MÚSICA E INTERDISCURSIVIDADE: ANÁLISE DISCURSIVA DA MÚSICA IDEOLOGIA - CAZUZA
Renan Paulo Bini Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel – Univel
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Considerações Iniciais A Análise do Discurso de vertente sa leva em conta o homem e sua carga histórica, considerando as condições de produção da linguagem, pela análise da relação estabelecida entre o léxico e as circunstâncias em que se produz o dizer. Desta forma, o analista de discurso relaciona, ao se debruçar sobre um texto, a linguagem à sua exterioridade. Partindo do conceito de que a base da ideologia é o discurso e a base do discurso é a língua, desenvolve-se a relação língua-discurso-ideologia, que, se complementam, pois, de acordo com a posição levantada por Pêcheux (1988), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Ou ainda, conforme explica Orlandi (2013, p. 17), na tradução das palavras de Pechêux, de que “[...] o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido”. Consequentemente, de acordo com Orlandi (2013), o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se a partir dele como a língua produz sentidos por/para os sujeitos: Diferentemente da análise de conteúdo, a Análise de Discurso considera que a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é: como este texto significa? Há aí um deslocamento pelos formalistas russos, onde a questão a ser respondida não é “o quê” mas o “como”. Para responder, ela não trabalha com os textos apenas como ilustração ou como documento de algo que já está sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela produz um conhecimento a partir do próprio texto, porque o vê como tendo uma materialidade simbólica própria e significativa, como tendo uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade (ORLANDI, 2013, p. 17). 1
Considerando estes aspectos, o presente estudo utiliza como objeto enunciados da letra de música Ideologia, de autoria de Roberto Frejat e Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, analisando-a a partir de sua exterioridade, isto é, do contexto histórico em que se insere, bem como, a partir da noção de sujeito para a AD, que é um ser histórico-linguístico e constituído pelo esquecimento e pela ideologia: “O sujeito linguístico é aquele que interessa à linguística; para a AD ele constitui um pressuposto, não o objeto de seu estudo” (MAINGUENEAU, 1997, p. 34). Assim, segundo Maingueneau (1997), isso significa que a teoria do discurso não é uma teoria do sujeito antes que este enuncie, mas uma teoria da instância de enunciação que possui duas faces: por um lado, ela constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por outro, ela o assujeita, em decorrência da ideologia que pera este mesmo discurso. Se a enunciação submete o enunciador a suas regras, ela igualmente o legitima, atribuindo-lhe a autoridade vinculada institucionalmente a um lugar ideológico. Nesse aspecto, para a Análise de Discurso, o idioma, como instrumento de linguagem, tem sua ordem própria, mas não é livre; é relativamente autônomo, já que está sujeito à história. Desse modo, os fatos que reclamam sentido por meio da línguatêm seu real afetado pelo simbólico; na mesma linha, o sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real do léxico e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como a língua e a históriao afetam (ORLANDI, 2003). A partir do exposto sobre a teoria do discurso, fica claro que a análise pretendida no artigo terá seu foco direcionado aos interdiscursos, não sendo os autores Cazuza e Frejat enunciadores livres e intencionais, mas sujeitos resultantes das convenções sociais e ideológicas do contexto histórico ao qual se inserem e onde está inserida a sua música, objeto simbólico e fruto de determinada visão de mundo direcionada pelas interdiscursividades do meio de produção. Em suma, a Análise de Discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Essa compreensão, por sua vez, implica em explicitar como o texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido. Produzem-se assim novas práticas de leitura (ORLANDI, 2013, p. 26).
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Assim, para a AD a música não é apenas uma mensagem a ser decodificada. São efeitos da semântica que são produzidos em determinadas condições e que estão de alguma forma presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso segue para compreender os sentidos íveis de serem aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção.
Sujeito, História, Interdiscursividade e Convenções Sociais Para Lacan, responsável pela definição de sujeitona Psicanálise, o sujeito só pode ser concebido no âmbito da linguagem. Foucault (1998) também concebe a noção de sujeito em convergência com Lacan: como jogo de reciprocidade entre a subjetivação e a objetivação. Subjetivação por ocupar posições, papéis sociais e legitimidades que lhe competem o que dizer e de que modos dizer; subjetivação, ainda, porque as práticas discursivas constituem o indivíduo moderno, sendo ele um sujeito preso a uma identidade que lhe é atribuída como própria. No entanto, também, sujeito objetivado por estar inserido em um determinado tempo e espaço cultural, social, educacional, político e histórico, que lhe orientam a determinados conhecimentos e saberes, reforçando ou negando a sua posição de sujeito. Para Foucault (1998), é a partir dessas relações intercambiáveis do sujeito que se revelam nos discursos o que se pode apreender de determinada época, sendo o homem sujeito e objeto de conhecimento, consequência de uma produção de sentido, de uma prática discursiva e de intervenções de poder.
