1984: Uma Nova Tradução Do Clássico De Orwell 564862

Sumário

Parte 1

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Parte 2

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Parte 3

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Apêndice: Os Princípios da Novalíngua

Epílogo: A vida de George Orwell

Todo conteúdo original (em inglês) é de autoria de George Orwell (Eric A. Blair) e se encontra em domínio público. A tradução do inglês é de Rafael Arrais (2021).

Texto revisado segundo as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Tradução e organização: Rafael Arrais

Esta é uma edição de Textos para Reflexão Para conhecer outras obras, visite o blog: textosparareflexao.blogspot.com

Design e diagramação: Ayon Copyright © 2021 por Rafael Arrais (eBook para eReaders v1.1) Todos os direitos reservados

Parte 1

1.

Era um dia gelado e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, com o queixo acocorado junto ao peito, numa tentativa de se cobrir do vento impiedoso, ou rapidamente pelas portas de vidro das Mansões Vitória; no entanto, não com a rapidez necessária para evitar que uma lufada de poeira o acompanhasse. O cheiro do saguão de entrada lembrava repolho cozido e aqueles velhos capachos de pano trançado. Na parede oposta à entrada foi colocado um pôster colorido, que em realidade era grande demais para aquele ambiente fechado. Ele mostrava tão somente um imenso rosto, de mais de um metro de largura: era de um homem de cerca de quarenta e cinco anos, com um bigode preto grosso e traços um tanto rústicos, embora atraentes. Winston se dirigiu à escada. Era inútil tentar o elevador. Mesmo na época das vacas gordas, ele raramente funcionava, e agora a eletricidade era racionada ao longo do dia. Fazia parte da campanha de economia, que antecedia a Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar; e Winston, que já tinha seus trinta e nove anos, e uma úlcera varicosa logo acima do tornozelo direito, subiu devagarinho, parando diversas vezes para descansar ao longo do trajeto. Em cada andar, diante da porta do elevador, o cartaz com o rosto enorme o observava da parede. Era uma dessas figuras ilustradas de modo a que seus olhos nos acompanhem por toda a parte. O GRANDE IRMÃO ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ, dizia a legenda. Dentro do apartamento uma voz adocicada lia uma lista de cifras que de alguma forma estavam relacionadas com a produção de ferro-gusa. A voz surgia de uma placa metálica retangular parecida com um espelho fosco, que se encontrava embutida na superfície da parede direita. Winston girou um botão e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (conhecido como teletela) podia ter seu volume reduzido, mas era impossível desligá-lo completamente. Winston se aproximou da janela: era uma figura pequenina, frágil, cuja magreza era até mesmo realçada pelo uniforme do Partido, um macacão azul. O cabelo era bem loiro, o rosto naturalmente rubro, e a pele destratada pelo sabão ordinário, as giletes cegas e o frio do inverno, que mal havia ado.

Lá fora, mesmo observado através da vidraça fechada, o mundo parecia gelado. Na rua, pequenos redemoinhos de vento faziam flutuar e girar em pequenas espirais a poeira e o papel picado, e embora o sol cintilasse e o céu fosse preenchido de um azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, exceto nos cartazes colados por toda parte. A figura bigoduda seguia observando de cada canto do cenário. Já na fachada da casa do outro lado da rua se podia ver mais um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ, dizia o letreiro, e os seus olhos escuros pareciam buscar os de Winston. Ao nível da rua havia outro cartaz, com uma das pontas rasgadas, tremulando com o vento, ora cobrindo e ora descobrindo a palavra INGSOC. Ao longe, desceu um helicóptero dando rasante nos telhados; ele pairou no ar alguns momentos, tal qual uma libélula, e depois se afastou num voo em curva. Era a patrulha da polícia, espiando as janelas das pessoas. As patrulhas, no entanto, não eram um problema. O único problema era a Polícia do Pensamento. Por trás de Winston, a voz da teletela ainda tagarelava sobre o ferro-gusa e o total cumprimento das metas do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho ou ruído que Winston fizesse que fosse mais alto do que um sussurro seria captado pelo aparelho; além disso, enquanto estivesse dentro do campo de visão da placa metálica, também poderia ser observado. É claro que não era possível determinar se, num dado momento qualquer, alguém estava vigiando do outro lado. Era impossível saber com que frequência a Polícia do Pensamento bisbilhotava a casa deste ou daquele indivíduo. Na verdade, era concebível que ela observasse todos ao mesmo tempo. Fato é que poderia se conectar a determinado aparelho no momento que desejasse. Assim, era necessário viver – por conta do hábito transformado em instinto – supondo que cada som seria ouvido, e cada movimento examinado, ao menos se a escuridão não fosse completa. Winston mantinha suas costas voltadas para a teletela. Era mais seguro, muito embora soubesse que em certos casos até mesmo as costas de uma pessoa poderiam ser reveladoras. A um quilômetro dali, o Ministério da Verdade, onde ele trabalhava, erguia-se branco e imenso sobre a paisagem acinzentada de poeira. Era isso, pensou com certa repugnância – isso era Londres, a principal cidade da Pista Um, que por sua vez era a terceira província mais populosa da Oceania. Tentou localizar na memória uma recordação infantil que pudesse lhe dizer se Londres sempre tivera aquele aspecto. Aquelas casas apodrecidas do século XIX, com as paredes laterais escoradas com vigas de madeira, as janelas

remendadas com cartolina, os telhados com chapas de ferro enrugado e os jardins com muros em ruínas, acaso sempre estiveram lá? E as crateras deixadas pelos bombardeios, onde o pó de gesso dançava pelo ar e o mato crescia se espalhando pelos montes de escombros? E os locais onde as bombas haviam aberto clareiras ainda maiores, de onde tinham brotado sórdidas colônias de cabanas de madeira, que se assemelhavam a galinheiros? Mas era tudo inútil, ele já não conseguia mais lembrar: nada restava de sua infância, exceto uma série de quadros muito iluminados, que se sucediam sem paisagem ao fundo, e eram quase sempre incompreensíveis. O Ministério da Verdade – ou Miniver, em Novalíngua [Nota do Tradutor: tratase do idioma oficial da Oceania] – era totalmente diferente de qualquer outro objeto na paisagem. Era uma imensa pirâmide de concreto branco cintilante, que se erguia, terraço sobre terraço, até uma altura de trezentos metros. Mesmo de onde estava, Winston conseguia ler, em letras estilosas encravadas na fachada, os três lemas do Partido:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Diziam que o Ministério da Verdade continha três mil salas acima do nível do solo, e ramificações similares no subsolo. Espalhados por Londres havia mais três construções de tamanho e design semelhantes. Elas dominavam de tal forma a arquitetura em seu entorno que do telhado das Mansões Vitória era possível ver todas as quatro ao mesmo tempo. Elas formavam as sedes dos quatro ministérios que dividiam entre si todas as funções governamentais: o Ministério da Verdade, que cuidava das notícias, do entretenimento, da educação e das artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, responsável pela manutenção da lei e da ordem; e o Ministério da Fartura, que tocava as questões econômicas. Seus nomes, em Novalíngua: Miniver, Minipaz, Miniamor e Minifar. O Ministério do Amor era verdadeiramente aterrorizante. O edifício inteiro não

tinha uma janela sequer. Winston nunca estivera por lá, de fato nunca havia se aproximado sequer a meio quilômetro de distância. Em todo caso, era impossível adentrar o prédio sem uma justificativa oficial – e, ainda assim, atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos ocultos de metralhadora. Até mesmo as ruas que levavam às suas barreiras externas eram patrulhadas por guardas com cara de gorila, vestindo fardas negras e empunhando cassetetes articulados. Winston se voltou abruptamente. Havia fixado no próprio rosto a expressão de otimismo tranquilo que era aconselhável usar sempre que se fosse encarar a teletela. Atravessou a sala e adentrou na cozinha minúscula. Tendo saído do Ministério naquela hora, havia perdido o almoço na cantina, e tinha consciência de que não havia em casa mais comida do que um naco de pão escuro, que seria a sua refeição na manhã seguinte. Retirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco onde se lia GIM VITÓRIA. Ela exalava um cheiro oleoso e enjoativo, como aguardente de arroz chinês. Winston serviu quase uma xícara de chá, se preparou para o baque e engoliu tudo de uma vez, como se fosse um remédio. Imediatamente, seu rosto ficou avermelhado, e seus olhos começaram a lacrimejar. A bebida lembrava ácido nítrico puro, e ao entorná-la goela abaixo, tinha-se a nítida impressão de ter levado um golpe de cassetete na nuca. No instante seguinte, entretanto, a ardência na barriga aplainou, e o mundo começou a parecer mais agradável. Retirou um cigarro do maço de CIGARROS VITÓRIA e, por descuido, o manteve na vertical, o que fez com que o fumo todo caísse no chão. Voltou a puxar mais um cigarro, desta vez com mais cuidado. Retornou à sala de estar e se acomodou numa cadeira junto a uma mesinha que ficava à esquerda da teletela. Da sua gaveta, tirou uma caneta, um tinteiro e um caderno grosso, de lobada vermelha e capa cartonada, ainda inteiramente em branco. Por algum motivo, a teletela da sala havia sido colocada em uma posição incomum. Em ver de ser acoplada, como era normal, na parede de fundo, de onde poderia visualizar toda a sala, estava instalada na parede mais longa, oposta à janela. Em um de seus lados havia uma pequena reentrância, onde Winston se encontrava sentado – e que, na planta do edifício, provavelmente tinha sido destinada a abrigar uma estante de livros. Estando nesse espaço, e se mantendo bem junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que se referia à visão. Ele ainda podia ser ouvido, naturalmente, mas contanto que permanecesse exatamente naquela posição, não podia ser visto.

De certa forma, foi a planta pouco usual do apartamento que lhe deu a ideia de fazer o que estava por fazer. Mas o caderno que acabara de tirar da gaveta da mesinha também lhe estimulou. Era um encadernado lindo; com papel macio, cor de creme, levemente amarelado pelo tempo – o tipo de coisa que já não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Assim, dava para imaginar que o caderno devia ser ainda bem mais antigo. Ele o tinha visto na vitrine de uma lojinha de bugigangas caindo aos pedaços num dos bairros pobres da cidade (já não lembrava qual deles). Assim que o viu, foi de imediato tomado por um desejo avassalador de possuí-lo. Supostamente os membros do Partido não deveriam entrar em lojas comuns (“dedicadas ao livre comércio”, como era dito), mas o regulamento não era obedecido à risca, uma vez que havia diversas coisas, como cadarços de sapato e giletes de barbear, que não se podia adquirir de outra forma. Então, depois de olhar brevemente para os dois lados da rua, Winston adentrara a loja e comprara o caderno por dois dólares e meio. Na ocasião, de fato não tinha a consciência de desejá-lo para nenhum propósito em específico. Sorrateiramente, o havia levado para casa escondido em sua pasta. No entanto, mesmo estando inteiramente em branco, a mera posse daquele caderno era algo comprometedor. Bem, o que ele estava prestes a fazer era iniciar um diário. Não que se tratasse de um ato ilegal (nada mais era ilegal, uma vez que não havia mais leis); no entanto, acaso fosse descoberto, era praticamente certo que seria punido com a pena de morte, ou no mínimo uns vinte e cinco anos de prisão em algum campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para se livrar da graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usado, mesmo para s. Ele a tinha obtido, furtivamente e com alguma dificuldade, somente por sentir que aquele belo papel creme merecia palavras escritas por uma pena de verdade, em vez de ser rabiscado por algum lápis ou caneta tinteiro. Na realidade Winston não estava habituado a escrever a mão. Exceto por recados bem curtos, o usual era ditar tudo ao falaescreve – o que, naturalmente, não poderia servir para o caso. Mergulhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um tremor lhe acometeu as entranhas. Marcar aquele papel era um ato decisivo. Com letras pequeninas e desajeitadas, escreveu:

4 de abril de 1984.

Recostou-se novamente na cadeira. Caíra sobre ele uma sensação de completo desespero. Para começar, não fazia ideia se aquele era de fato o ano de 1984. Devia ser mais ou menos isso, pois tinha a convicção de ter seus trinta e nove anos, e acreditava ter nascido em 1944 ou 1945; mas hoje em dia, no entanto, nunca se podia precisar uma data sem uma margem de erro de um ou dois anos. De repente lhe surgiu uma pergunta: para quem estaria escrevendo aquele diário? Decerto para o futuro, para os que ainda não tinham nascido. Sua mente pairou momentaneamente sobre aquela data duvidosa que tinha escrito, e de repente se chocou com um termo em Novalíngua: DUPLIPENSAR. Pela primeira vez percebeu toda a magnitude do que estava tentando empreender. Como seria possível se comunicar com o futuro? Era algo impossível por natureza. Ou o futuro seria semelhante ao presente, e não daria ouvidos ao que ele tinha a dizer, ou seria bem diverso, e nesse caso aquela sua iniciativa não faria o menor sentido. Por algum tempo, permaneceu ali, encarando estupidamente o papel. A teletela tinha ado a tocar uma música militar um tanto estridente. O curioso era que ele aparentemente tinha perdido não somente o poder de se expressar, como esquecido o que exatamente tinha em mente. Ele já vinha se preparando para aquele momento há semanas, e nunca havia lhe ado pela cabeça que era preciso mais do que mera coragem para prosseguir. Escrever deveria ser fácil. Tudo o que tinha de fazer era transferir para o papel o monólogo irrequieto e interminável que se desenrolava na sua cabeça há anos. Naquele momento, entretanto, até mesmo o monólogo havia sido interrompido. Além disso, a sua úlcera varicosa começava a dar comichão, o que era uma coisa torturante. E não tinha coragem de coçar, pois isso sempre dava inflamações. Os segundos corriam. Não tinha consciência de nada além da brancura do papel à sua frente, a coceira acima do tornozelo, a música alta, e uma leve tontura causada pelo gim. De repente, por puro pânico, se colocou a escrever, mal tomando consciência do que ia anotando. A letra pequenina e infantil traçou linhas tortas através do papel, abandonando primeiramente as maiúsculas, e eventualmente até mesmo a pontuação:

4 de abril de 1984. Ontem à noite ao cinema. Só filmes de guerra. Um muito bom dum navio lotado de refugiados bombardeado nalgum ponto de Mediterrâneo. Público dando risada dos tiros disparados contra um gordão que tentava fugir nadando dum helicóptero. primeiro ele aparecia subindo e descendo na água que nem golfinho, depois ele já estava todo esburacado e o mar em volta ficava rosado e de repente afundava como se a água tivesse entrado pelos furos. público gargalhando quando afundou. depois surgiu um bote salva-vidas cheio de crianças com um helicóptero por cima. havia uma mulher de meia-idade talvez judia sentada na proa com um garotinho de três anos no colo. garotinho berrando de medo e escondendo a cabeça nos seios dela como querendo se proteger e a mulher o envolvendo com os braços e consolando apesar de também estar morrendo de medo. todo tempo o abraçando com toda força como se os braços pudessem proteger das balas. daí o helicóptero lançou uma bomba de vinte quilos em cima deles um clarão espetacular e o bote virou poeira. daí uma bela cena de um braço de criancinha subindo subindo subindo um helicóptero com a câmera no nariz deve ter acompanhado o braço subindo e muita gente nos lugares do partido aplaudiu a beça mas uma mulher nos lugares dos proletas de repente fez um barraco e começou a gritar que não deviam mostrar aquele filme pras crianças não é certo na frente delas não tinham direito disso e tal e tal até que a polícia botou ela pra fora acho que não aconteceu nada com ela ninguém dá mínima bola para o que os proletas dizem reação típica deles eles nunca...

