trabalho de evangelização da época. Vieira assinala que biblicamente havia dois estilos de expressão: um exaltado, pautado no brado, no grito, e outro contido, moderado, sendo ambos igualmente eficientes. Descartados os elementos levantados nas hipóteses (a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz), Vieira assinala agora a tese verdadeira: “as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus“. A sutil diferença entre os elementos palavras de Deus × a palavra de Deus é desenvolvida e a tese agora toda composta (A evangelização tem pouco fruto porque os pregadores não semeiam a palavra de Deus) é finalmente explicada: os evangelizadores têm usado a palavra de Deus de acordo com as conveniências humanas, e não no sentido “sentido em que Deus as disse“. Sendo assim e retomando-se a máxima de Lucas (A semente é a palavra de Deus) é impossível que se frutifique a fé cristã porque não é ela que está sendo lançada ao mundo. 6
Assumida plenamente a tese, Vieira inicia a peroração (conclusão) do texto. Ele critica ferozmente os pregadores que assim procedem, acusando-os de transformarem a igreja num teatro e o sermão numa comédia e de buscarem a fama e o prestígio do mundo. Em sua condenação, chega a comparar os evangelizadores a médicos: se os médicos não se preocupam se o paciente gosta ou não do remédio, conquanto esse remédio cure-lhe os males do corpo e o salve da doença, também assim deve agir o pregador, que é um médico de almas. Ele não deve se preocupar com as convenções políticas e sociais, mas sim com o seguir fielmente a doutrina tal qual ela é. Vieira arremata este raciocínio mencionando uma situação ocorrida em Portugal, quando da discussão a respeito de quem, entre dois grandes pregadores da época, seria o melhor. Sem reproduzir os nomes (provavelmente sabidos pela plateia) Vieira afirma que a questão, cujos votos estavam empatados, fora definida pela seguinte declaração de um dos debatedores de maior autoridade: “Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.“ Como declaração final, que deve ter arrepiado completamente os ouvintes da Capela Real de Lisboa de raiva ou de iração pela grande habilidade do sermonista, Vieira recomenda: Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.]
TEXTO PARA ANÁLISE: Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? -- A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? -- Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta: do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos
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corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? -- disse o mesmo Deus por Isaías. Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. É tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem. Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes. Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por conseqüência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? - Por culpa nossa. (VIEIRA, Pe. Antonio. Sermão da Sexagésima. in: Sermões - Problemas sociais e políticos do Brasil. São Paulo: Cultrix)
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1)
Logo no 1º parágrafo do texto, Vieira apresenta a na forma de pergunta o tema a ser desenvolvido: Por que a palavra de Deus faz pouco fruto? Como é comum em sermões, o orador faz várias perguntas e ele mesmo responde, como meio de conduzir o raciocínio de seu ouvinte. Que possíveis causas Vieira atribui ao pouco fruto da palavra de Deus, isto é, ao fato de a pregação religiosa não fazer efeito nos ouvintes?
2)
Vieira costuma desenvolver seus sermões por meio de raciocínios complexos e lógicos, em que faz uso frequente de metáforas, comparações e alegorias. Nesse sermão, por exemplo, ele constrói correspondências alegóricas, que podem ser assim esquematizadas:
Sempre é necessário: Para converter uma alma
pregador – com a doutrina, persuadindo ouvinte – com o entendimento, percebendo Deus – com a graça, iluminando
Para um homem se ver
olhos espelho luz
Releia o primeiro parágrafo do texto e estabeleça as relações: A quem correspondem os elementos olhos, espelho e luz? 3)
Na busca de identificar o responsável pelo pouco fruto da palavra de Deus, o autor de imediato inocenta a Deus. Que argumento ele utiliza para isso?
4)
Sendo Deus inocentado, a culpa a a ser ou do pregador ou dos ouvintes. Valendo-se da alegoria do trigo, o autor afirma que, se a semente não vinga, quando semeada, tal fato não advém da qualidade da semente, mas dos espinhos e das pedras do solo. Traduza o significado dos elementos que participam dessa alegoria: a) semente b) espinhos c) pedras 5)
No final do texto, chega-se a conclusão sobre a atribuição da responsabilidade pelo pouco efeito da palavra de Deus. a) Qual é essa conclusão? b) Por que pode-se afirmar que esse sermão é um exercício de metalinguagem? 6)
Qual das duas tendências estéticas encontradas no Barroco – o cultismo e o conceptismo – predomina nesse sermão de Vieira? Por quê?
7) (UFOP) Sobre o Sermão da Sexagésima, de Antônio Vieira, é incorreto dizer que: a) obedece rigorosamente às regras mais fundamentais da retórica para o púlpito, não descuidando de qualquer detalhe. b) pode ser definido como “uma profissão de fé oratória”, uma vez que aí ele expõe claramente os princípios de sua arte de pregar. c) jamais se rende ao cultismo predominante na época, uma vez que o critica de forma precisa e clara. d) combina de modo bastante feliz as regras clássicas de um discurso pagão aos princípios religiosos da doutrina cristã. e) utiliza uma parábola do Evangelho de São Mateus como uma metáfora que se desdobra em inúmeras variações.
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8) (UFOP) Considerando o texto do Sermão da Sexagésima, de Antônio Vieira, é incorreto afirmar que: a) é um discurso oratório no qual se percebem com nitidez o exórdio, o desenvolvimento e a peroração. b) em seu exórdio, o orador é bastante simples, indo diretamente ao tema do sermão sem maiores circunlóquios. c) em seu desenvolvimento, o sermão apresenta um perfeito equilíbrio entre narração e argumentação. d) sua argumentação não dispensa procedimentos conceptistas tais como o silogismo, o paradoxo e o exemplo. e) Vieira se exime de induzir os seus ouvintes, fazendo com que o sermão perca muito de sua eficácia. 9) Leia, atentamente, o texto abaixo e, a seguir, assinale a(s) alternativa(s) correta(s). “Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma senão entrar um homem dentro de si e verse a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho.” (VIEIRA, Padre Antônio. Os melhores sermões. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p.21.)
01) No início do texto, que é parte do Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real, em 1655, o narrador revela que a palavra de Deus não frutifica na terra porque os ouvintes (os homens) nunca prestam a atenção devida aos ensinamentos divinos, desobedecendo-lhes sempre. 02) Em seus Sermões, Padre Antônio Vieira procurou adequar o texto bíblico à realidade da época: o século XVII. 04) O narrador aponta no texto que, para uma alma se converter, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz, que correspondem ao ouvinte (o entendimento), ao pregador (a doutrina) e a Deus (a graça). 08) Na frase “Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos”, o narrador sugere que a busca pela palavra divina seja feita com base no conhecimento humano. 16) No final do texto acima, o narrador recomenda que o homem deve converter a sua alma olhando para dentro de si mesmo, avaliando as suas atitudes.
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