Cazuza: um sujeito do discurso O cantor e compositor Agenor de Miranda Araújo Netonasceu em 04 de abril de 1958 em Ipanema, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Filho da costureira Lucinha Araújo e do produtor fonográfico João Araújo, Cazuza, como foi apelidado no dia do seu nascimento pelo pai, na Casa de Saúde São José. As primeiras flores que chegaram à maternidade diziam, “Para a Mãe do Cazuza, com um beijo do pai do mesmo”. O esforço no parto lesionou o canal cervical e impediu Lucinha de ter outros filhos (ARAÚJO, 1997).
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Aos três anos de idade, Cazuza frequentou o Colégio Chapeuzinho Vermelho, onde descobriu que se chamava Agenor. Cresceu aos cuidados da mãe, já que o pai trabalhava muito enquanto produtor fonográfico, ausentando-se em boa parte da infância do filho. Lucinha era muito rígida porque o filho, apesar de tímido, era muito arteiro (ARAÚJO, 1997). Em março de 1964, período de início da Ditadura Civil-Militar no Brasil, Cazuza ingressou no Colégio Santo Inácio, escola religiosa de padres jesuítas, no qual era conhecido pelos desenhos de mulheres nuas, pois tinha o dom dos desenhos eróticos, que eram disputados pelos meninos que estudavam no Santo Inácio (ARAÚJO, 1997). É nesse período que Cazuza a a receber os primeiros interdiscursos ideológicos exteriores aos que recebeu da família, já que fora educado por meio de um rígido ensino, fruto do sistema político vigente na época e de cunho religioso. Sobre interdiscursos, Orlandi (2013) destaca: O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, ando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras (ORLANDI, 2013, p. 33).
Quando se faz menção ao sistema vigente na época da infância de Cazuza, diz-se respeito ao período de Ditadura Civil-Militar; sistema político que, no Brasil, foi resultado da Guerra Fria e da polarização entre capitalismo e comunismo. Teve início com o Golpe Militar de 1º de abril de 1964, pelo qual foi destituído o presidente João Goulart e empossado o primeiro general-presidente, Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967). A situação política intensificou-se sob o governo de Arthur da Costa e Silva (1976-1969), com o Ato Institucional nº 5 (mais conhecido como AI-5), que revogou o estado de direito e as liberdades civis, implantando um regime repressivo a qualquer possível ameaça ao poder estabelecido (FAUSTO, 2009). Segundo Fausto (2009), o período de repressão e de castração da liberdade de expressão no mundo versus a disputa ideológico/simbólica de poder, também ficou marcado pela rebeldia em grande parte do mundo. Vários segmentos da sociedade civil rebelam-se, reivindicam maior participação na política e liberdade de expressão: O rock’n’roll, a liberdade 4
sexual, o desbunde, a igualdade reivindicada pelas mulheres e o “é proibido proibir” são, entre outros, diacríticos da época. Rebeldia esta que também influenciou a adolescência de Cazuza. Nesta época, aos quinze anos, Lucinha descobriu o primeiro contato do filho com as drogas, por meio de um jornal em baixo do colchão, onde Cazuza escondia maconha. A partir daí, ele ou a transgredir todas as regras, bebendo whisky, usando drogas e andando com amigos que sua mãe considerava como uma “turma da pesada”, além de optar pelo estilo hippie, com roupas rasgadas e cabelo bagunçado (ARAÚJO, 1997). Aos dezessete anos, Cazuza fez uma viagem a Londres, e lá conheceu o som de Led Zepellin, Rolling Stones, Pink Floyd e várias bandas que influenciaram sua vida posterior na música. Aos dezoito, declarou-se bissexual à mãe, que encontrou uma carta carinhosa com palavras de amor do filho dirigidas para um homem. Aos vinte anos, Cazuza fez supletivo no Curso Pinheiro Guimarães e tirou o diploma de segundo grau (ARAÚJO, 1997), sendo nesta época alvo de muito preconceito, por sua opção sexual. De acordo com Trevisan (2002), o preconceito aos homossexuais na sociedade ocidental moderna, origina-se a partir da dominação ideológica cristã à cultura e aos princípios morais. A ideologia cristã tem como fundamento a castidade, mas, como esta é de impossível aplicabilidade à sociedade em geral, um “remédio” oferecido por Deus é o casamento: uma forma de manter os homens santos, sendo o sexo, ato exclusivo à procriação, o que não é uma opção a indivíduos do mesmo sexo com o desejo de efetuar uma união. Na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, não apenas a Espanha, Portugal, França e a Itália católicas, mas também a Inglaterra, Suíça e Holanda protestantes puniam severamente a “sodomia”, sendo os homossexuais alvos de multas, prisão, confisco de bens, trabalho forçado e até morte por fogueira ou afogamento (TREVISAN, 2002). Depositárias das ideias de tradição patriótica e dos valores patriarcais, as elites brasileiras sempre se apresentaram muito defensivas, e, por isso mesmo, segundo Trevisan (2012, p. 157), “vulneráveis ao fantasma do desejo desviante”. Tornam-se permeáveis ao pânico homofóbico na mesma proporção que zelam pela estrita observância das normas morais, que são aspirações legitimas da família e da sociedade.