Winston parou de escrever, em parte porque sentia cãibras na mão. Não sabia o que o tinha levado a derramar sobre o papel aquela torrente de imbecilidades. O curioso, no entanto, é que ao fazê-lo, uma lembrança inteiramente diversa se definiu em sua memória, ao ponto de se sentir quase que capaz de narrá-la. Agora compreendia que foi por conta de outro incidente que ele tinha tomado a decisão repentina de se dirigir para casa e iniciar o diário naquele dia. Havia ocorrido naquela manhã, no Ministério. Se é que era possível afirmar que algo tão nebuloso fosse, de fato, uma ocorrência. Eram quase onze da manhã, e no Departamento de Registro, onde Winston trabalhava, já arrastavam as cadeiras para fora dos cubículos de trabalho e as

reuniam no centro do salão, diante de uma imensa teletela, nos preparativos para os Dois Minutos de Ódio. Winston já estava se sentando numa das fileiras do meio quando de repente adentraram no salão duas pessoas que ele conhecia de vista, mas com quem nunca havia trocado sequer uma palavra. Uma delas era uma garota com quem havia cruzado inúmeras vezes pelos corredores. Não sabia o seu nome, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. Ele supunha – pois já a tinha visto algumas vezes com as mãos sujas de óleo, carregando uma chave inglesa – que ela fosse a mecânica de uma das máquinas de novelização. Devia ter seus vinte e sete anos, com uma aparência audaciosa, os cabelos negros e espessos, o rosto sardento, e movimentos rápidos e atléticos. Uma faixa fininha, de cor escarlate, que era o emblema da Liga Juvenil Antissexo, dava diversas voltas à sua cintura; o suficiente para destacar as belas curvas dos seus quadris. Winston havia antipatizado com ela desde a primeira vez que a viu. E sabia porquê. Era por conta da atmosfera de campos de hóquei, banhos frios, eios comunitários e mente pura que, por alguma razão, impregnava a sua figura. Ele antipatizava com quase todas as mulheres, principalmente as jovens e belas. Eram sempre as mulheres, principalmente as jovens, as militantes mais fervorosas do Partido: as devoradoras de palavras de ordem, as espiãs amadoras e as que mais espreitavam os desvios alheios. Esta jovem lhe dava a nítida impressão de ser mais perigosa do que a maioria. Numa das vezes em que se cruzaram pelo corredor, ela tinha lhe lançado um súbito olhar enviesado que pareceu penetrá-lo até seu íntimo e, por um instante, o encheu de pavor. Até lhe ocorreu que ela poderia ser da Polícia do Pensamento. Mas isso, na realidade, era bastante improvável. No entanto, ele continuava sentindo um estranho desconforto, um misto de medo e hostilidade, sempre que ela ava por perto. A outra pessoa era um homem chamado O’Brien, membro do Partido Interno, que ocupava uma posição tão importante e remota que Winston só tinha uma vaga ideia do seu trabalho. Por um momento, ao observarem o macacão preto de um membro do Partido Interno se aproximar, as pessoas em torno das cadeiras ficaram em silêncio. O’Brien era um homem grande, corpulento, de pescoço grosso e rosto grosseiro, brutal – até mesmo engraçado. Apesar da sua aparência assustadora, seu comportamento era algo sedutor. Seu tique de ficar ajustando os óculos no nariz, um gesto curioso, acabava por desarmar as pessoas e, de um modo impossível de definir, ava um ar de civilidade. Era um tique que, caso ainda fosse possível alguém imaginar tal tempo, poderia lembrar um nobre inglês do século XVIII oferecendo sua caixa de rapé. Winston tinha visto

O’Brien cerca de meia dúzia de vezes ao longo de igual número de anos. Ele se sentia profundamente atraído por ele, não somente por se intrigar com o contraste entre a sua civilidade e o seu físico de pugilista – era bem mais por conta de uma crença secreta, ou mera esperança, que seja, de que a ortodoxia política de O’Brien não fosse perfeita. Havia em sua fisionomia alguma coisa qualquer que ava tal impressão. Ou talvez não fosse ortodoxia o que estava escrito em seu rosto, mas apenas inteligência. Em todo caso, ele parecia ser uma pessoa com a qual era possível dialogar a sós, se fosse possível que ambos ficassem fora do alcance das teletelas. Na verdade Winston jamais moveu um dedo para tirar aquela dúvida a limpo, pois realmente não havia como fazê-lo. Naquele instante O’Brien olhou para seu relógio de pulso, viu que eram quase onze horas e naturalmente decidiu permanecer no Departamento de Registro até acabarem os Dois Minutos de Ódio. Ocupou uma cadeira da mesma fila onde estava Winston, de fato a dois lugares de distância. Entre ambos estava sentada uma mulher franzina, de cabelo ruivo, que trabalhava no cubículo vizinho ao de Winston. A garota de cabelo escuro sentou-se logo atrás. Logo após um guincho horrendo e estridente, como de uma monstruosa máquina rodando sem óleo nas engrenagens, emergiu da grande teletela no fundo da sala. Era um ruído que fazia ranger os dentes, e arrepiava os cabelos da nuca. O Ódio havia começado. Como era usual, o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgiu na tela. Aqui e ali ouviram-se protestos entre a plateia. A mulher ruiva e franzina urrou com um misto de medo e repugnância. Goldstein era o traidor renegado que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos anos, ninguém mais era capaz de se lembrar), havia sido uma das figuras proeminentes do Partido, quase tão importante quanto o próprio Grande Irmão, e que depois acabou se envolvendo com atividades contrarrevolucionárias. Por conta disso, ele eventualmente foi condenado à morte, e em seguida fugiu e sumiu completamente do mapa. A programação dos Dois Minutos de Ódio mudava todos os dias, porém sem que Goldstein deixasse de ser o seu personagem principal. Afinal, ele era o traidor original, o primeiro a macular a pureza do Partido. Todos os crimes contra o Partido que se seguiram ao dele – todas as traições, atos de sabotagem, heresias e desvios – eram o resultado direto dos seus ensinamentos. Ele por certo ainda estava vivo em alguma parte do mundo, tramando suas conspirações: talvez do outro lado do mar, sob a proteção de seus

benfeitores estrangeiros; quiçá até mesmo – era o boato que por vezes corria – nalgum esconderijo dentro das fronteiras da própria Oceania. Winston sentiu seu diafragma contraindo. Nunca conseguia encarar a face de Goldstein sem ser invadido por um doloroso misto de emoções. Era um rosto judaico, magro, com um halo de cabelo branco e um pequeno cavanhaque – um rosto com ar de inteligência e, por alguma razão, intrinsecamente desprezível, que denunciava uma espécie de tolice senil no longo nariz esguio, no qual se equilibravam um par de óculos. Sua face lembrava uma ovelha, e mesmo a sua voz remetia a um balido. Goldstein lançava o mesmo discurso peçonhento de sempre contra as doutrinas do Partido – um ataque tão desmedido e perverso que mesmo uma criança seria capaz de refutá-lo, e mesmo assim suficientemente plausível para deixar o cidadão alarmado, pelo receio de que outras pessoas menos equilibradas ainda pudessem ser ludibriadas pelo que era dito. Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia um acordo de paz imediato com a Eurásia, defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião e a liberdade de pensamento. Ele gritava de forma histérica que a revolução havia sido traída – e tudo isso numa linguagem rápida, polissilábica, que era uma espécie de paródia do estilo usual dos oradores do Partido, inclusive se valendo de algumas palavras em Novalíngua: ainda assim, mais palavras em Novalíngua do que qualquer membro do Partido costumava usar na vida real. E durante todo o discurso, para que não persistissem dúvidas quanto à realidade encoberta pela lenga-lenga enganadora de Goldstein, marchavam por trás de sua figura, na teletela, intermináveis colunas do exército eurasiano – fileiras e mais fileiras de homens de aspecto sólido e fisionomias asiáticas, sem expressão, que vinham até a superfície da tela e sumiam, seguidos por mais uma fileira de soldados idênticos. O ritmo monótono das botas dos soldados servia como pano de fundo sonoro para os balidos histéricos de Goldstein. Antes do Ódio ter sido transmitido por trinta segundos, metade da plateia já soltava incontroláveis exclamações de fúria. Era intolerável assistir aquele rosto ovino cheio de arrogância discursando na tela, seguido logo atrás pelo desfile aterrador do exército eurasiano. Além disso, ver ou mesmo pensar em Goldstein produzia imediatamente medo e raiva. Ele era, dessa forma, um objeto de ódio mais constante do que a Eurásia ou a Lestásia, uma vez que quando a Oceania se encontrava em guerra com uma dessas potências, invariavelmente estava em paz com a outra. Todavia, o estranho era que, muito embora Goldstein fosse odiado e

desprezado por todo mundo, e muito embora todos os dias, milhares de vezes ao dia, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas e comparadas ao lixo, nas tribunas, nas teletelas, nos jornais e nos livros, muito embora tudo isso se asse há anos, a sua influência nunca parecia estar diminuindo. Sempre havia novos imbecis a espera de serem ludibriados. Não se ava um único dia sem que espiões e sabotadores, obedientes a ele, não fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento. Ele era o comandante de um imenso exército de sombras, de uma rede subterrânea de conspiradores dedicados à derrubada do Estado. A Irmandade, era como eles supostamente eram chamados. Também circulavam rumores acerca de um terrível livro, uma espécie de compêndio de todas as heresias, da autoria do próprio Goldstein, que circulava de forma clandestina aqui e ali. Era um livro sem título. Quando precisavam se referir a ele, o chamavam simplesmente de O LIVRO. Mas só era possível tomar conhecimento de tais coisas por via de boatos um tanto vagos. Nem a Irmandade nem O LIVRO eram temas usuais das conversas de um membro ordinário do Partido. No segundo minuto de transmissão o Ódio alcançou um frenesi. A plateia pulava nas cadeiras, berrando a plenos pulmões, na tentativa de abafar a voz alucinante que emergia da tela. A mulher franzina e ruiva ficou toda rosada, abrindo e fechando a boca como um peixe fora d’água. Até o rosto severo de O’Brien estava corado. Ele estava demasiadamente ereto em sua cadeira; seu peito largo se estufava e estremecia como se estivesse sendo atingido por uma viga. A garota de cabelo escuro sentada atrás de Winston começou a berrar “Porco! Porco! Porco!”, e de repente pegou um pesado dicionário de Novalíngua e o atirou contra a tela. O volume atingiu o nariz de Goldstein e caiu no chão; sua voz, no entanto, prosseguia inexorável. Num momento de lucidez, Winston se deu conta de que também estava gritando como os outros, e batendo os pés violentamente contra a trave da sua cadeira. O mais horrível dos Dois Minutos de Ódio era que embora ninguém estivesse obrigado a participar, era praticamente impossível se manter de fora daquele frenesi. Em trinta segundos já não era mais necessário fingir nada. Um terrível êxtase de medo e sentimento de vingança, um desejo de matar e torturar, de afundar rostos alheios com uma marreta, tudo isso parecia circular a plateia toda, tal qual uma corrente elétrica, transformando a todos, mesmo contra a sua vontade, em lunáticos a uivar, com as faces deformadas pela fúria. E, ainda assim, a fúria que as pessoas sentiam era uma emoção abstrata, sem direção, que

poderia ar de um alvo ao outro como a chama de um maçarico. Dessa forma, havia momentos em que a raiva de Winston não se direcionava mais contra Goldstein, mas sim contra o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento; e em tais momentos o seu coração se tornava solidário daquele herege solitário e ridicularizado na tela, como se ele fosse o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. Porém, já no instante seguinte ele se juntava novamente aqueles a sua volta, de modo que tudo o que diziam sobre Goldstein já lhe parecia outra vez a verdade. Nesses momentos, o seu ódio oculto contra o Grande Irmão se metamorfoseava em adoração, e o Grande Irmão parecia ainda maior, um guardião destemido e invencível, uma rocha firme colocada entre eles e as hordas da Ásia; e Goldstein, apesar do seu isolamento, da sua vulnerabilidade e da própria dúvida acerca da sua existência, se transformava num mago sinistro, capaz de esfacelar os alicerces da civilização pelo mero poder de sua voz. Em tais momentos era até possível direcionar o ódio neste ou naquele rumo, como um ato voluntário. Então, de repente, graças a um violento esforço como aquele que, num pesadelo, se arranca a cabeça do travesseiro, Winston conseguiu redirecionar todo o ódio que sentia pela figura na teletela para a garota de cabelo escuro sentada logo atrás dele. Assim, alucinações belas e vívidas aram por sua mente. Haveria de assassiná-la a golpes de cassetete de borracha. Haveria de amarrá-la inteiramente nua a um poste, e depois a crivaria de flechas, como São Sebastião. Haveria de estuprá-la e a degolaria bem no momento do gozo. Ademais, agora lhe parecia um tanto mais claro do que antes PORQUE ele a odiava. Ele a odiava porque era jovem, bela e assexuada, porque queria ir para a cama com ela e jamais o faria, porque ao redor da sua adorável cintura tão maleável, que parecia pedir que a envolvessem com o braço, havia tão somente aquela odiosa faixa escarlate, um símbolo agressivo de castidade. O Ódio alcançou o seu clímax. A voz de Goldstein havia se transformado de fato num balido de ovelha, e por um instante até mesmo seu rosto se metamorfoseou num semblante de carneiro. Depois o semblante de carneiro se dissolveu e deu lugar ao rosto de um soldado eurasiano que parecia avançar contra a plateia, terrível e imenso, com sua metralhadora de mão rugindo – era como se ele estivesse por saltar da tela, e tudo era tão real que alguns dos que estavam na primeira fileira se inclinaram para trás em seus assentos. No entanto, naquele mesmo instante, a figura ameaçadora se transformou no rosto do Grande Irmão, com seus cabelos e bigodes pretos, cheio de força e de misteriosa tranquilidade, uma face tão gigantesca que preenchia a teletela por inteiro. Ninguém realmente

escutava o que o Grande Irmão dizia. Eram tão somente algumas palavras de estímulo, o tipo de coisa que se diz no fragor da batalha, impossíveis de se distinguir isoladamente, mas que restauram a confiança pelo mero fato de serem pronunciadas. Então o rosto do Grande Irmão sumiu novamente, e em seu lugar surgiram os três lemas do Partido, em letras garrafais:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Entretanto, a face do Grande Irmão pareceu persistir na tela por vários segundos, como se o seu impacto nas retinas dos presentes na plateia fosse forte demais para desvanecer tão rápido. A mulher franzina e ruiva havia se jogado à frente, apoiando-se no encosto da cadeira que estava diante de si. Com um sussurro vacilante, que parecia querer dizer “Meu Salvador!”, estendeu os braços para a teletela. Logo após, escondeu o rosto entre as mãos. Era visível que estava fazendo uma oração. Nesse instante toda a plateia ali presente irrompeu num canto grave, lento e ritmado, onde “G.I.!... G.I.!... G.I.!...” era repetido inúmeras vezes, com uma longa pausa entre o “G” e o “I” – um som sussurrante que afetava os ouvidos, por vezes curiosamente selvagem, no qual ao fundo talvez se pudesse escutar batidas de pés descalços e um rufo de atabaques. Aquilo durou em torno de trinta segundos. Era na realidade um refrão que se ouvia com certa frequência nos momentos de emoção avassaladora. Em parte era uma espécie de hino à sabedoria e à majestade do Grande Irmão; porém, mais que isso até, era um ato de auto-hipnose, um embotamento voluntário da consciência por meio do ritmo das vozes e dos instrumentos. Winston sentiu como se estivesse congelando por dentro. Durante os Dois Minutos de Ódio ele simplesmente não conseguia evitar se juntar aquele delírio coletivo, mas mesmo assim aquele cântico sub-humano de “G.I.!... G.I.!...” sempre o deixava apavorado. É claro que ele o cantava junto com os demais: seria impossível se portar de outra forma. Dissimular seus sentimentos, controlar a expressão facial, fazer o mesmo que os outros fazem: tudo era uma reação instintiva. Mas ocorreu um hiato de dois segundos durante o

qual a expressão de seus olhos talvez o tivesse traído. E foi exatamente em tal lapso que a coisa aconteceu – se é que de fato aconteceu. Por um breve momento, seus olhos se cruzaram com os de O’Brien, que havia se erguido do assento. Ele havia tirado os óculos e estava prestes a recolocá-los no rosto, o que era um gesto característico seu. Mas houve uma fração de segundos em que os seus olhares de entrecruzaram, e enquanto isso durou Winston soube – sim, SOUBE! – que O’Brien estava pensando a mesma coisa que ele. Uma comunicação inequívoca havia se dado entre eles. Era como se ambas as mentes tivessem se aberto e seus pensamentos fluído de uma para a outra através dos olhos. “Estou contigo”, O’Brien pareceu dizer. “Sei precisamente o que está sentindo. Sei de todo o seu desprezo, seu ódio, seu nojo. Mas não se preocupe, estou ao seu lado!” Em seguida aquele flash de empatia se dissipou por completo, e o rosto de O’Brien logo voltou a ser tão impenetrável quanto o de qualquer outra pessoa da plateia. Isso foi tudo, mas Winston já nem tinha certeza de que aquilo realmente aconteceu. Em todo caso, tais incidentes jamais deixavam sequela. Tudo o que faziam era manter viva, dentro dele, a fé ou a esperança de que existissem de fato mais inimigos do Partido. Afinal de contas, talvez fossem verdadeiros os rumores acerca da existência de vastas conspirações subterrâneas – quiçá a própria Irmandade fosse real! Afinal era impossível – a despeito das incontáveis prisões, confissões e execuções – ter a certeza absoluta de que a Irmandade não ava de mera invenção. Alguns dias ele acreditava na sua existência, noutros não. Não havia nenhuma prova cabal, apenas visões fugidias que podiam significar algo ou nada: trechos de conversas ouvidas de forma difusa, alguns rabiscos mal apagados nas paredes das cabines dos banheiros, coisas assim. Uma vez, inclusive, ao presenciar o encontro de dois estranhos, viu um pequeno movimento de mãos que talvez pudesse ser um sinal de reconhecimento. Mas era tudo palpite: muito provavelmente até tenha imaginado a coisa toda. Retornou ao seu cubículo de trabalho sem voltar a olhar na direção de O’Brien. A ideia de levar adiante aquele contato momentâneo sequer lhe ava pela cabeça. Ainda que soubesse como proceder, seria algo incomensuravelmente perigoso. Durante um segundo, quem sabe dois, eles haviam trocado um olhar ambíguo, e fim de papo. Mas até mesmo aquilo era um acontecimento memorável naquela solidão cerrada em que eles eram obrigados a viver. Winston despertou de seus devaneios e se acomodou melhor na cadeira. Soltou

um arroto. Era o gim em seu estômago começando a subir. Seus olhos voltaram a focar a página. Constatou que durante o tempo em que esteve ali sentado em devaneios, sentindo-se só e desamparado, havia continuado a escrever, numa espécie de ação automática. E já não era mais a letra pequenina e desajeitada de antes. A sua pena havia deslizado como uma libertina através do papel macio, escrevendo em letras grandes e nítidas:

ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO ABAIXO O GRANDE IRMÃO

Muitas vezes. Elas preenchiam a metade de uma página. Ele não conseguiu deixar de sentir uma pontada de pânico. Era absurdo, já que ter escrito aquelas palavras não era nada mais perigoso do que o próprio ato de iniciar um diário; mesmo assim, por um momento, teve a tentação de rasgar as páginas já escritas e abandonar por completo aquela ideia toda. Não o fez, porém, porque sabia ser algo inútil. Quer tivesse ou não tivesse escrito ABAIXO O GRANDE IRMÃO, era algo inteiramente irrelevante. Não fazia a menor diferença prosseguir ou não com aquele diário. A Polícia do Pensamento o descobriria de um jeito ou de outro. Ele havia cometido – ainda que não tivesse escrito nada no papel – o crime essencial, que englobava todos os demais dentro de si. Era chamado de pensamento-crime. O pensamento-crime não era algo que pudesse ser ocultado indefinidamente. Seria possível escondêlo durante algum tempo, às vezes por anos a fio, no entanto mais cedo ou mais tarde o criminoso sempre era pego. E era sempre à noite – as prisões invariavelmente ocorriam à noite. A

interrupção súbita do sono, a mão bruta sacudindo o ombro, as luzes cegando os olhos, o círculo de rostos impiedosos em torno da cama. Na grande maioria dos casos não havia julgamento, nem mesmo o registro da prisão. As pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a noite. Seus nomes eram removidos dos registros, todas as menções a qualquer coisa que tivessem realizado eram apagadas, suas existências anteriores eram negadas e logo mais totalmente esquecidas. Você era abolido, aniquilado: VAPORIZADO era o termo corriqueiro. Por um momento, Winston foi tomado por um ataque de histeria. Assim, foi logo escrevendo, em garranchos apressados:

me darão um tiro que isso me importa me darão um tiro na nuca não me importa abaixo o grande irmão eles sempre atiram na nuca não me importa abaixo o grande irmão...

Ele se recostou outra vez na cadeira, ligeiramente envergonhado de si mesmo, e largou a pena. Logo em seguida levou um susto imenso. Batiam na sua porta. Já?! Ele permaneceu sentado, imóvel como um rato, esperando que a pessoa fosse embora sem insistir. Mas não, bateram outra vez. Seria ainda pior se atrasar para atender. Com seu coração batendo tal qual um tambor – mas com o rosto provavelmente sem expressão alguma, fruto do velho hábito – ele se levantou e se dirigiu à porta, pé ante pé.

2.

Assim que colocou sua mão na maçaneta da porta, Winston viu que havia deixado o seu diário aberto em cima da mesa. Preenchendo a página inteira em letras garrafais, as frases de ABAIXO O GRANDE IRMÃO quase podiam ser lidas do outro lado da sala. Ele tinha cometido um erro inconcebivelmente estúpido. Percebeu, no entanto, que mesmo em pânico não quisera borrar o belo papel creme fechando o diário com a tinta ainda úmida. Enfim respirou fundo e abriu a porta. No mesmo instante sentiu uma onda de alívio pelo corpo. Uma mulher branquela, de aparência cansada, cabelo ralo e pele enrugada estava parada do lado de fora.

“Ah camarada”, começou a falar, com voz monótona e queixosa, “eu realmente imaginei ter ouvido você chegar. Por acaso você poderia vir dar uma olhada na minha pia da cozinha? Ela está entupida e...”

Era a sra. Parsons, esposa de um vizinho do mesmo andar. (“Sra.” era um termo que vinha sendo descontinuado pelo Partido – o ideal seria chamar todo mundo de “camarada” – mas para se referir a certas mulheres o seu uso era ainda quase que instintivo.) Ela devia ter uns trinta anos, mas parecia bem mais velha. Dava a impressão de acumular poeira entre as rugas. Winston a seguiu pelo corredor. Esses consertos amadores eram uma amolação quase que diária. As Mansões Vitória eram um edifício antigo, erguido por volta de 1930, e estava todo caindo aos pedaços. O reboco do teto e das paredes vivia despencando, o encanamento rompia com qualquer geada mais forte, havia goteiras sempre que nevava um pouco, o sistema de aquecimento costumava operar a baixa potência – isso quando não era desligado por razões de economia. Os consertos, a exceção daqueles tocados pelos próprios inquilinos, dependiam da autorização de comitês iníveis, capazes de retardar em dois anos uma mera troca de vidraça quebrada.

“Claro que só lhe peço essa ajudinha porque o Tom não está em casa”, disse a sra. Parsons, de maneira um tanto vaga.

O apartamento dos Parsons era maior que o de Winston, e desbotado a sua própria maneira. Tudo tinha um aspecto surrado, amassado, como se a casa tivesse acabado de receber a visita de um animal grande e violento. órios esportivos – tacos de hóquei, luvas de boxe, uma bola de futebol furada, um par de shorts suados virados do avesso – se encontravam espalhados pelo chão, e sobre a mesa havia uma pilha de pratos sujos e de livros de exercícios com as orelhas dobradas. Pelas paredes se viam bandeiras escarlates da Liga Juvenil e dos Espiões, e um pôster em tamanho real do Grande Irmão. Pelo ar ava o costumeiro aroma de repolho cozido, que era onipresente em todo aquele edifício. Mas ali ele estava misturado com uma catinga mais perceptível de suor – isso ficava claro na primeira fungada, embora fosse difícil dizer por quê. Era o suor de uma pessoa que não estava mais lá. Noutra sala alguém usava um pente e um pedaço de papel higiênico para tentar acompanhar o ritmo da marcha militar que prosseguia sendo tocada pela teletela.

“São as crianças”, disse a sra. Parsons, dirigindo uma olhadela apreensiva para a porta. “Elas não saíram de casa hoje. E naturalmente...”

Ela tinha por hábito deixar as frases pela metade. A pia da cozinha estava cheia até quase a borda de uma água imunda, esverdeada, com um fedor inável de repolho. Winston se ajoelhou e verificou como estava o cotovelo do cano. Detestava usar as mãos, assim como ter de se abaixar – o que sempre poderia causar um ataque de tosse. A sra. Parsons ficou apenas observando, sem ideia do que fazer.

“É claro que se Tom estivesse em casa, consertaria isso num instante”, disse ela. “Ele gosta desse tipo de serviço. É tão jeitoso com essas coisas manuais!”

Parsons era colega de trabalho de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem gorducho, porém ativo, de uma estupidez paralisante, uma verdadeira massa de entusiasmo imbecil – um desses burros de carga absolutamente submissos e dedicados dos quais dependia a estabilidade do Partido, até mais do que da Polícia do Pensamento. Aos trinta e cinco anos fora desligado a contragosto da Liga Juvenil, e antes de ter entrado nela já havia conseguido ficar nos Espiões um ano além da data limite prevista nos estatutos. No Ministério, ele trabalhava num cargo subordinado, para o qual não era preciso inteligência; por outro lado, era uma figura proeminente no Comitê Esportivo, assim como em todos os demais comitês responsáveis pela organização de caminhadas comunitárias, manifestações espontâneas, campanhas de economia e atividades voluntárias em geral. Com um orgulho disfarçado, entre uma e outra baforada de seu cachimbo, dizia para quem quisesse ouvir que ele tinha comparecido ao Centro Comunitário todas as noites ao longo dos últimos quatro anos. Uma tremenda inhaca de suor, uma espécie de testemunho inconsciente da dureza de sua vida, o seguia por toda parte que fosse, e continuava no ambiente mesmo após ele ter saído.

“Você por acaso tem uma chave inglesa?”, perguntou Winston, tentando desenroscar o cotovelo do cano.

“Uma chave inglesa?”, disse a sra. Parsons, naquele instante se comportando como um ser invertebrado. “Não sei não. Quem sabe as crianças...”

Seguiu-se um estrondo de botinadas no chão e outro esporro no armário quando as crianças surgiram correndo pela sala. A sra. Parsons trouxe a chave inglesa. Winston deixou escorrer a água do encanamento e, com nojo, retirou o chumaço de cabelo humano que entupia o cano. Lavou as mãos o melhor que pôde na água fria da torneira e retornou à sala.

“Mãos ao alto!”, gritou uma voz selvagem.

Um garotinho bonito, de uns nove anos, com cara de encrenqueiro, tinha surgido detrás da mesa, e agora o ameaçava com uma pistola automática de brinquedo. Já a sua irmãzinha, cerca de dois anos mais jovem, o imitava empunhando um pedaço de madeira. Ambas as crianças vestiam calções azuis, camisetas cinza e os lenços vermelhos de amarrar no pescoço que faziam parte do uniforme dos Espiões. Winston levantou as mãos acima da cabeça, mas não sem sentir uma intuição incômoda – o jeito que o menino falava era tão perturbador que a coisa toda já não se parecia com uma mera brincadeira.

“Você é um traidor!”, berrou o menino. “É um criminoso do pensamento! Um espião eurasiano! Eu vou te matar, vou te vaporizar, vou te mandar para as minas de sal!”

De repente as duas crianças aram a saltar em volta dele, berrando “Traidor!” e “Criminoso do pensamento!”; sendo que a garotinha imitava tudo o que o irmão fazia. Era algo um tanto apavorante, como ver tigrezinhos dando cambalhotas: em pouco tempo irão crescer e se tornar devoradores de homens. Nos olhos do menino era possível notar uma espécie de ferocidade calculista, um desejo mais do que evidente de socar ou dar um pontapé em Winston, e a consciência de ter quase o tamanho necessário para tal. Ainda bem que não tinha nas mãos uma pistola de verdade, pensou Winston. Os olhos da sra. Parsons saltavam nervosamente de Winston para as crianças, e então de volta para ele. Sob a luz mais forte da sala, ele reparou, até com certo interesse, que de fato havia poeira nas rugas do seu rosto.

“Eles fazem uma tremenda bagunça”, disse ela. “Estão desapontados porque não puderam ver o enforcamento, é isso. Eu não tenho tempo para levá-los, e o Tom não vai chegar a tempo do trabalho.”

“Por que a gente não pode ir ao enforcamento?”, perguntou o garoto com seu vozeirão.

“Quero vê enforcamento! Quero vê enforcamento!”, cantarolou a garotinha, enquanto continuava a saltitar pela sala toda.

Alguns prisioneiros eurasianos, criminosos de guerra, seriam enforcados no Parque naquela noite. Isso ocorria uma vez por mês e era um grandioso espetáculo popular. As crianças sempre pediam aos pais que as levassem para ver. Winston se despediu da sra. Parsons e se dirigiu até a porta. Mas mal havia dado uns seis os pelo corredor quando algo o acertou na nuca, uma pancada bem dolorida. De fato, foi como se ele tivesse sido atingido por um arame em brasa. Winston se virou a tempo de ver a sra. Parsons arrastando o filho para dentro do apartamento, enquanto o menino metia um estilingue no bolso.

“Goldstein!”, gritou o garotinho antes de sua mãe fechar a porta. No entanto, o que mais deixou Winston impressionado foi o olhar de pânico e impotência estampado no rosto cinzento daquela mulher.

De volta ao seu apartamento, zuniu ando diante da teletela e tornou a sentarse à mesa, ainda massageando a nuca dolorida. A música da teletela havia cessado. Foi substituída por uma voz militar que lia, com um certo prazer na voz, uma descrição dos armamentos da nova Fortaleza Flutuante que acabara de ser ancorada no mar entre a Islândia e as Ilhas Faroe. Com crianças como aquelas, pensou Winston, essa mulher miserável deve levar uma vida aterrorizante. Após um ou dois anos elas começarão a vigiá-la dia e noite, em busca do menor sintoma de heterodoxia. Naqueles dias quase todas as crianças eram horríveis. O pior de tudo é que com a ajuda de organizações como a dos Espiões, elas eram sistematicamente convertidas em pequeninos selvagens

incontroláveis – mas nunca ao ponto de demonstrarem a mínima inclinação a se rebelarem contra a disciplina do Partido. Tanto o oposto, elas adoravam o Partido, e tudo o que tinha ligação com ele. As canções, os desfiles, as bandeiras, as marchas, os exercícios com rifles de madeira, gritar as palavras de ordem, adorar o Grande Irmão – tudo isso era, para elas, como uma espécie de jogo eletrizante. Toda a sua ferocidade era colocada para fora, direcionada contra os inimigos do Estado, contra os estrangeiros, os traidores, os sabotadores, os criminosos do pensamento. Era quase que natural que os pais com mais de trinta anos tivessem algum medo dos próprios filhos. E razões não faltavam, pois era rara a semana em que o Times não publicava ao menos uma nota descrevendo como um bisbilhoteiro pequenino – “herói mirim” era normalmente a expressão usada – ouviu algum comentário comprometedor vindo dos próprios pais, e os denunciou à Polícia do Pensamento. A ferroada do estilingue já não doía mais. Winston apanhou a caneta, sem muito ânimo, perguntando a si mesmo se encontraria mais alguma coisa relevante para registrar no diário. De repente voltou a pensar em O’Brien. Alguns anos atrás – quantos? Devia ser em torno de uns sete – ele havia sonhado que estava caminhando num quarto completamente escuro. E alguém que estava sentado ao lado disse, quando o sentiu ar por perto: “Ainda nos encontraremos lá onde não há trevas”. Isso foi dito baixinho, de maneira praticamente casual – era uma afirmação, não uma ordem. E ele seguia em frente, sem se deter onde estava. O curioso é que naquela época, naquele sonho, aquelas palavras não lhe causaram nenhuma impressão em especial. Somente tempos depois, aos poucos, é que elas começaram a adquirir algum significado para ele. Agora ele já não conseguia lembrar se tinha visto O’Brien pela primeira vez antes ou depois daquele sonho; e muito menos se recordava de quando havia identificado a primeira vez a voz do sonho como sendo a de O’Brien. Em todo caso, a associação era hoje inegável: foi O’Brien quem lhe sussurrou na escuridão. Winston nunca soube ao certo – mesmo depois da troca de olhares daquela manhã, era impossível ter certeza – se O’Brien era amigo ou inimigo. Nem isso realmente lhe parecia ter alguma importância. Havia entre eles um laço de compreensão que ia além do afeto ou da comunhão de ideias. “Ainda nos encontraremos lá onde não há trevas”, ele disse. Winston não sabia o que diabos isso significava, apenas tinha a intuição de que, de uma forma ou de outra, aquilo ainda se tornaria realidade.

A voz da teletela fez uma pausa. Um toque de trompete, límpido e belo, pairou no ar estagnado. A voz seguiu falando com aspereza:

“Atenção! Atenção, por favor! Acaba de chegar uma notícia do fronte em Malabar. Nossas forças no sul da Índia conquistaram uma vitória gloriosa. Estou autorizado a informar que a conquista que noticiamos aqui pode muito bem deixar a guerra próxima de um final. Eis a notícia...”