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Ainda segundo o autor, são também essas elites, as responsáveis pela continuidade da repressão sexual na vida brasileira embasadas em justificação teóricas, disseminando preceitos de normalidade. A repressão à homossexualidade tornou-se ainda maior no período da Ditadura Militar. O preconceito, antes pautado apenas na pregação religiosa, ganhou apoio político e legislatório, aumentando ainda mais as consequências psicológicas de repressão a Cazuza e outros na mesma situação. Em 1982, o então ministro da Educação e Cultura, o general Rubem Ludwig, defendeu ao lado do presidente João Figueiredo a censura a tudo o que foge à moral brasileira, vedando qualquer produção considerada “imprópria aos lares cristãos”, como produtos com personagens homossexuais (TREVISAN, 2002, p. 178). Um pouco antes desta época, Cazuza ou a trabalhar com o pai no departamento de imprensa da Som Livre. O jovem Cazuza não gostou da profissão e mudou-se para San Francisco – Califórnia, onde permaneceu por oito meses. Em seguida, decidiu fazer teatro no Circo Voador com o grupo de Perfeito Fortuna, e conheceu Léo Jaime, de quem recebeu a proposta de integrar-se a um novo grupo musical: o Barão Vermelho (ARAÚJO, 1997). A amizade entre Cazuza e Roberto Frejat começou logo que se conheceram. Sob a influência de Led Zeppelin e Rolling Stones, lançaram o primeiro disco em 1982, pela insistência dos produtores musicais Ezequiel Neves e Guto Graça de Melo. O pai de Cazuza não acreditava no talento do filho, até que numa noite no Canecão, Caetano Veloso cantou a música “Todo amor que houver nessa vida”, abrindo o caminho para o sucesso. O disco “Maior abandonado” vendeu 100 mil exemplares que renderam ao Barão Vermelho um disco de ouro; logo depois disso Cazuza deixou o grupo e uma semana depois foi internado com 42 graus de febre (ARAÚJO, 1997). Em julho de 1985, Cazuza sofreu várias convulsões e permaneceu por onze dias no Hospital São Lucas, em Copacabana. Os primeiros diagnósticos constataram Mononucleose e uma infecção nos pulmões. Após isso, o primeiro exame do vírus HIV foi negativo. Os dias no hospital inspiraram Cazuza, em conjunto com Ezequiel Neves, a criar a música “Codinome Beija-flor”, lembrando os beija-flores que vinham até a janela de Cazuza no hospital (ARAÚJO, 1997). Em abril de 1987, Lucinha e o marido foram chamados pelo doutor AbdonIssano consultório saber o resultado dos exames de Cazuza, que não havia ado bem. O discurso 6
que veio a seguir, foi amudança final da vida do cantor: “Seu filho foi tocado pela AIDS”, disse o médico aos pais do cantor, que decidiram resguardar o filho até que ele tivesse a iniciativa de ir ao médico. Isto veioa acontecer três dias depois. Aos 29 anos Cazuza, descobre que estava com AIDS, uma doença pouco conhecida e relacionada, na época, à promiscuidade entre homossexuais (ARAÚJO, 1997). Com o aumento do número de homossexuais e dependentes químicos detectados com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) no início da década de 1980, o preconceito à orientação sexual tornou-se ainda maior. Isto porque, no imaginário popular e principalmente devido a falta de informações e respostas a respeito do vírus, surge entre as instituições tradicionais cristãs a hipótese de que a doença poderia ser uma punição divina, e tal ideiase torna evidente nos palanques religiosos e no discurso divulgado pela mídia. As pessoas contaminadas foram expostas ao ridículo e rejeitadas pela sociedade.A interdiscursividade aceita pela sociedade