Más notícias chegando, pensou Winston. E, de fato, após a descrição sanguinolenta da aniquilação de um exército eurasiano, com um imenso número de soldados inimigos mortos ou capturados, veio o anúncio de que, a partir da semana seguinte, a ração de chocolate seria reduzida de trinta para vinte gramas. Winston soltou mais um arroto. O efeito do gim já estava ando, deixando em seu lugar uma sensação de vazio. A teletela – fosse para celebrar a vitória, fosse para apagar a memória da porção de chocolate perdida – atacou com Oceania, glórias a ti. Era um dever de todos ouvirem aquele hino de pé. No entanto, na posição em que ele estava, era como se fosse invisível para a teletela. Após Oceania, glórias a ti, veio uma música mais leve. Winston se dirigiu à janela, sempre mantendo as costas para a teletela. O dia continuava frio e sem nuvens no céu. Nalgum lugar ao longe uma bomba-foguete explodiu num estrondo surdo, que ecoou até ali. Atualmente umas vinte ou trinta bombas como aquela atingiam Londres toda semana. Lá embaixo, na rua, o vento ainda agitava o cartaz rasgado, mostrando e ocultando a palavra INGSOC. Ingsoc. Os princípios sagrados do Ingsoc. Novalíngua, duplipensamento, a mutabilidade do ado. Winston tinha a sensação de estar perambulando pelas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde ele mesmo era o monstro. Estava completamente só. O ado, morto. O futuro, inimaginável. Que certeza ele poderia ter de que naquele momento um ser humano, uma pessoa que fosse, estaria do seu lado? E como saber se o domínio do Partido não persistiria PARA SEMPRE? Como uma resposta, ressurgiram em sua mente os três lemas estampados na fachada branca do Ministério da Verdade:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos. Ali também, em letras minúsculas, porém bem legíveis, estavam gravadas as mesmas frases; e, do outro lado da moda, havia a cabeça do Grande Irmão. Até mesmo numa moedinha aqueles olhos o perseguiam. Nas moedas, nos selos, nas capas dos livros, em bandeiras, em cartazes e até nos maços de cigarro – em toda parte. Sempre aqueles olhos a encará-lo, e a voz a envolvê-lo. Dormindo ou acordado, trabalhando ou comendo, dentro ou fora de casa, no banheiro ou na cama – não havia escapatória. Exceto pelos poucos centímetros que cada um possuía em seu próprio crânio, nada mais era realmente uma propriedade individual. O sol avançou pelo céu e, pela sombra, as infindáveis janelas do Ministério da Verdade pareciam tão sinistras quanto às seteiras de uma fortaleza medieval. O coração de Winston bateu descomado diante daquele imenso vulto em forma de pirâmide. O edifício era basicamente inexpugnável de tão sólido, não havia como tomá-lo de assalto. Nem mesmo mil bombas-foguetes seriam capazes de reduzi-lo a escombros. Ele voltou a se perguntar para quem estaria escrevendo aquele diário: para o futuro, para o ado – quiçá para alguma época imaginária? E diante dele se revelava não a morte, mas o aniquilamento. O diário seria reduzido a cinzas, e ele seria vaporizado. Encontraria leitores somente dentro da Polícia do Pensamento, antes de ser eliminado da existência. Como ele poderia pedir socorro ao futuro, quando nem um mísero rastro da sua vida, nem mesmo uma palavra anônima rabiscada num pedaço de papel, teria alguma esperança de sobrevivência física? A teletela anunciou que eram catorze horas. Precisava sair em dez minutos. Tinha de estar de volta ao trabalho às catorze e trinta. Curiosamente, a marcação das horas pareceu lhe conferir um ânimo renovado. Ele não ava de um fantasma solitário afirmando uma verdade que ninguém jamais poderia ouvir. Mas, enquanto ela continuasse sendo afirmada, de algum

modo estranho a continuidade da sua existência não seria rompida. Afinal, não era somente por se fazer ouvida, mas sobretudo pela preservação da própria sanidade mental, que uma pessoa era capaz de transmitir a sua herança humana. Assim, ele retornou à mesa, molhou sua pena e escreveu:

Ao futuro ou ao ado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens possam ser diferentes uns dos outros, em que não sejam tão solitários – a uma época em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Saudações da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento!

Ele já estava mesmo morto, refletiu. Mas lhe pareceu que foi somente ali, após começar a ser capaz de formular as suas ideias, que o o decisivo tinha sido dado. As consequências de cada uma de suas ações estavam contidas na ação em si. Escreveu em seguida:

O pensamento-crime não leva à morte: o pensamento-crime É a morte.

Agora que se reconhecia como um cadáver andante, tornava-se importante permanecer vivo pelo maior tempo possível. Dois dedos da sua mão direita estavam manchados de tinta. Era exatamente o tipo de pequeno detalhe que poderia condená-lo. Algum enxerido do Ministério (provavelmente uma mulher; alguém como aquela de cabelo ruivo, ou a morena do Departamento de Ficção) poderia querer saber por que ele havia ado o seu intervalo de almoço escrevendo, por que teria usado uma pena antiga, O QUE exatamente teria escrito – e depois soltar alguma insinuação no local adequado. Winston foi ao banheiro e lavou os dedos cuidadosamente com um sabonete marrom-escuro que raspava a pele como se fosse uma lixa; e que, portanto, atendia muito bem ao seu propósito.

Guardou o diário em sua gaveta. Não fazia o menor sentido se preocupar em escondê-lo, mas poderia ao menos garantir que a sua eventual descoberta não lhe aria desapercebida. Um fio de cabelo atravessado na margem da página era óbvio demais. Assim, com a ponta do dedo ele recolheu um grãozinho identificável de pó esbranquiçado e o depositou num canto da capa, de onde certamente voaria se alguém tocasse no caderno.

3.

Winston estava sonhando com sua mãe. Já deveria fazer uns dez ou onze anos desde que ela desapareceu, ele pensou. Era uma mulher alta, majestosa, um tanto calada, de movimentos lentos e um magnífico cabelo loiro. Do pai ele se recordava ainda mais vagamente: era moreno e magricela, trajava sempre roupas escuras e impecáveis (Winston se lembrava especialmente das solas finas dos seus sapatos), e usava óculos. É evidente que os dois deviam ter sido tragados num dos primeiros grandes expurgos dos anos 1950. Naquele momento, no entanto, em seu sonho sua mãe estava sentada a sua frente, num lugar fundo, com a sua irmãzinha no colo. Ele já não se lembrava dela senão como um bebê frágil, sempre calada, de olhos grandes e atentos. Ambas o encaravam. Todos estavam nalgum subterrâneo – no fundo de um poço, quiçá de uma sepultura bem profunda –, mas era um lugar que, mesmo já estando abaixo do lugar onde ele se encontrava, continuava a submergir, cada vez mais. As duas estavam no salão de um navio que tinha naufragado, e olhavam fixamente para ele, mesmo através da água cada vez mais turva. Ainda havia ar no salão, de modo que ele podia vê-las, assim como elas podiam vê-lo; mas durante todo o tempo as duas continuavam a afundar, submergindo nas águas verdes, que em poucos momentos haveria de ocultá-las para sempre. Ele estava na parte de cima, onde havia luz e ar por respirar, enquanto elas eram sugadas para a morte, e só estavam lá embaixo porque ele estava em cima. Ele sabia disso, elas sabiam disso, e era visível em suas fisionomias que sabiam. Mas não havia censura alguma, nem no olhar nem no coração das duas, apenas a certeza de que deveriam morrer para que ele pudesse continuar vivo, e que tudo aquilo era uma parte da ordem inevitável das coisas. Não conseguia se lembrar do que havia sucedido, mas no sonho ele sabia que, de um jeito ou de outro, as vidas da sua mãe e da sua irmã tinham sido sacrificadas em troca da dele. Era um desses sonhos que, ainda que mantivesse o cenário onírico característico, se comportava na realidade como uma continuação da vida intelectual da pessoa, e no qual se toma consciência de fatos e ideias que continuamos achando novos e valiosos mesmo após termos acordado. A questão

que naquele momento atingiu Winston como um golpe foi a constatação de que a morte da sua mãe, quase trinta anos antes, havia sido trágica e dolorosa de um modo que hoje já não seria mais possível. Ele se deu conta que a tragédia pertencia aos tempos antigos, a uma época em que ainda havia vida privada, amor e amizade, e em que os membros de uma família amparavam uns aos outros sem precisar saber por quê. A memória da sua mãe lhe doía o coração porque ela tinha morrido amando-o, num tempo em que ele era criança e egoísta demais para poder correspondê-la; e também porque, de algum modo que ele já não se recordava, ela havia se sacrificado a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Ele se dava conta que tais coisas já não tinham como ocorrer agora. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, mas sem nenhuma dignidade na emoção, sem espaço algum para tristezas profundas e complexas. Tudo isso ele teve a sensação de contemplar nos grandes olhos da mãe e da irmã, mesmo através da água esverdeada em que elas afundavam, centenas de metros abaixo de onde ele se encontrava. No momento seguinte ele se viu numa relva curta e viçosa, numa tardinha de verão em que os últimos raios de sol douravam o solo. A paisagem que ele via diante de si era tão recorrente em seus sonhos que ele nunca podia ter certeza se já a havia visto ou não no mundo real. Em suas divagações, já desperto, ele a chamava de Terra Dourada. Era um velho pasto um pouco estragado pelas dentadas dos coelhos, cortado por uma trilha sinuosa, e pontilhado por alguns morrinhos de toupeira. Na sebe irregular do outro lado do campo, a brisa acariciava os ramos dos olmos, e suas folhas farfalhavam em densas massas, lembrando os cabelos de uma mulher. Ali por perto, embora além da vista, havia um riozinho de águas límpidas correndo bem devagar; através do seu percurso, os robalos nadavam nas poças à sombra dos chorões. A garota do cabelo escuro atravessava o campo, vindo em sua direção. Com o que pareceu a Winston ter sido um único movimento, ela arrancou suas roupas e as atirou para o lado, com desdém. Seu corpo era alvo e liso, mas não despertou nele qualquer desejo. Na verdade, mal se deu conta dele. O que o possuiu naquele instante foi a iração pelo gesto da garota atirando suas roupas para o lado. Com sua graça e displicência, era um gesto que parecia ser capaz de aniquilar a toda uma cultura, a todo um sistema de pensamento, como se o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento pudessem ser atirados ao nada com um único e glorioso gesto. Aquele era também um gesto que pertencia

aos tempos antigos. Winston despertou com a palavra “Shakespeare” nos lábios. A teletela soltava um zumbido ensurdecedor, que manteve o mesmo tom por uns bons trinta segundos. E, realmente, já era sete e quinze da manhã, a hora em que os funcionários dos escritórios precisavam se levantar. Winston arrastou o seu corpo para fora da cama com dificuldade – estava nu, uma vez que os membros do Partido Externo recebiam apenas três mil cupons de vestuário ao ano, e um único pijama custava seiscentos – e apanhou uma camisa encardida e um short que estavam sobre uma cadeira próxima. Dentro de três minutos começaria a Educação Física. No momento seguinte, ele foi acometido por um violento o de tosse, que quase sempre o atacava logo após acordar. Isso esvaziava os seus pulmões de tal maneira que ele só conseguia recomeçar a respirar se deitando de costas na cama e aspirando profundamente o ar algumas vezes. Tinha as veias saltadas de tanto tossir, e a sua úlcera varicosa já tinha começado a coçar.

“Grupo de trinta a quarenta!”, gritou uma voz feminina de arrebentar os tímpanos. “Grupo de trinta a quarenta! Tomem os seus lugares, por favor. De trinta a quarenta!”

Winston tomou sua posição de sentido diante da teletela, onde já aparecia a imagem de uma mulher bem jovem, magra porém musculosa, vestida de uniforme e sapatos de ginástica.

“Dobrando e esticando os braços!”, ela berrou. “Me acompanhem: UM, dois, três e quatro! UM, dois, três e quatro! Vamos lá, camaradas, quero ver mais energia nisso! UM, dois, três e quatro! UM, dois, três e quatro!...”

A dor pelo o de tosse não havia afastado completamente da mente de Winston a impressão deixada pelo sonho; e, de certa forma, os movimentos comados daquele exercício a trouxeram ainda mais à tona. Enquanto movia mecanicamente os braços para frente e para trás, fixando no próprio rosto a

expressão de prazer compenetrado que era recomendada para a Educação Física, dentro de si ele se esforçava para se recordar do período obscuro de sua infância. Era algo imensamente difícil. Até o fim da década de 1950 não havia nenhum grande problema; mas, dali para trás, tudo desvanecia e desbotava. Na falta de todo e qualquer registro externo a que se pudesse recorrer, até mesmo o contorno de sua própria vida perdia a nitidez. Era até possível evocar os acontecimentos mais notáveis, mas que muito provavelmente jamais haviam ocorrido. Ele se lembrava de detalhes de alguns incidentes, mas não conseguia recompor a sua atmosfera, e havia longos períodos em branco, aos quais nada se podia atribuir. No ado mais distante tudo era diferente. Até mesmo os nomes dos países e as suas fronteiras nos mapas. A Pista Um não tinha esse nome naquele tempo: era conhecida como Inglaterra ou Grã-Bretanha, muito embora Londres – disso ele tinha certeza quase absoluta – sempre foi chamada de Londres. Winston não conseguia mais se lembrar de uma época em que o seu país não estivesse em guerra, mas era evidente que houve um intervalo de paz bem longo durante a sua infância, uma vez que uma das suas recordações mais antigas era a de um bombardeio aéreo que de fato pareceu pegar a todos os habitantes de surpresa. Talvez até fosse mais ou menos na época em que Colchester foi atingida pela bomba atômica. Ele não se lembrava da imagem do bombardeio em si, mas podia ver seu pai segurando a sua mão com força, enquanto corriam para algum abrigo subterrâneo, dando diversas voltas numa escada espiralada que fazia um ruído debaixo de seus pés. Aquilo acabou cansando tanto as suas pernas que ele começou a chorar, e seu pai se viu forçado a parar para descansar. Sua mãe, com suas adas lentas e desconexas, vinha logo atrás deles. Ela carregava a sua irmãzinha no colo – ou quem sabe fosse somente uma trouxa de cobertas: ele não sabia ao certo se a irmã já tinha nascido naquele dia. Por fim alcançaram a um lugar barulhento e entupido de gente, que ele eventualmente descobriu ser uma estação de metrô. Havia gente sentada em todos os cantos, sobre o piso de pedra da estação. Outras estavam ainda mais comprimidas, sentadas em cima de beliches de metal. Winston, sua mãe e seu pai arrumaram um espaço no chão, perto de um velho e um velha sentados lado a lado numa das beliches. O velho vestia um terno escuro, de boa qualidade, e cobria os cabelos brancos com um boné preto. Seu rosto estava avermelhado, e seus olhos azuis carregados de lágrimas. Fedia a gim. Parecia mesmo que o gim exalava de sua pele tal qual suor, e seria até possível imaginar que as suas lágrimas eram de puro gim. No entanto, embora ele estivesse um pouco bêbado, também sofria sob o peso de uma dor genuína e

intolerável. Mesmo com a sua percepção infantil, Winston viu que algo terrível, para o qual não havia nem perdão nem remédio, tinha acabado de ocorrer. Ele parecia até mesmo saber do que se tratava: morreu no bombardeio alguém que o velho amava; uma netinha, quem sabe. Em curtos intervalos, ele seguia repetindo em voz alta:

“A gente não devia de tê confiado neles. Bem que eu te disse mãe, não disse? Foi nisso que deu tê dado confiança aqueles caras. Foi o que eu disse o tempo todo mãe: a gente não devia tê confiado nos traíras.”

Mas quem eram esses traíras que não mereciam confiança, Winston já não conseguia se lembrar. Desde mais ou menos aquela época, a guerra sucedeu literalmente sem pausas. Muito embora, a rigor, não fosse sempre a mesma guerra. Ao longo de vários meses, em sua infância, ocorreram embates confusos nas ruas da sua própria Londres, e de alguns deles ele se lembrava nitidamente. Mas reconstruir a história de todo aquele período, dizer quem lutava contra quem neste ou naquele momento, seria virtualmente impossível, já que nenhum registro escrito nem relato oral dos dias atuais jamais faziam qualquer tipo de referência a algum quadro político diferente do atual. Nos dias de hoje, por exemplo, em 1984 (se é que era 1984), a Oceania estava em guerra com a Eurásia, e era uma aliada da Lestásia. Assim sendo, em nenhuma manifestação pública ou particular jamais se itia que um dia as três potências tivessem se alinhado de forma diversa da atual. Na realidade, como Winston se recordava muito bem, fazia apenas uns quatro anos que a Oceania esteve em guerra com a Lestásia e em uma aliança com a Eurásia. No entanto, isso não ava de uma amostra de conhecimento furtivo que ele por acaso possuía graças ao fato de sua memória não estar corretamente controlada. Oficialmente, a mudança de alianças jamais ocorreu ou poderia ter ocorrido. A Oceania estava em guerra com a Eurásia: portanto, a Oceania sempre esteve em guerra com a Eurásia. O inimigo atual sempre representava o mal absoluto – e, dessa forma, era impossível ter existido qualquer aliança com ele no ado, assim como jamais haverá tal aliança no futuro.

O assustador, refletiu Winston pela décima milésima vez, enquanto forçava os ombros dolorosamente para trás (com suas mãos nas cadeiras, girava o tronco da cintura para cima, um exercício que se acreditava ser benéfico para os músculos das costas), o assustador era que talvez tudo aquilo fosse verdade. Se o Partido tem o poder de pôr suas mãos no ado e afirmar que este ou aquele evento na realidade NUNCA ACONTECEU, então pode ser mesmo verdade – ora, e isso não era mais apavorante do que a mera tortura ou a morte? O Partido afirmava que a Oceania jamais esteve aliada à Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceania tinha sido aliada da Eurásia há não mais do que quatro anos atrás. Onde, porém, existia tal conhecimento? Apenas em sua própria consciência, que em todo caso em breve seria aniquilada. E, se todos os demais aceitassem a mentira imposta pelo Partido – se todos os anais registrassem o mesmo –, então a mentira se transformava em história, em verdade. “Quem controla o ado controla o futuro: quem controla o presente controla o ado”, dizia o lema do Partido. E no entanto o ado, ainda que tivesse essa natureza alterável, na realidade nunca fora alterado. O que hoje era verdade fora verdade desde sempre. Era muito simples. A pessoa só precisava obter uma série infinda de vitórias sobre a sua memória. “Controle da realidade”, era como isso era chamado. Ou, em Novalíngua: “duplipensamento”.

“Descansar!”, latiu a instrutora, com um pouco mais de cordialidade na voz.

Winston deixou cair os braços e lentamente voltou a encher os pulmões de ar. Sua mente mergulhou no mundo labiríntico do duplipensamento. Saber e não saber; estar consciente de revelar-se cem por cento confiável ao contar mentiras cuidadosamente elaboradas; defender ao mesmo tempo duas opiniões opostas, sabendo que são contraditórias – e, ainda assim, crendo piamente em ambas; usar a lógica contra a própria lógica; repudiar a moralidade em nome da moralidade; crer na inviabilidade da democracia e, igualmente, que o Partido era o grande guardião da democracia; esquecer tudo o que fosse necessário esquecer, trazê-lo de volta à mente no momento necessário, e depois esquecer outra vez; e, acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a derradeira sutileza: induzir conscientemente a inconsciência, e daí tornar-se inconsciente do ato de hipnose recém-realizado. Até mesmo para compreender a palavra

“duplipensamento” era necessário o uso do duplipensamento. Nesse momento a instrutora ordenou que ficassem novamente em posição de sentido:

“Agora vamos ver quem é capaz de tocar a ponta dos pés!”, disse entusiasmada. “Sem dobrar os joelhos, camaradas, só a cintura. UM, dois! UM, dois!...”

Winston tinha verdadeiro ódio desse exercício. Ele invariavelmente causava dores nas suas pernas, desde os tornozelos até as nádegas, e muitas vezes lhe provocava novos os de tosse. A sensação semiprazerosa sumiu de suas meditações. O ado, ele refletiu em seguida, não apenas tinha sido alterado, como efetivamente destruído. Pois como era possível verificar o fato mais óbvio, quando o único registro da sua veracidade estava somente em sua memória? Tentou se recordar do ano exato em que ouviu a primeira menção ao Grande Irmão. Achou que o ano se encontrava entre as décadas de 1960 e 1970, mas era impossível ter certeza. Nas histórias do Partido, o Grande Irmão naturalmente figurava como o líder e o guardião da Revolução, desde os seus primeiros dias. Suas reflexões foram recuando no tempo, até atingir o mundo fabuloso dos anos 1940 e 1950, a época em que os capitalistas, com seus estranhos chapéus em forma de cilindro, ainda circulavam pelas ruas de Londres a bordo de imensos automóveis cintilantes, ou em carruagens puxadas por cavalos e com janelas de vidro. Já não era mais possível saber até onde essa lenda era verdade e até onde era invenção. Winston não conseguia se lembrar sequer da data da criação do Partido. Não lhe parecia que tivesse ouvido a palavra Ingsoc antes de 1960, mas era possível que na sua antiga forma, em Velhalíngua – “Socialismo inglês” –, ela tivesse sido usada antes daquele ano. Tudo desvanecia na névoa. Às vezes, no entanto, ainda podia apontar uma mentira específica. Não era verdade, por exemplo, que, como afirmavam os livros de história do Partido, o Partido tivesse inventado o avião. Ele se lembrava de ver aviões no céu desde a mais tenra infância. Mas não podia provar nada. Nunca havia prova. Apenas uma única vez, ao longo de toda a sua vida, teve em suas mãos uma prova documental inconfundível da falsificação de um fato histórico. E naquela ocasião...

“Smith!”, gritou a voz rabugenta na teletela. “6079 Smith W.! Sim, VOCÊ! Incline-se mais, por favor! Não, não está dando tudo o que pode, não está se esforçando. Incline-se, por favor! ASSIM, isso, agora está melhor camarada. Agora, todo mundo em posição de descanso. Olhem para mim.”

Um suor quente subitamente tomou conta de todo o corpo de Winston. O rosto, no entanto, continuava insondável. Jamais dar mostras de desânimo! Jamais revelar ressentimento! Um simples olhar poderia denunciá-lo. Assim, ficou observando enquanto a instrutora ergueu os braços acima da cabeça e – impossível dizer “graciosamente”, mas com notável exatidão e eficiência – se inclinou toda para encaixar a ponta do dedo das mãos debaixo dos dedos dos pés.

“AÍ ESTÁ, camaradas! É ASSIM que eu quero que vocês façam o exercício. Olhem de novo como eu faço. Tenho trinta e nove anos e já tive quatro filhos. Agora olhem só.” Ela voltou a dobrar o corpo todo. “Vocês podem ver que os MEUS joelhos não estão dobrados. Todos vocês também podem fazer isso. Basta querer”, acrescentou enquanto se levantava. “Qualquer pessoa com menos de quarenta e cinco anos é plenamente capaz de tocar os dedos dos pés. Nem todos têm o privilégio de poder lutar nas linhas de frente, mas ao menos podemos nos manter em forma. Pensem nos rapazes no fronte em Malabar! E nos marinheiros nas Fortalezas Flutuantes! Apenas pensem por um momento no que ELES têm de ar! Agora vamos tentar de novo. Agora está melhor, camarada, MUITO melhor”, acrescentou em tom de estímulo quando Winston, num tranco violento, conseguiu tocar os pés sem dobrar os joelhos pela primeira vez em muitos anos.

4.

Com um suspiro profundo, inteiramente inconsciente, que nem mesmo a proximidade de teletela o impedia de soltar no início de mais um dia de trabalho, Winston puxou o falaescreve para junto de si, soprou a poeira do bocal e colocou os óculos. Depois desenrolou e grampeou quatro pequenos rolos de papel que tinham caído do tubo pneumático à direita de sua mesa. Nas paredes da estação de trabalho havia três orifícios. À direita do falaescreve, um pequeno tubo pneumático destinado às mensagens escritas; à esquerda, um tubo de calibre maior, para os jornais; e na parede lateral, ao alcance do braço de Winston, uma grande abertura retangular protegida por uma grade de arame. Esta última destinava-se aos papéis a serem descartados. Aberturas similares existiam aos milhares, ou às dezenas de milhares, por todo o edifício: não apenas em cada sala, mas igualmente, em pequenos intervalos, ao longo de todos os corredores. Por algum motivo, tinham sido apelidados de buracos da memória. Quando se sabia que algum documento deveria ser destruído, ou mesmo quando se via um pedaço de papel usado pelo chão, era um gesto instintivo, automático, levantar a tampa do buraco da memória mais próximo e jogar o papel lá dentro, para que fosse sugado pela corrente de ar morno e levado até as imensas fornalhas ocultas nalgum canto das entranhas do edifício. Winston examinou as quatro tiras de papel que havia acabado de desenrolar. Cada uma continha em recado de somente uma ou duas linhas, no jargão abreviado – não era propriamente Novalíngua, mas consistia principalmente de palavras extraídas do vocabulário da Novalíngua – que os funcionários do Ministério utilizavam em suas comunicações internas. Diziam assim:

times 17.3.84 retificar discurso africa imprecisao times 19.12.83 checar erro edicao atual estimativa trimestre 3 - 4 83 times 14.2.84 retificar saldo chocolate imprecisao

times 3.12.83 reportar ordemdia duplomaisnaobom ref despessoas reescrever tudo subir antiarq

Com um tênue sentimento de satisfação, Winston pôs de lado a quarta mensagem. Era um trabalho complexo e de grande responsabilidade, que seria melhor deixar para o fim. Os demais eram simples questão de rotina, ainda que o segundo talvez exigisse uma tediosa pesquisa em incontáveis listas de números. Winston discou “edições anteriores” na teletela e solicitou os exemplares do Times de que precisaria para realizar suas tarefas, e em poucos minutos eles já deslizavam pelo tubo pneumático. As mensagens recebidas faziam referência a artigos ou notícias que, por um ou outro motivo, deveriam ser alterados; ou, como se dizia oficialmente, retificados. Por exemplo, o Times de 17 de março dava a impressão de que, num discurso proferido no dia anterior, o Grande Irmão previu que as coisas permaneceriam calmas no fronte sul da Índia, mas que o norte da África muito em breve veria um ataque das forças eurasianas. Entretanto, na realidade o Alto Comando da Eurásia tinha lançado um ataque sobre o sul da Índia, deixando o norte da África intocado. Assim sendo, se fazia necessário reescrever um parágrafo do discurso do Grande Irmão, de forma a garantir que a sua previsão estivesse de acordo com o que realmente ocorreu. Ou ainda, o Times de 19 de dezembro publicou as previsões oficiais da produção de vários artigos de consumo no quarto trimestre de 1983, correspondente ao sexto trimestre do Novo Plano Trienal. O jornal de hoje trazia uma notícia sobre a produção real, pela qual era possível verificar que os prognósticos de dezembro estavam bastante errados. O trabalho de Winston consistia em retificar os números das previsões originais, fazendo com que estivessem de acordo com os resultados da produção real. Já a terceira mensagem se referia a um erro muito simples, que poderia ser consertado em alguns minutos de trabalho. Recentemente, em fevereiro, o Ministério da Fartura veio a público com uma promessa (ou, nas palavras oficiais, um “compromisso categórico”) de não promover nenhum corte na ração de chocolate ao longo de 1984. Na verdade, como Winston sabia, a ração de chocolate deveria ser reduzida de trinta para vinte gramas no final daquela semana. Assim, bastava substituir a promessa original por uma advertência de que a ração de chocolate provavelmente sofreria alguma redução por volta do mês de abril.

Tão logo Winston retificou as mensagens, juntou com clipes as correções falaescritas aos exemplares correspondentes do Times e as introduziu no tubo pneumático. Em seguida, com um movimento que ele fez parecer tão inconsciente quanto possível, amassou as mensagens originais com duas ou três anotações que ele próprio tinha feito e atirou-as todas no buraco da memória para que fossem devoradas pelas chamas. Winston não sabia em detalhe o que diabos ocorria no labirinto invisível a que os tubos pneumáticos conduziam, mas tinha alguma ideia geral da coisa toda. Assim que fossem reunidas e catalogadas todas as correções consideradas necessárias para uma edição específica do Times, ela era reimpressa, a original era destruída, e o exemplar correto incluído no arquivo em seu lugar. Esse processo de contínua retificação se aplicava não apenas a jornais, como também a livros, publicações periódicas, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras, caricaturas, fotografias – enfim, a toda espécie de literatura ou documentação que pudesse ter a menor influência política ou ideológica. Dia a dia, praticamente minuto a minuto, o ado era atualizado. Dessa forma era possível demonstrar, com prova documental, a correção de todas as previsões feitas pelo Partido; sendo que, simultaneamente, todos os vestígios de notícia ou manifestação de opinião conflitante com as necessidades políticas do momento eram eliminados. Toda a história não ava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário. Uma vez realizada a operação, em nenhum caso seria possível comprovar qualquer fraude. A maior seção do Departamento de Registro, muito maior do que a de Winston, consistia simplesmente de funcionários que tinham por obrigação buscar e separar todos os exemplares de livros, jornais e outros documentos já superados pela realidade dos fatos, e portanto destinados à eliminação. Alguns números do Times que – devido a mudanças no alinhamento político ou em virtude de previsões equivocadas do Grande Irmão – podiam já ter sido reescritos uma dúzia de vezes continuavam arquivados com sua data original de publicação, sem que houvesse algum exemplar original para contradizer qualquer retificação. Os livros também eram recolhidos e reescritos incontáveis vezes, e invariavelmente nas reedições jamais se itia qualquer tipo de modificação. Nem mesmo nas instruções que Winston recebia por escrito, e das quais invariavelmente se desfazia assim que eram cumpridas, era ordenado ou insinuado qualquer ato de falsificação: a referência era sempre a erros, enganos, equívocos, deslizes que precisavam ser corrigidos ou retificados em prol da exatidão.

Se bem que, pensou enquanto reajustava os números do Ministério da Fartura, aquilo nem chegava a ser uma falsificação. Era tão somente a substituição de um absurdo por outro. Afinal, a maior parte daquele material não tinha qualquer relação com o mundo real – nem mesmo o tipo de ligação que existe numa mentida declarada. As estatísticas eram tão fantasiosas na versão original quanto na retificada. De fato, fazia parte da função de Winston e de seus colegas simplesmente inventar dados, tirando-os da própria cachola. Por exemplo, o cálculo do Ministério da Fartura previa a produção trimestral de botas em cento e quarenta e cinco milhões de pares, enquanto que a produção real oficial fora de sessenta e dois milhões. No entanto, ao reescrever a previsão, Winston a reduziu para apenas cinquenta e sete milhões de pares, de modo a abrir espaço para as costumeiras declarações de que a cota de produção tinha sido superada. Em todo caso, os sessenta e dois milhões não estavam mais próximos da verdade do que os cinquenta e sete milhões ou os cento e quarenta e cinco milhões. Era bem possível que nem um mísero par de botas tivesse de fato sido produzido. Mais provável ainda era que ninguém soubesse ao certo quantos pares tinham sido produzidos, tampouco fizesse questão de saber. O que se sabia sem sombra de dúvida era que em todos os trimestres uma quantidade astronômica de botas era produzida no papel, enquanto que possivelmente cerca da metade da população de Oceania andava pelas ruas com seus pés descalços. E assim se sucedia com todos os fatos registrados, pequenos ou grandes. Tudo se fundia e confundia num mundo sombrio em que, por fim, até mesmo o ano em que estavam se tornava algo incerto. Winston voltou o olhar para o outro lado do corredor. Numa estação de trabalho correspondente à sua, um homenzinho de cavanhaque escuro e ar escrupuloso chamado Tillotson trabalhava com afinco. Tinha um jornal dobrado sobre os joelhos e os lábios bem próximos do bocal do falaescreve. Dava a pinta de estar tentando manter sigilo acerca das coisas que dizia, mantendo as anotações entre ele e a teletela. Ergueu os olhos, e seus óculos projetaram um brilho hostil na direção de Winston. Winston mal conhecia Tillotson, e não fazia a menor ideia de qual tipo de trabalho lhe era incumbido fazer. Os funcionários do Departamento de Registro não costumavam tagarelar facilmente sobre as suas atividades. No longo corredor sem janelas, com suas duas fileiras de estações de trabalho, e o interminável farfalhar de papeis e jornais misturado com o zunido de vozes murmurando em cada falaescreve, havia uma boa dúzia de pessoas que Winston não conhecia nem de nome, embora as observasse ar apressadas pelo

pavimento, ou gesticular freneticamente nos Dois Minutos de Ódio. Sabia que na estação de trabalho vizinha a mocinha de cabelo ruivo labutava dia após dia, não fazendo outra coisa senão buscar e suprimir da imprensa os nomes de pessoas vaporizadas, e portanto consideradas inexistentes. Era justo que tivesse esse trabalho, pois seu marido tinha sido vaporizado há alguns anos. A algumas estações mais adiante da sua, uma criatura afável, ineficiente e sonhadora, de nome Ampleforth, com orelhas bastante peludas e um talento fora do comum para manipular rimas e métricas, vivia às voltas com a produção de versões adulteradas – chamadas de textos definitivos – de poemas que eventualmente se tornaram ideologicamente ofensivos, mas que, por esta ou aquela razão, não podiam ser eliminados das antologias. Aquele salão, com seus cerca de cinquenta funcionários, era nada mais que uma subseção, uma simples célula, podia-se dizer, da colossal complexidade do Departamento de Registro. Para cima, para abaixo e para os lados havia outros enxames de servidores executando uma incomensurável miríade de tarefas. Havia as imensas oficinas gráficas, com seus subeditores, seus peritos em tipografia e seus estúdios altamente sofisticados para a realização da adulteração de fotografias. Havia a seção de teleprogramas com seus engenheiros, seus produtores e suas equipes de atores especialmente selecionados por sua competência na imitação de vozes. Havia os exércitos de escriturários cujo trabalho consistia simplesmente na organização de listas de livros e periódicos a serem recolhidos de circulação. Havia os imensos depósitos onde eram armazenados os documentos retificados, e as fornalhas ocultas onde os originais eram aniquilados. E, em locais indeterminados, inteiramente anônimas, havia as cabeças dirigentes que coordenavam todo aquele esforço e estabeleciam as diretrizes políticas que tornavam necessário que este fragmento do ado fosse preservado, aquele retificado e aquele outro aniquilado da existência. E, no fim das contas, o Departamento de Registro não ava de uma pequena parte do Ministério da Verdade, cuja missão básica era não exatamente reconstruir o ado, mas fornecer aos cidadãos da Oceania jornais, filmes, livros didáticos, programas de teletela, peças, romances – com todo tipo imaginável de informação, ensino ou entretenimento, de estátuas a slogans, de poemas líricos a tratados de biologia, de cartilhas de ortografia a dicionários de Novalíngua. E o Ministério tinha que satisfazer não somente as complexas necessidades do Partido, como reproduzir a mesma operação num nível inferior, voltado à audiência do proletariado. Havia toda uma série de departamentos autônomos que se dedicavam especificamente à literatura, à música, ao teatro e

ao entretenimento proletário em geral. Neles eram produzidos jornais populares que continham pouco além de notícias de esporte, operações policiais e astrologia; e o entretenimento proletário também era composto por romances de baixíssima qualidade, curtos e sensacionalistas, além de filmes transbordando com cenas de sexo e canções sentimentais compostas de forma inteiramente mecânica, usando uma modalidade especial de caleidoscópio conhecida como versificador. Havia inclusive uma subseção inteira – a Pornosec, como era chamada em Novalíngua – dedicada exclusivamente à produção da pornografia mais grosseira, que era despachada em envelopes lacrados. Nenhum integrante do Partido tinha a permissão de ver tais obras, exceto aqueles que trabalhavam na sua produção. Enquanto Winston trabalhava, três bilhetes tinham caído pelo tubo pneumático; mas eram tarefas simples, e ele as liquidou antes da interrupção dos Dois Minutos de Ódio. Depois do Ódio, ele retornou a sua estação de trabalho, pegou um dicionário de Novalíngua da prateleira, empurrou o falaescreve para o lado, limpou seus óculos e ou a se dedicar à principal tarefa daquela manhã. O trabalho era o maior prazer na vida de Winston. Em geral ele não ava de uma rotina um tanto tediosa, mas por vezes incluía trabalhos tão difíceis e intrincados que neles era possível se perder como nas profundidades de um problema matemático. Eram falsificações sofisticadas, sem exemplo algum para servir de orientação, além é claro do conhecimento dos princípios do Ingsoc e de uma ideia aproximada do que o Partido gostaria que fosse dito. Winston era bom nesse tipo de trabalho. Em certas ocasiões lhe foram confiadas até mesmo retificações de editoriais do Times, inteiramente escritos em Novalíngua. Desenrolou a mensagem que havia guardado de lado no início do dia. Ela dizia:

times 3.12.83 reportar ordemdia duplomaisnaobom ref despessoas reescrever tudo subir antiarq

Em Velhalíngua (ou Inglês Padrão) isso poderia ser traduzido da seguinte forma:

A reportagem sobre a Ordem do Dia ditada pelo Grande Irmão e publicada no

Times do dia 3 de dezembro de 1983 é extremamente insatisfatória e faz referência a pessoas não existentes. Reescreva-a por completo e apresente um rascunho a seus superiores antes de endereçá-la ao arquivo.