da época era a de que a doença era atraídapela conduta não cristã, pelo indivíduo que não respeitou as leis divinas e, em consequência disso, devia aceitar o vírus como um castigo à promiscuidade. Em maio de 1987, Cazuza foi para Boston se tratar na Clínica Médica do New England Medical Center, com o doutor Sheldon Wollff, que além de chefe da clínica era membro do Programa de Combate a AIDS. Naquela época o médico, por mais que fosse autoridade no assunto, não tinha muitos conhecimentos sobre a forma de contágio. Por isso foi recomendado a Cazuza que outras pessoas não deveriam comer no mesmo prato que ele, beijá-lo, usar suas roupas, além de que, todos os objetos pessoais tinham de ser esterilizados (ARAÚJO, 1997). Cazuza permaneceu internado no New England, onde foi tratado de uma bactéria que havia se instalado nos pulmões, O que causava convulsões e o fez ir parar no Centro de Terapia Intensiva (CTI). Sua mãe, Lucinha, sempre permaneceu ao seu lado durante o tratamento. “Muitas vezes, Cazuza cantou uma canção desconhecida para mim: “Ideologia, eu quero uma pra viver”. Perguntei ao Zeca que música era aquela, e ele me informou que era para o disco novo e que Cazuza e Frejat haviam começado a trabalhar nela antes da crise” (ARAÚJO, 1997, p.226).
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Em 1987, recuperado da crise, Cazuza retornou ao Brasil, lançou o show Ideologia e gravou o disco entre janeiro e fevereiro de 1988, que foi lançado em abril, mesmo mês em que ele completou 30 anos. O show foi dirigido por Ney Matogrosso e o disco vendeu 500 mil cópias, com uma turnê que seguiu pelo Brasil (ARAÚJO, 1997). No ano de 1989, o cantor lançou o disco “O tempo não para”, e, em janeiro do mesmo ano fez seu último show. Em 12 de fevereiro itiu em uma entrevista ao jornalista Zeca Camargo, da Folha de São Paulo, que era portador do vírus da AIDS. Lucinha afirma que seu filho “[...] foi intenso enquanto era criança, intensíssimo na adolescência e transcendental na idade adulta”. Cazuza, que viveu 32 anos “intensos”, faleceu em 7 de julho de 1990, em decorrência do Vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) (ARAÚJO, 1997, p. 33).
Ideologia e suas Formações Discursivas Segundo Orlandi (2013), o esquecimento produz nos sujeitos a impressão da realidade do pensamento: Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim. Ela estabelece uma relação “natural” entre palavra e coisa. Mas este é um esquecimento parcial, semiconsciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos (ORLANDI, 2013, p. 35).
Consequentemente pode-se afirmar que o sentido não existe em si, mas é configurado pelas posições ideológicas colocadas em no processo sócio-histórico em que os signos são verbalizados. As palavras mudam de sentido a partir daqueles que as empregam. O discurso se estabelece semanticamente, porque o que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra, para ter um sentido e não outro. Segundo Orlandi (2003), É a ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a discursividade. Por seu lado, a interpelação do 8
indivíduo em sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da inscrição da língua na história para que ela signifique produzindo o efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a impressão do sujeito ser a origem do que se diz. Efeitos que trabalham, ambos, a ilusão da transparência da linguagem. No entanto nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos são transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente (ORLANDI, 2003, p. 48).