Winston leu a reportagem condenada. Ao que parece, a Ordem do Dia do Grande Irmão foi dedicada ao elogio da obra de uma organização conhecida como CCFF, que fornecia cigarros e outros itens para o conforto dos marinheiros das Fortalezas Flutuantes. Um certo camarada Withers, membro eminente do Partido Interno, merecera uma menção especial e fora condecorado com a Ordem do Mérito Evidente, Segunda Classe. Três meses depois, de uma hora para a outra e sem nenhum motivo aparente, a FFCC foi dissolvida. Era possível imaginar que Withers e seus auxiliares tivessem caído em desgraça, porém nada apareceu nem na imprensa nem na teletela. Aliás, não havia nada de incomum nisso, pois quase nunca os transgressores políticos eram conduzidos a um julgamento, ou mesmo denunciados publicamente. Os grandes expurgos, que envolviam milhares de pessoas, com julgamentos públicos dos traidores e criminosos do pensamento que faziam suas confissões vis e em seguida eram executados, serviam como punições extraordinárias, e só ocorriam a cada dois ou três anos. O mais comum era que as pessoas caídas em desgraça junto ao Partido simplesmente sumissem, e nunca mais alguém ouvisse falar delas. Nunca era possível saber o que lhes havia ocorrido. Em alguns casos era até mesmo possível que ainda estivessem vivas nalgum lugar. Winston possivelmente havia testemunhado o sumiço de cerca de trinta conhecidos seus ao longo da vida; isso sem contar os seus próprios pais. Winston acariciou suavemente seu nariz com um clipe. Na estação de trabalho do outro lado da sala o camarada Tillotson ainda se inclinava furtivamente sobre o seu falaescreve. Levantou a cabeça por um momento: novamente lá estava o lampejo hostil dos óculos. Winston perguntou a si mesmo se por acaso o camarada Tillotson estava fazendo o mesmo que ele. Era perfeitamente possível. Um trabalho tão sofisticado nunca deveria ser confiado a uma única pessoa; por outro lado, entregá-lo a um comitê seria itir abertamente a falsificação. O mais provável era que umas doze pessoas estivessem trabalhando em versões paralelas do que na realidade disse o Grande Irmão. Posteriormente, alguma mente privilegiada do Partido Interno escolheria esta ou aquela versão, retocaria

alguns trechos e daria início aos complexos e necessários processos de referências cruzada. E daí, enfim, a mentira selecionada aria aos anais permanentes, e se tornaria verdade. Winston não sabia porque Withers havia caído em desgraça. Talvez por incompetência, quiçá por corrupção. Talvez o Grande Irmão apenas quisesse se ver livre de um subordinado demasiadamente popular. Ou quem sabe Withers, ou alguém ligado diretamente a ele, fosse suspeito de tendências heréticas. Ou quem sabe ainda – era o mais provável – a coisa toda tivesse se sucedido apenas porque os expurgos e as vaporizações eram uma parte indispensável da mecânica governamental. As únicas pistas concretas estavam nas palavras “ref despessoas”, que indicavam que Withers já estava morto. Não que esse fosse o desfecho automático sempre que alguém era detido. Às vezes os detidos eram postos novamente em liberdade, e assim prosseguiam por um ou dois anos, antes de serem executados. Muito raramente algumas pessoas que foram dadas como mortas há tempos reapareciam, tal qual fantasmas, num julgamento público – daí comprometiam centenas de outras com seu testemunho e voltavam a desaparecer, dessa vez para sempre. Withers, todavia, já era uma IMPESSOA. Não existia; nunca havia existido. Winston resolveu que não bastaria inverter a tendência do discurso do Grande Irmão, seria melhor focar nalgum outro assunto totalmente desconectado do tema original. Poderia transformar o discurso na habitual denúncia contra traidores e criminosos do pensamento, mas isso seria um pouco óbvio demais; por outro lado, se criasse uma vitória no fronte de batalha, ou mesmo um triunfo de superprodução no Nono Plano Trienal, talvez estivesse complicando demais os registros. Era preciso pensar em alguma peça de pura fantasia. De repente brotou em sua mente uma imagem sob medida, por assim dizer, de um certo camarada Ogilvy, recentemente abatido em combate em circunstância heroicas. Ora, havia ocasiões em que o Grande Irmão dedicava a sua Ordem do Dia em homenagem a um humilde membro do Partido, um soldado raso, cuja vida e a morte podiam ser apontadas como exemplos dignos a serem seguidos. Dessa forma, era chegada a hora de homenagear o camarada Ogilvy. Na verdade nunca existiu um camarada Ogilvy, mas um bocado de linhas impressas e um par de fotos falsificadas logo lhe dariam vida. Winston refletiu por um momento, puxou seu falaescreve para perto e começou a ditar no estilo familiar do Grande Irmão: um estilo ao mesmo tempo militarizado e pedante, que era muito fácil de imitar por conta do monte de perguntas

retóricas que ele mesmo fazia e respondia (“Que lição nós devemos tirar desse fato, camaradas? A lição – que, aliás, também é um dos princípios fundamentais do Ingsoc – de que... etc. etc. etc.”). Aos três anos de idade o camarada Ogilvy recusava todos os brinquedos, exceto um tambor, uma réplica de submetralhadora e um helicóptero em miniatura. Aos seis anos, graças a uma autorização especial – um ano antes do permitido pelo regulamento –, ingressou nas fileiras dos Espiões; aos nove já era chefe da tropa. Aos onze, denunciou um tio à Polícia do Pensamento, após ouvir sorrateiramente uma conversa que lhe pareceu revelar tendências criminosas. Aos dezessete tornou-se organizador distrital da Liga Juvenil Antissexo. Aos dezenove, projetou uma granada de mão que foi adotada pelo Ministério da Paz e, em seu primeiro teste, matou de uma vez só trinta e um prisioneiros eurasianos. Aos vinte e três perdeu sua vida em combate. Perseguido por jatos inimigos ao sobrevoar o Oceano Índico com mensagens importantes, amarrou seu corpo à metralhadora, que serviu como peso, e saltou do seu helicóptero diretamente no mar, carregando consigo as mensagens vitais – um fim que, segundo o Grande Irmão, não era possível ser contemplado sem uma pitada de inveja. Em seguida, o Grande Irmão acrescentou alguns comentários sobre a pureza e a unidade de propósito da vida do camarada Ogilvy. Era abstêmio de álcool, não fumava, não se entregava a recreações além da hora diária de exercícios na academia. Além disso, fez um voto de celibato, pois acreditava que o casamento e as preocupações com a família eram incompatíveis com uma vida de absoluta dedicação ao dever. Quando se mostrava disposto a conversar, o assunto invariavelmente girava em torno dos princípios do Ingsoc, e o seu único objetivo na vida era derrotar o inimigo eurasiano e perseguir implacavelmente espiões, sabotadores, criminosos do pensamento e traidores em geral. Winston ponderou sobre a possibilidade de conferir ao camarada Ogilvy a Ordem do Mérito Evidente; por fim desistiu da empreitada, por conta das referências cruzadas que ela iria envolver, sem necessidade. Voltou outra vez o olhar para a estação de trabalho oposta à sua. Algo parecia lhe dizer que era certo que Tillotson estava de fato empenhado no mesmo trabalho que ele. Não havia meio de saber qual das versões seria por fim adotada, mas tinha a profunda convicção que seria a sua. O camarada Ogilvy, até uma hora atrás um ser inexistente, agora já era um fato. Assim sendo, lhe pareceu deveras curioso que tivesse a capacidade de criar homens mortos, mas não vivos. O

camarada Ogilvy, que nunca existiu no presente, agora existia no ado, e assim que o próprio ato da falsificação fosse esquecido, existiria com a mesma autenticidade e com base no mesmo tipo de evidência que Carlos Magno ou Júlio César.

5.

Na cantina de teto baixo no subterrâneo profundo do edifício, a fila para o almoço se arrastava, avançando devagarinho. O ambiente já estava lotado de gente, e o barulho era ensurdecedor. Da grade do balcão vinha uma nuvem de vapor de ensopado; era um cheiro metálico, azedo, que não encobria totalmente os vapores do Gim Vitória. Do outro lado do salão havia um pequeno bar, na verdade um simples nicho na parede, onde se podia comprar gim por dez centavos (a dose grande).

“Exatamente quem eu estava procurando”, disse alguém atrás de Winston.

Winston se virou. Era o seu amigo Syme, que trabalhava no Departamento de Pesquisa. Bem, “amigo” talvez não fosse a palavra mais correta. Não se tinham mais amigos, mas sim camaradas; no entanto, havia alguns camaradas cuja companhia era mais agradável do que outros. Syme era filólogo, especialista em Novalíngua. De fato, fazia parte da enorme equipe de peritos empenhada na compilação da Décima Primeira Edição do Dicionário de Novalíngua. Era um sujeito bem mirrado, menor do que Winston, de cabelo escuro e olhos grandes, esbugalhados, que eram ao mesmo tempo zombeteiros e tristonhos, e que pareciam sempre examinar com toda atenção a face de quem dialogava com ele.

“Eu queria saber se você por acaso tem alguma lâmina de barbear”, disse ele.

“Nenhuma!”, respondeu Winston depressa, como quem se sente culpado. “Procurei por toda parte. Não se acha mais em lugar nenhum.”

Todo mundo vivia lhe pedindo lâminas de barbear. Na verdade ele tinha duas sobressalentes, mas que preferia deixar de reserva. Havia meses que elas estavam em falta na praça. Em determinado momento, havia sempre algum artigo necessário que as lojas do Partido não conseguiam mais fornecer. Às vezes eram botões, às vezes lã para cerzir meias, às vezes cadarço para sapatos; naquele momento, eram lâminas de barbear. Só podiam ser encontradas, com alguma sorte, numa busca furtiva pelo mercado “livre”.

“Faz seis semanas que tenho usado a mesma lâmina”, acrescentou, mentindo.

A fila deu um tranco e voltou a avanças alguns os. Quando pararam, Winston se virou e voltou a encarar Syme. Cada um pegou uma bandeja de metal engordurada de uma pilha na beirada do balcão.

“Você foi assistir ao enforcamento dos prisioneiros ontem?”, perguntou Syme.

“Eu estava trabalhando”, respondeu Winston com certa indiferença. “Imagino que devam mostrar no noticiário”.

“Um substituto muito inadequado”, observou Syme.

Seus olhos zombeteiros examinaram a face de Winston. Eles pareciam dizer: “Eu te conheço. Vejo através de você, sei muito bem porque não foi ver ao enforcamento daqueles prisioneiros”. Intelectualmente, Syme era venenoso de tão ortodoxo. Falava com júbilo e satisfação um tanto desagradáveis de ataques de helicóptero a aldeias inimigas, do julgamento e confissão de criminosos do pensamento, de execuções nos porões do Ministério do Amor etc. Assim, dialogar com ele era, em boa medida, tentar desviá-lo desse tipo de assunto e

buscar envolvê-lo nos aspectos técnicos da Novalíngua, que ele conhecia muito bem e sobre os quais discorria com interesse. Winston virou sua cabeça um pouco para o lado, de modo a se esquivar do exame daqueles grandes olhos escuros.

“Foi um bom enforcamento”, prosseguiu Syme, recordando. “Mas creio que estragaram o espetáculo quando amarraram os pés dos caras. Eu gosto quando eles esperneiam. Mas, acima de tudo, gosto da língua saltando da boca no fim, azulzinha – um azul bem vivo mesmo. É sem dúvida meu detalhe predileto.”

“Próximo!”, berrou o proleta de avental branco, empunhando uma concha de sopa.

Winston e Syme aram suas bandejas por baixo da grade. E cada um recebeu, em seguida, suas porções de almoço-padrão: uma marmita de metal de ensopado rosa-acinzentado, um pedaço de pão, um cubo de queijo, uma xícara de Café Vitória sem leite e um tablete de sacarina.

“Tem uma mesa vaga ali debaixo daquela teletela”, disse Syme. “No caminho pegamos um gim.”

O gim foi servido em canecas de porcelana sem asa. Ambos avançaram em zigue-zague pelo refeitório lotado e largaram as bandejas numa mesa de tampo de metal num dos cantos, na qual alguém havia deixado para trás uma poça de ensopado, um líquido nojento que mais parecia vômito. Winston apanhou a caneca de gim, fez uma pausa para criar coragem e engoliu de uma vez só a substância com gosto de óleo. Ao enxugar as lágrimas que escorriam de seus olhos, descobriu de repente que estava com fome. Assim, começou a engolir algumas colheradas do cozido que, dentre outros ingredientes, tinha cubos de uma massa rosada e esponjosa, que devia ser algum tipo de carne. Nenhum dos

dois falou enquanto não esvaziaram suas marmitas. Na mesa à esquerda de Winston, um pouco para trás, alguém falava depressa e sem interrupção, uma ladainha áspera que mais parecia o grasnar de um pato, e que conseguia se sobressair ante o falatório geral do ambiente.

“Como vai o dicionário?”, perguntou Winston, levantando a voz para que o outro pudesse ouvir.

“Devagar”, respondeu Syme. “Estou nos adjetivos. É fascinante.”

Ao ver Winston mencionar a Novalíngua, seu semblante de imediato se tornou mais animado. Empurrou a marmita para o lado, apanhou um naco de pão com uma das mãos delicadas e o queijo com a outra, e finalmente inclinou-se por cima da mesa de modo a conseguir falar sem se ver obrigado na gritar.

“A Décima Primeira Edição é a edição definitiva”, disse ele. “Estamos dando à língua os seus retoques finais – para que ela fique do jeito que há de ser quando ninguém mais falar outra coisa. Depois que nós acabarmos, pessoas como você se verão obrigadas a aprender tudo de novo. Tenho a impressão de que você imagina que nosso trabalho principal é inventar palavras novas. Nada disso! Nós estamos destruindo palavras – dezenas de palavras, centenas de palavras todos os dias. Estamos reduzindo a língua ao osso. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que venha a se tornar obsoleta antes de 2050.”

Mordeu o pão como quem estivesse morto de fome, em seguida engoliu duas colheradas de ensopado. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão ardente. O rosto magro e moreno havia se animado, os olhos tinham perdido a expressão de chacota, e agora haviam se tornado quase sonhadores.

“É uma coisa bonita sabe, a destruição de palavras. Naturalmente a maior concentração de palavras inúteis se encontra nos verbos e nos adjetivos, mas também há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. E não apenas os sinônimos, como os antônimos. Afinal de contas, o que justifica a existência de uma palavra que é tão somente o oposto de outra? Ora, uma palavra já contém em si mesma o seu oposto. Pense em “bom”, por exemplo. Se já temos uma palavra como “bom”, qual é a necessidade de uma palavra como “ruim”? “Desbom” já dá conta do recado. É inclusive melhor, porque é um antônimo perfeito, enquanto a outra palavra não chega a ser. Ou ainda, se quisermos uma versão mais intensa de “bom”, qual o sentido em dispor de um monte de palavras imprecisas e inúteis, tais como “excelente”, “esplêndido” e muitas outras? “Maisbom” resolve a questão; ou “duplomaisbom”, se precisamos de algo ainda mais intenso. Pois bem, é claro que já usamos essas formas, mas na versão final da Novalíngua tudo o mais desaparecerá. No final das contas, todo o conceito de bondade e ruindade será descrito por apenas seis palavras – na realidade, uma única palavra. Você pode ver a beleza da coisa, Winston? Claro que a ideia originalmente partiu do G. I.”, finalizou, como alguém que se lembra subitamente de um detalhe que não havia mencionado.

Uma tênue ansiedade atravessou o rosto de Winston quando ouviu a menção ao Grande Irmão. Syme logo percebeu nele uma certa falta de entusiasmo.

“Você não aprecia devidamente a Novalíngua, Winston”, disse ele, quase com tristeza. “Mesmo quando escreve em Novalíngua, continua pensando em Velhalíngua. Tenho lido alguns dos seus artigos no Times. São bons, mas são traduções. No seu íntimo você ainda preferiria continuar usando a Velhalíngua, com todas as suas imprecisões e nuances inúteis de significado. Você é incapaz de compreender a beleza da destruição de palavras. Acaso sabia que a Novalíngua é a única língua em todo mundo cujo vocabulário encolhe ano após ano?”

Winston decerto sabia. Sorriu tentando dar um ar de simpatia, no entanto se sentia inseguro quanto ao que dizer em seguida, se tivesse de abrir a boca para falar. Mas Syme, após mastigar depressa outro pedaço do pão escuro, prosseguiu:

“Você não consegue ver que a verdadeira finalidade da Novalíngua é estreitar a gama dos pensamentos? No fim nós teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não existirão mais palavras para expressá-lo. Todos os conceitos necessários serão expressos por uma só palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário será eliminado e esquecido. Na Décima Primeira Edição nós já nos aproximamos desse objetivo. Mas o processo como um todo ainda prosseguirá por muito tempo depois de nossa morte. A cada ano que a, menos e menos palavras, e a consciência com um alcance cada vez mais reduzido. É claro que mesmo hoje já não há razão ou desculpa para se cometer um pensamento-crime. É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas, no fim do processo, nem mesmo isso será necessário. A Revolução se fará completa quando a linguagem for perfeita. A Novalíngua é o Ingsoc, e o Ingsoc é a Novalíngua”, acrescentou com uma espécie de satisfação mística. “Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano 2050, no máximo, nem um único ser humano vivo será capaz de compreender uma conversa como essa que estamos tendo agora?”

“Exceto...”, começou Winston, meio vacilante, mas logo se calou.

Esteve a ponto de dizer “Exceto os proletas”, mas conseguiu se controlar a tempo, sem saber com certeza se o comentário não seria de alguma forma não ortodoxo. Syme, todavia, pareceu adivinhar o que ele esteve por dizer.

“Os proletas não são seres humanos”, afirmou, despreocupado. “Por volta de 2050, ou talvez mais cedo que isso, todo verdadeiro conhecimento da

Velhalíngua já terá desaparecido. A literatura do ado terá sido aniquilada, até a última palavra. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron subsistirão somente em suas versões em Novalíngua; nas quais, além de terem sido traduzidos em algo diverso, estarão transformados em algo contraditório ao que eram antes. Até mesmo a literatura do Partido mudará. As palavras de ordem já serão outras. Ora, como será possível dizer que “liberdade é escravidão” quando o próprio conceito de liberdade for abolido? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. De fato não haverá pensamento, ao menos não como o compreendemos hoje. Ortodoxia significa não pensar – sequer ter a necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência.”

Um dia desses, refletiu Winston, tomado de repente por uma profunda convicção, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê as coisas com clareza excessiva, e denuncia a própria astúcia enquanto se expressa. O Partido não gosta desse tipo de gente. Um dia ele irá desaparecer como se nunca tivesse estado aqui: está escrito na sua face. Winston havia acabado com sua porção de queijo e pão. Virou um pouco de lado na cadeira para tomar seu café. Na mesa à esquerda o homem de voz estridente continuava falando sem parar (e sem pena dos ouvintes). Uma jovem, talvez a sua secretária, que estava sentada de costas para Winston, escutava tudo com atenção e parecia ansiosa em concordar com tudo o que era dito. De vez em quando Winston pescava alguma observação do tipo “Eu acho que você tem toda a razão, concordo muito com o que diz”, dita numa voz feminina, jovem e um tanto tola. Mas a outra voz não cessava por um só instante, nem mesmo quando a moça falava. Winston conhecia o homem de vista, embora dele só soubesse que ocupava um cargo destacado no Departamento de Ficção. Devia ter uns trinta anos, e ostentava um pescoço musculoso que sustentava uma boca grande e bem agitada. Como estava com sua cabeça inclinada um pouco para trás, seus óculos refletiam toda a luz e se pareciam com dois grandes discos brancos no lugar dos olhos. O horrível da cena era que daquela balbúrdia ruidosa que surgia da sua boca mal se podia distinguir uma palavra sequer. Apenas uma vez Winston conseguiu entender uma frase – “eliminação total e completa do goldsteinismo” – cuspida de uma só vez e, aparentemente, formando um só bloco, como uma linha de tipos soldados uns nos outros. O restante não ava de mero ruído, um

grasnado sem fim. Muito embora não se pudesse ouvir o que o homem dizia, isso não impedia a averiguação do sentido geral de suas palavras. Ele devia estar denunciando Goldstein e exigindo medidas mais severas contra os criminosos do pensamento e os sabotadores, quiçá também recriminando as atrocidades do exército eurasiano, além de louvando o Grande Irmão ou os heróis do fronte de Malabar – dava tudo no mesmo. Fosse o que fosse, era possível dar por certo que cada palavra era pura ortodoxia, puro Ingsoc. Observando aquela face sem olhos, com sua mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a curiosa sensação de não mais se tratar de um ser humano real, mas sim de alguma espécie de fantoche. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da boca era formado por palavras, mas não era uma fala genuína: era um ruído destituído de consciência, como o grasnado de um pato. Syme havia se calado por um momento, e com o cabo da colher desenhava círculos de caldo sobre a mesa. A voz da outra mesa seguiu grasnando a toda velocidade, facilmente audível mesmo em meio a toda barulheira do ambiente.

“Em Novalíngua existe uma palavra que não sei se você conhece”, disse Syme. “É PATOFALAR, ou seja, grasnar como um pato. É uma dessas palavras interessantes que têm dois sentidos contraditórios. Quando aplicada a um adversário, é um insulto; quando aplicada a alguém com quem você concorda, é um elogio.”

Sem sombra de dúvida Syme será vaporizado, Winston voltou a pensar. E o pensamento estava tocado por uma espécie de tristeza, embora soubesse bem que Syme o desprezava e por vezes até hostilizava levemente, e que era perfeitamente capaz de denunciá-lo como um criminoso do pensamento, se enxergasse a menor razão para tal. Havia de fato algo errado em Syme, embora fosse bem sutil. Carecia de discrição, de indiferença, e de uma espécie de estupidez salvadora. Ninguém poderia acusá-lo de não ser ortodoxo. Acreditava nos princípios do Ingsoc, venerava o Grande Irmão, se rejubilava com as vitórias do seu país, odiava os hereges, não apenas com sinceridade como também com uma espécie de zelo incansável, estando sempre muito bem informado se

comparado aos membros comuns do Partido. Todavia, era como se ele sempre exalasse um ar suspeito. Afinal, dizia coisas que seria melhor não ter dito, lia livros demais, frequentava o Café Castanheira, uma verdadeira toca de pintores e músicos. Não havia lei, nem mesmo uma lei não escrita, que proibisse alguém de frequentar o Café Castanheira; mesmo assim a casa aparentemente atraía maus presságios. Os antigos líderes do Partido, hoje desacreditados, costumavam se reunir por lá antes do expurgo final. Diziam que o próprio Goldstein foi visto na casa algumas vezes, anos, décadas atrás. Não era difícil prever o futuro de Syme. No entanto era certo que se Syme percebesse, nem que fosse por três segundos, a natureza das opiniões secretas de Winston, não pensaria duas vezes antes de denunciá-lo à Polícia do Pensamento. Aliás, era o que qualquer um faria, mas Syme seria o mais entusiasmado. Assim, não era só uma questão de zelo. Ortodoxia era inconsciência. Syme ergueu os olhos.

“Lá vem o Parsons”, disse; e alguma coisa em seu tom de voz dava a impressão de acrescentar: “aquele pobre idiota”.

Realmente Parsons, vizinho de apartamento de Winston nas Mansões Vitória, vinha atravessando o salão na direção deles. Era um homenzinho rechonchudo, com média estatura, de cabelos loiros e cara de sapo. Aos trinta e cinco anos de idade, já cultivava pneus de gordura no pescoço e na cintura, embora seus movimentos continuassem enérgicos e joviais. Toda a sua aparência lembrava um meninão crescido; de modo que, embora usasse o macacão regulamentar, era quase imediato imaginá-lo como um garoto de calças curtas azuis, camisa cinza e lenço vermelho dos Espiões. Quando sua imagem vinha à mente, era sempre uma figura de joelhos gordos e covinhas, com mangas arregaçadas mostrando os braços rechonchudos. De fato, Parsons invariavelmente retornava aos shorts quando uma eata comunitária ou qualquer outra atividade física lhe davam algum pretexto para tal. Ao ver Winston e Syme, cumprimentou ambos com um “Alô, alô!” entusiasmado e logo se sentou à mesa, exalando um intenso odor de suor. Todo o

rosto rosado estava repleto de gotículas de transpiração – sua capacidade de transpirar era fora do comum. No Centro Comunitário, era sempre simples saber se ele havia ado por lá para jogar pingue-pongue: bastava verificar se o cabo da raquete estava emplastado de suor. Syme agora tinha na mão uma tira de papel com uma longa coluna de palavras, e as estudava com um lápis-tinta na mão.

“Olha só isso: trabalhando na hora do almoço!”, disse Parsons enquanto cutucava Winston com a ponto do cotovelo. “Dedicado, hein? O que você tem aí, meu velho? Aposto que é alguma coisa cabeçuda demais para mim... Bem, Smith, meu caro, deixa eu lhe dizer logo porque estava atrás de você: é aquela contribuição que você esqueceu de me ar.”

“Que contribuição é essa?”, perguntou Winston, enfiando automaticamente a mão no bolso para pegar dinheiro. Cerca de um quarto do salário do indivíduo tinha de ser destinado a contribuições voluntárias. Eram tantas que era mesmo difícil se lembrar de todas.

“Para a Semana do Ódio, lembra? Uma coleta de porta em porta. Sou o tesoureiro do nosso quarteirão. Estamos suando a camisa para produzir um espetáculo sensacional. Escreva o que vou lhe dizer: se as Mansões Vitória não ostentarem a maior coleção de bandeiras de rua, não será por falta de esforço da minha parte. Você me prometeu dois dólares.”

Winston achou e entregou duas notas amassadas e imundas, somando o valor que Parsons registrou num caderninho, com cada letra lentamente desenhada – uma escrita típica de quem é iletrado.

“Por falar nisso, meu velho”, prosseguiu, “ouvir dizer que o delinquente que eu tenho lá em casa te deu uma estilingada ontem. Não se preocupe que já lhe dei

uma bela de uma bronca por conta disso. Na verdade eu disse a ele que se isso ocorrer mais uma vez, vai ficar sem estilingue.”

“Acho que ele ficou um pouco chateado por ter perdido a execução”, comentou Winston.

“Ah, bom... Quero dizer, é o que se deve esperar, certo? São dois delinquentes peraltas aqueles meus filhos, mas que são espertos, disso não tenho dúvida! Só pensam nos Espiões, e também na guerra, é claro. Sabe o que a minha filhinha fez no sábado ado, quando a tropa saiu a eio para as bandas de Berkhamsted? Convenceu duas meninas a segui-la, se afastou do grupo e ou a tarde inteira seguindo um homem estranho. Ficaram na cola dele por pelo menos duas horas, atravessaram o bosque e então, quando chegaram a Amersham, denunciaram o sujeito às patrulhas.”

“Por que fizeram isso?”, indagou Winston, um tanto chocado. Parsons prosseguiu, triunfante:

“Minha pirralha estava convencida de que o sujeito era algum tipo de agente inimigo. Achou que ele podia ter sido lançado de paraquedas. Mas é aqui que está a questão, meu velho: por que você acha que ela começou a desconfiar do cara? É que ela percebeu que ele calçava uns sapatos estranhos – me disse que nunca tinha visto alguém usar aquele tipo de sapato. Quer dizer, tudo levava a crer que ele era estrangeiro. Muito esperta para uma pirralha de sete anos, hein?”

“E o que aconteceu com o sujeito?”, Winston quis saber.

“Ah, disso eu não sei. Mas não ficaria nem um pouco surpreso se...” Parsons

imitou o gesto de quem aponta um fuzil, e com a língua fez um estalo como que simulando um tiro.

“Boa!”, disse Syme distraído, sem tirar os olhos de sua tira de papel.

“Naturalmente não podemos correr riscos”, concordou Winston, consciencioso.

“O que estou querendo dizer é que há uma guerra ocorrendo, e nós estamos nela”, disse Parsons.

Como para confirmar tais palavras, um toque de trombeta soou da teletela, bem por cima da cabeça dos três. Só que dessa vez não se tratava da proclamação de alguma vitória militar, mas apenas um anúncio do Ministério da Fartura.

“Camaradas!”, gritou uma voz juvenil. “Atenção, camaradas! Temos notícias gloriosas para dar a vocês! Vencemos a batalha da produção! Os totais da produção de todos os artigos de consumo demonstram que o padrão de vida aumentou nada menos que vinte por cento em relação ao ano ado. Em toda a Oceania houve esta manhã manifestações espontâneas incontroláveis, com os trabalhadores marchando das fábricas e escritórios, desfilando pelas ruas com bandeiras e demonstrando toda a sua gratidão para com o Grande Irmão pela nova vida feliz a que a sua sábia liderança nos conduziu. Eis alguns dos números finais obtidos: gêneros alimentícios...”

A expressão “nova vida feliz” foi repetida várias vezes. Ultimamente essa expressão estava em voga no Ministério da Fartura. Parsons, atento desde o toque da trombeta, ouvia tudo, sentado em silêncio, com ar solene e boquiaberto, numa espécie de tédio edificado. Era incapaz de acompanhar tantos números,

mas percebia que de alguma forma eles justificavam um estado de satisfação. Havia tirado do bolso um cachimbo imundo, já um tanto preenchido de fumo chamuscado. Com cem gramas de tabaco por semana, raramente era possível encher totalmente o cachimbo. Winston fumava um Cigarro Vitória, que mantinha com todo cuidado na horizontal. A nova ração só seria distribuída no dia seguinte, e lhe sobraram apenas quatro cigarros. Naquele instante ele mantinha os ouvidos fechados em relação aos ruídos mais distantes, e estava inteiramente focado no que era transmitido pela teletela. Aparentemente, ocorreram até demonstrações de apreço ao Grande Irmão por ter elevado a ração de chocolate para vinte gramas por semana. Sendo que ainda ontem, refletiu, foi anunciada a REDUÇÃO da ração para vinte gramas por semana. Seria possível que as pessoas engolissem aquilo, adas somente vinte e quatro horas desde o primeiro anúncio? Sim, engoliram. Parsons engoliu sem qualquer dificuldade, com a estupidez de uma besta. A criatura sem olhos da outra mesa engoliu apaixonadamente, com um desejo fanático e furioso de seguir, denunciar e vaporizar todo aquele que sugerisse que na semana anterior a ração estava em trinta gramas. Syme também – embora de uma maneira mais complexa, tendo de recorrer ao duplipensamento –, mesmo Syme engoliu. Estaria Winston então inteiramente SOZINHO na posse daquela memória? Estatísticas fabulosas continuavam emergindo da teletela. Em comparação com o ano anterior havia mais comida, mais roupa, mais moradias, mais móveis, mais as, mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mas livros, mais bebês – tudo havia aumentado, exceto a doença, o crime e a loucura. Ano após ano, minuto após minuto, toda a gente e todas as coisas se elevavam rapidamente numa escala ascendente. Assim como Syme tinha feito, Winston apanhou a colher e se colocou a desenhar figuras com o caldo sobre a mesa. Meditava, ressentido, acerca da textura física da vida. Teria sido sempre assim? Teria a comida tido sempre aquele mesmo gosto? Percorreu todo o refeitório com os olhos. Era um salão de teto rebaixado, quase sempre abarrotado de gente, o que fazia com que suas paredes estivessem sempre encardidas. Havia mesas de metal amassadas e cadeiras postas tão perto umas das outras que o sujeito era obrigado a encostar os cotovelos nos vizinhos. Colheres tortas, bandejas trincadas, tigelas rústicas; todas as superfícies se viam engorduradas, havia sujeira em cada rachadura; e, para arrematar, um cheiro azedo impregnava o espaço: uma mistura de gim de segunda categoria com café de baixa qualidade, ensopado com gosto metálico e roupas suadas. Todo o