Atravessado pela linguagem e pela história, além de estar, especificamente, inserido no contexto da Guerra Fria e da Ditadura Civil-Militar no Brasil, sob o modo do imaginário, o sujeito Cazuza só tem o à parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde sua constituição: ele é sujeito “de” e é sujeito “à”. Ele é sujeito ao léxico e à história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos, é afetado pelos desdobramentos das convenções sociais a qual se insere: dentre elas o preconceito, a repressão e a censura. Submetendo o sujeito ao mesmo tempo apresentando-o como livre e responsável, o assujeitamento se faz de modo a que o discurso apareça como instrumento (límpido) do pensamento e um reflexo (justo) da realidade. Na transparência da linguagem, é a ideologia que fornece as evidências que apagam o caráter material do sentido e do sujeito. É aí que se sustenta a noção de literalidade: o sentido literal, na concepção linguística imanente, é aquele que uma palavra tem independentemente de seu uso em qualquer contexto. Daí seu caráter básico, discreto, inerente, abstrato e geral. No entanto, se levamos em conta, como a Análise de Discurso, a ideologia, somos capazes de aprender, de forma crítica, a ilusão que está na base do estatuto primitivo da literalidade: o fato de que ele é produto histórico, efeito de discurso que sofre as determinações dos modos de assujeitamento das diferentes formas-sujeito na sua historicidade e em relação às diferentes formas de poder. O falante não opera com a literalidade como algo fixo e irredutível, uma vez que não há um sentido único e prévio, mas um sentido instituído historicamente na relação do sujeito com a língua e que se faz parte das condições de produção do discurso (ORLANDI, 2003, p. 51).
Nesse aspecto, de acordo com Maingueneau (1997), o fato de que um texto seja destinado a ser cantado, lido em voz alta, acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo, que circule de determinada maneira e em certos espaços, incide essencialmente sobre seu modo de existência semiótica. A cada gênero associam-se momentos e lugares de enunciação específicos e um ritual apropriado.
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Música e Interdiscursividade: Ideologia A letra de música Ideologia foi escrita por Cazuza em 1988, pouco tempo depois que o cantor descobriu ser portador da Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida. Musicada por Roberto Frejat, a poesia se tornou música. Um dos movimentos que expressou a vida dos jovens daquela época foi o Tropicalismo, que, questionou os conceitos sociais transformandoos em arte. Foi uma época em que se destacaram as chamadas “tribos urbanas”, que por meio de convenções paralelas, alguns jovens tornaram-se alheios aos costumes da sociedade tradicional, sendo o Cazuza, referência à parte dessas “tribos” (LIMA, 1997). Na letra de música Ideologia, destaca-se a ambiguidade, provavelmente intencional nos enunciados. Na primeira estrofe de Ideologia, Cazuza, exprime-se: “Meu partido é um coração partido e as ilusões estão todas perdidas”. Orlandi (2013) ressalta que para a interpretação de um enunciado é necessário uma análise de todo o contexto social em que a mesmo está inserida. No enunciado, além da possível interpretação da existência de uma relação entre o sentimento de Cazuza e seu estado de saúde, pode-se relacionar o enunciado à influência da política da década de 1980: contexto social pós Ditadura Militar, onde a repressão, a censura e limitações à liberdade estão em transição paradigmática, porém, vigentes na cultura popular por meio dos preconceitos (LIMA, 1997). “Os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito, eu nem acredito”. Neste enunciado, dois gestos de sentido são possíveis: a) a perenidade dos sonhos de cada indivíduo diante dos padrões sociais do Regime Civil Militar e a alienação em massa; b) a perenidade de seus sonhos diante da Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida (LIMA, 1997). No enunciado “Que aquele garoto que ia mudar o mundo (mudar o mundo), frequenta agora as festas do ‘Grand Monde’” há outro possível gesto de sentido. O enunciado sobre um “garoto que ia mudar o mundo” conduz o leitor a uma memória discursiva: muitos jovens que não fazem parte da alta sociedade são humildes e, de certa forma sentem vontade de mudar o mundo, frisando o ato de mudar o mundo como se fosse algo muito importante a se fazer no contexto social que os jovens viviam na Ditadura Militar. Já o enunciado “frequenta as festas do ‘Grand Monde’” remete o leitor às festas da alta sociedade, nas quais é possível a um
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sujeito se relacionar com pessoas que não tem vontade de mudar o mundo, pelo fato de viverem em uma acomodação em relação aos problemas sociais. De acordo com Pena (2012), a significação é resultado de várias leituras de uma mesma obra. Utilizando-se desse conceito observa-se no refrão outra ambiguidade: a) na primeira possível mensagem, relacionando-a ao sistema político/ideológico da época: “Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”. Neste enunciado o gesto de interpretação possível é de que os heróis provavelmente não eram políticos, – e sim, líderes simbólicos, referência ideológica de luta à repressão, – que, por sua vez são os que comandam o poder do país naquela época ditatorial. O enunciado “Meus inimigos estão no poder” relembra a ideia de que os políticos da época eram os inimigos dos jovens revolucionários ou da população, e visto que Cazuza era um dos que estava à frente da população jovem da época, parte-se deste dito para interpretar o não-dito: que os amigos podem ser os cidadãos comuns que não estão no poder. Outro gesto de leitura possível é o de que o sujeito-autor de Ideologia refere-se a um sistema imunológico vitimizado pela AIDS, que deixa o sujeito sob o controle da doença, nada podendo fazer. Continuando os gestos de interpretação, nota-se que o refrão, “Ideologia eu quero uma pra viver, Ideologia eu quero uma pra viver” é repetido várias vezes durante a música, visto que a palavra “Ideologia” tem uma significação muito forte. É possível que este conceito de ideias seja tratado na relação língua-discurso-ideologia, citada por Orlandi (2013). Na forma em que as palavras são ditas, o sujeito-autor, por meio do recurso retórico de verossimilhança dramática, pressupõe que na ideologia em que ele está inserido não é possível viver, por isso, persuade afirmando que precisa de outra. O sujeito-autor da letra de música diz querer uma ideologia para viver, o que gera uma significação de que o mesmo não possui ideologias, ou em outro gesto de sentido, que se perde entre as muitas ideologias existentes nas sociedades, já que, conforme Orlandi (2013) afirma, todo indivíduo possui ideologias, mesmo sem perceber tal influência nos seus dizeres.
Considerações Finais Por meio do objeto lingüístico, simbólico e discursivo – a música Ideologia –, incidiuse análise de alguns enunciados relacionando as formações discursivas às ideológicas que 11
regem as relações responsáveis pelos efeitos de sentidos produzidos no material. Diante do contexto histórico em que se insere a letra de música, coube aos analistas, a partir da AD sa, a determinação dos efeitos de sentido decorrente dos ditos e não-ditos da linguagem, relacionando-as às condições de produção dos enunciados eleitos para análise. No caso, foram estas a época de transição paradigmática de rebeldia à repressão e de luta por liberdades, principalmente entra a população jovem, desdobrada da bipolaridade mundial na Guerra Fria no contexto globalizante, além da Ditadura Civil-Militar no contexto nacional, bem como o advento da AIDS e o consequente preconceito social aos indivíduos afetados. De acordo com Orlandi (2013), metáforas, metonímias, polissemias e interdiscursos configuram sentido e peram o sujeito-autor. O processo de produção de sentidos se sujeita a deslizes (à deriva do efeito metafórico), havendo sempre um “outro” (sentido) possível. Essa duplicidade (considerando o dito e o não-dito à análise objetiva estruturalista, e, a partir daí à análise das possíveis interpretações semânticas em relação às exterioridades), faz referir um discurso a outro, para que ele faça sentido. Na Psicanálise, isso envolve o inconsciente, e na AD sa, envolve também a ideologia, pensando a relação material do discurso à língua e a relação da ideologia ao inconsciente. Nesse aspecto, ite-se que a humanidade inserida no contexto atual, relaciona-se e organiza-se por meio da linguagem, mediando homem e a realidade natural e social. A partir disso, determina-se a continuidade ou transformação do contexto em que vive. Considerando os sujeitos nela inseridos e seu léxico, – estruturado não apenas na linguística, mas principalmente nas exterioridades e nas ideologias –, a AD sa desponta-se como importante ferramenta para entender a historicidade social por meio da análise do objeto simbólico Ideologia: sendo as ideologias dominantes absorvidas pela sociedade, moldando-a por meio do esquecimento (dos interdiscursos), pressupõem-se, que, a análise discursiva de um objeto determinado, permite a compreensão global do mesmo a partir da associação do que é perlocutado à história, à cultura e às ideologias.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ARAÚJO, Lucinha. Cazuza: só as mães são felizes. 3. ed. São Paulo: Globo, 1997. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2009. FOUCAULT, Michel. A leitura e os leitores possíveis. In: ORLANDI (org.) A Leitura e os Leitores. Campinas: Pontes, 1998, p. 07-24. LIMA, Luiz André Correia. Cazuza: lenda e legenda dos anos 80. Londrina: Editora Uel, 1997. MAINGUENEAU Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. São Paulo: Pontes, 1997. ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 11 ed. Campinas: Pontes Editores, 2013. PÊCHEUX, Michel.Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. PENA, Maura. Música (S) e seu ensino. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2012. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
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