tempo, no estômago e na pele, subsistia uma espécie de protesto, a sensação de que você havia sido surrupiado de alguma coisa que tinha o direito de ter. Era verdade que ele não se lembrava de nada que fosse lá tão diferente daquilo tudo. Em todas as épocas em que conseguia ar com alguma precisão em sua memória, nunca houve comida suficiente, todas as meias e roupas íntimas estavam cheias de buracos, todos os móveis eram meio bambas e gastos, os cômodos eram mal aquecidos, o metrô era superlotado, as casas caíam aos pedaços, o pão era escuro, o chá bastante raro, o café uma nojeira, os cigarros insuficientes – nada, absolutamente nada era barato e abundante, a exceção do gim sintético. E embora as coisas só piorassem com o envelhecimento do corpo, isso por si só não era um sinal de que tudo aquilo NÃO era a ordem natural das coisas? Ora, quando o coração se apertava com o desconforto, a sujeira e a escassez, com os invernos intermináveis, com as meias suadas, com os elevadores sempre quebrados, com a comida horrível, não era tudo isso justamente um sinal de que havia alguma espécie de lembrança ancestral de uma época onde tais coisas eram todas diferentes? Todas melhores e mais aprazíveis? Voltou a percorrer o refeitório com seu olhar. Quase todo mundo ali era feio, e seria feio ainda que se vestisse direito, ao invés de usar o macacão azul do Partido. Do outro lado da sala, sentado só numa mesa, um homem mirado, curiosamente parecido com um besouro, tomava seu café com os olhinhos atirando dardos cheios de suspeita em todas as direções. Como era fácil, pensou Winston, crer que o tipo físico ideal de acordo com o Partido – jovens altos e musculosos; moças de seios fartos, cheias de saúde, queimadas de sol e livres de stress – existisse e até mesmo fosse maioria. Na realidade, até onde ele era capaz de julgar, a maior parte dos habitantes de Pista Um era composta de gente mirrada, escura e pouco favorecida. Era curioso como aquele tipo que mais lembrava um besouro proliferava nos ministérios: homens baixinhos, atarracados, que ainda jovens costumavam ter obesidade, de pernas curtas, movimentos rápidos e fugidios, faces gordas e inescrutáveis, sempre com olhos minúsculos. Esse era justamente o tipo que parecia prosperar mais facilmente sob o jugo do Partido. O anúncio do Ministério da Fartura terminou com outro toque de trombeta e foi seguido por uma música metálica. Parsons, movido por um vago entusiasmo devido ao bombardeio dos números, tirou seu cachimbo da boca.

“O Ministério da Fartura fez um bom trabalho este ano, não há dúvida”, disse, balançando a cabeça com pinta de quem sabe o que diz. “Aliás, Smith, meu velho, será que você não tem alguma lâmina de barbear sobrando por aí?”

“Não tenho”, disse Winston. “Estou com a mesma há umas seis semanas.”

“Ah, bem... Achei que não custava nada perguntar; certo, meu velho?”

“Sinto muito”, disse Winston.

A voz grasnada da outra mesa, interrompida temporariamente pelo anúncio do Ministério, retomou sua ladainha, tão estridente quanto antes. Por alguma razão, de repente Winston se pegou pensando na sra. Parsons, com seu cabelo ralo e poeira nas rugas. Em mais uns dois anos aquelas crianças estariam denunciando a mãe à Polícia do Pensamento. A sra. Parsons seria vaporizada. Syme seria vaporizado. Winston seria vaporizado. O’Brien seria vaporizado. Por outro lado, Parsons jamais seria vaporizado. A criatura sem olhos, com voz de grasnado, jamais seria vaporizada. Os homenzinhos que lembram besouros, e percorriam com tanta agilidade os corredores labirínticos dos ministérios – esses também jamais seriam vaporizados. E a garota do cabelo escuro, lá do Departamento de Ficção, tampouco seria vaporizada. Ele tinha a nítida impressão de saber, como que por instinto, quem iria sobreviver e quem iria perecer, embora não fosse tão simples determinar o que, exatamente, garantiria essa sobrevivência. Naquele exato momento, foi arrancado das suas reflexões por um violento golpe. A moça da mesa vizinha tinha se virado de lado, e o observava. Era a garota de cabelo escuro. Seu olhar era um olhar de rabo de olho, mas que irradiava intensa curiosidade. No preciso instante em que os olhos dos dois se encontraram, ela desviou novamente a vista.

O suor escorreu pelas costas de Winston. Um horrendo arrepio de terror atravessou seu corpo. Sumiu quase na mesma hora, mas não sem deixar para trás uma espécie de angústia torturante. Por que a garota o observou daquele jeito? Por que vivia o seguindo? Infelizmente, não conseguia lembrar se ela já estava na mesa quando ele chegou, ou se veio depois. A questão era que no dia anterior, durante os Dois Minutos de Ódio, ela já tinha se sentado logo atrás dele, sem nenhuma necessidade aparente para tal. Com toda certeza o seu objetivo real tinha sido escutá-lo de mais perto, de modo a verificar se ele esbravejava alto o suficiente. O pensamento anterior retornou à mente de Winston: provavelmente não era da Polícia do Pensamento; devia ser uma espiã amadora, que era justamente o maior perigo de todos. Não sabia por quanto tempo ela o observou, talvez por uns cinco minutos, e era possível que as suas feições não estivessem perfeitamente sob controle todo o tempo. Era terrivelmente perigoso deixar os pensamentos viajarem estando num lugar público, ou no campo de visão de alguma teletela. O menor detalhe poderia denunciá-lo. Um tique nervoso, um olhar descuidado de ansiedade, o hábito de falar sozinho – tudo que pudesse sugerir algo de anormal ou oculto. Em todo caso, uma expressão facial imprópria (por exemplo, parecer incrédulo no momento em que uma vitória era anunciada) era em si uma infração ível de castigo. Havia inclusive uma palavra para isso em Novalíngua: FACECRIME. A garota voltou a lhe dar as costas. Talvez ela nem o estivesse seguindo no fim das contas. Talvez tenha sido mera coincidência o fato de ela ter se sentado próxima a ele por dois dias seguidos. O cigarro de Winston se apagou e ele o colocou com todo o cuidado sobre a borda da mesa. Poderia acabar de fumá-lo após o expediente, se pudesse evitar que o tabaco caísse do interior do cilindro de papel. Enfim, era muito provável que a pessoa da mesa ao lado fosse mesmo uma espiã da Polícia do Pensamento, e possivelmente em três dias ele estaria encarcerado nos porões do Ministério do Amor, mas isso não era razão para desperdiçar uma boa ponta de cigarro. Syme tinha dobrado sua tira de papel, e voltou a guardá-la no bolso. Logo Parsons recomeçou a falar.

“Já lhe contei, meu velho, da vez em que aqueles dois delinquentes que eu tenho lá em casa botaram fogo na saia da velha lá do mercado, porque viram ela embrulhar salsichas num cartaz do G. I.?”, perguntou, enquanto sorria e

mordiscava o tubo do cachimbo. “De mansinho se aproximaram por trás dela e tocaram fogo no pano com uma caixa de fósforos. Acho que ela ficou bem chamuscada. São uns bandidinhos, não são? Espertos que nem raposas! Hoje em dia o treinamento que essas crianças recebem nos Espiões é de primeira linha. Bem melhor do que no meu tempo, inclusive. Adivinhe o que deram a eles, dia desses? Estetoscópios para escutar pelas fechaduras! Minha menina apareceu lá em casa com o equipamento e fez um teste na fechadura da sala. Sabe que ela consegue ouvir duas vezes mais do que encostando a orelha na porta? Sim, claro que não a de um brinquedo, mas ensina as crianças a fazerem as coisas, não é verdade?”

Nesse momento a teletela soltou um apito estridente. Era o sinal de volta ao trabalho. Os três se levantaram de um salto para correr e disputar os elevadores, e assim o tabaco que restava caiu do cigarro de Winston.

6.

Winston escrevia em seu diário:

Foi há três anos. Era uma noite escura, numa ruela estreita, próxima de uma grande estação ferroviária. Ela estava parada perto de uma porta, debaixo de um poste cuja iluminação era péssima. Tinha um rosto jovial, com excesso de maquiagem. Foi a sua maquiagem, aliás, o que mais me atraiu, pois era branca como uma máscara, e os lábios muito vermelhos, chegavam a cintilar. As mulheres do Partido nunca usam maquiagem. Não tinha mais ninguém na rua, nenhuma teletela à vista. Ela disse que o preço era dois dólares. Eu...

Por um momento foi difícil prosseguir. Fechou os olhos e os comprimiu com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em retornar. Tinha uma tentação quase irresistível de berrar um bando de palavrões a plenos pulmões. Ou de bater a cabeça na parede, chutar a mesa e jogar o vidro de tinta pela janela – qualquer ato violento, barulhento ou doloroso que pudesse apagar a lembrança que o atormentava. Nosso pior inimigo, refletiu, era o sistema nervoso. A qualquer momento a tensão que há dentro da gente corre o risco de traduzir-se num sintoma visível. Lembrou-se de um homem com o qual cruzara na rua semanas antes: um homem de aspecto um tanto normal, membro do Partido, com cerca de trinta e cinco, quarenta anos, um pouco alto e magro, carregando uma pasta na mão. Estavam a apenas alguns metros de distância quando o lado esquerdo do rosto do sujeito se contorceu subitamente num espasmo. Voltou a ocorrer quando se cruzaram: era somente um tremor, um arrepio, breve como o clique do obturador de uma câmera fotográfica, mas evidentemente habitual. Winston recordava de ter pensado na ocasião: esse pobre-coitado está perdido. E o assustador era o fato de que a coisa podia ser inconsciente. O perigo mais letal de todos era falar dormindo. Não havia meio de se proteger contra isso. Respirou fundo e continuou a escrever:

Entrei com ela pela porta e atravessamos um quintal, até que chegamos a uma cozinha num porão. Havia uma cama encostada na parede, e sobre uma mesinha, uma lamparina com a chama bem fraca. Ela...

Cerrou os dentes. Gostaria de cuspir. Ao mesmo tempo em que visualizava a mulher na cozinha do porão, lhe surgia a imagem de Katharine, sua esposa. Winston era casado – ou ao menos fora casado. Bem, provavelmente continuava casado, pois até onde podia dizer, Katharine não estava morta. Teve a impressão de respirar de novo o cheiro quente e pesado daquela cozinha, um cheiro resultante da mistura de percevejos com roupas sujas e perfume barato; e ainda assim atraente, porque afinal de contas as mulheres do Partido jamais se perfumavam – era algo inimaginável. Só as proletas usavam perfume. Assim, na mente de Winston, aquele cheiro estava intimamente associado ao sexo em si. A pulada de cerca com aquela mulher fora seu primeiro deslize em pelo menos dois anos. Ir para a cama com prostitutas era proibido, é evidente, mas essa era uma daquelas normas que um membro do Partido por vezes criava coragem para quebrar. Era mesmo perigoso, mas não um caso de vida ou morte. Ser apanhado com uma prostituta poderia significar cinco anos num acampamento de trabalhos forçados; não mais que isso, pelo menos se não houvesse alguma outra infração associada. E não era algo que envolvesse grandes complicações para ser realizado, contanto que você não se deixasse flagrar no ato em si. Os bairros mais pobres eram bem servidos de mulheres que estavam dispostas a vender o próprio corpo. Algumas delas se vendiam até por uma garrafa de gim, uma bebida que os proletas não tinham autorização para tomar. Inclusive o Partido tinha uma certa tendência de estimular tacitamente a prostituição, vendo nessa prática uma forma de dar vazão a impulsos que não podiam ser completamente suprimidos. A mera luxúria não tinha grande importância, contanto que fosse furtiva e sem alegria, e só envolvesse mulheres de uma classe inferior e desprezada. O crime imperdoável era a promiscuidade entre membros do Partido. Mas – embora esse crime fosse invariavelmente confessado pelos réus nos grandes expurgos – era difícil imaginar que algo assim pudesse realmente ocorrer na prática.

O objetivo do Partido não era simplesmente impedir que homens e mulheres estabelecessem entre si laços de lealdade que fossem difíceis de controlar. Seu propósito real, jamais declarado, era extraviar todo o prazer do ato sexual em si. Assim, o real inimigo era menos o amor do que o erotismo, tanto dentro como fora do matrimônio. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por uma comissão especialmente nomeada para tal, e – embora o princípio jamais fosse exposto com clareza – a permissão era sempre recusada quando havia sinais de atração física entre o casal. O único propósito reconhecido do casamento era procriar filhos para servir ao Partido. A relação sexual devia ser considerada uma operação menor, ligeiramente repugnante, como se fosse uma espécie de lavagem intestinal. Mas isso tampouco era dito com todas as letras, sendo antes ensinado de modo indireto a cada membro do Partido, desde a tenra infância. Havia até organizações como a Liga Juvenil Antissexo, que defendia o celibato completo para ambos os sexos. Todas as crianças deveriam nascer por inseminação artificial (SEMART, em Novalíngua) e serem educadas em instituições públicas. Winston tinha consciência de que tal plano não devia ser levado inteiramente a sério, mas em todo caso era algo que se encaixava muito bem na ideologia geral do Partido. O Partido buscava aniquilar o instinto sexual; ou, se isto não fosse viável, distorcê-lo e torná-lo indecente. Ele não sabia exatamente o motivo disso tudo, mas já lhe parecia natural que fosse assim. E, no que se referia às mulheres, os esforços do Partido eram em larga escala bemsucedidos. Ele voltou a pensar em Katharine. Deveria fazer nove, dez, quiçá onze anos que eles tinham se separado. Era curioso que pensasse nela tão raramente. Às vezes, ava dias e mais dias sem sequer se lembrar de que havia sido casado. Eles tinham vivido juntos apenas por quinze meses. O Partido não permitia o divórcio, mas chegava até mesmo a incentivar a separação quando não surgiam filhos. Katharine era uma moça alta, loira, bastante ereta, dona de movimentos esplêndidos. Tinha o rosto atrevido, com feições pontiagudas, que se poderia chamar de nobre – até perceber que não havia praticamente nada por trás dele. Logo no início da vida conjugal ele descobriu que Katharine possuía a mente mais estúpida, vulgar e vazia com a qual já havia se deparado – embora isso talvez se desse somente pelo fato de ter tido a oportunidade de conhecê-la de forma mais íntima do que à maioria das pessoas. A mente dela era incapaz de

formular um único pensamento que não fosse uma palavra de ordem, assim como não havia imbecilidade que ela não engolisse se o Partido assim o desejasse. “A trilha sonora humana”, foi como ele a apelidou dentro dos próprios pensamentos. E, no entanto, teria tolerado viver com ela se não fosse por uma coisa – o sexo (ou a falta dele). Assim que Winston a tocava, Katharine parecia se encolher e enrijecer inteira. Abraçá-la era o mesmo que abraçar um boneco articulado de madeira. E o estranho era que, mesmo quando ela o apertava contra o seu corpo, ele ainda tinha a impressão que ela ainda o repelia com todas as suas forças. Isso se dava justamente por conta da maneira como ela enrijecia todos os seus músculos durante o ato. Ela ficava lá, estendida na cama de olhos fechados, sem resistir nem cooperar, apenas se SUBMETENDO. Era extraordinariamente constrangedor e, após algum tempo, simplesmente horrível. E mesmo assim Winston teria tolerado viver com ela se os dois tivessem feito um acordo para manterem-se celibatários. Mas, curiosamente, foi a própria Katharine quem recusou tal arranjo. Disse que deviam produzir um filho, se possível. Assim, o exercício continuou a ser realizado, uma vez por semana, regularmente, sempre que não fosse impossível. Ela chegava a lembrá-lo pela manhã, como um trabalho que necessitava ser realizado à noite, e não podia ser esquecido. Ela se referia a coisa com duas expressões: uma era “fazer um bebê”, e a outra era “nosso dever para com o Partido” (sim, ela de fato usava essa frase). Não tardou para que ele adquirisse verdadeiro pavor quando via o dia marcado se aproximando. Por sorte, não veio bebê algum, e por fim ela concordou em suspender as tentativas. Pouco depois, eles se separaram. Winston soltou um suspiro mudo. Tornou a apanhar sua caneta, e escreveu:

Ela se atirou na cama e, imediatamente, sem preliminares, da maneira mais grosseira e detestável que se possa imaginar, levantou sua saia. Eu...

Winston voltou a se ver naquele aposento mal-iluminado, com o cheiro de percevejo e perfume barato em suas narinas, e no coração uma sensação de derrota e ressentimento que, mesmo naquele momento, vinha misturada com a lembrança do corpo de Katharine – um corpo branco, congelado para todo o

sempre pelo poder hipnótico do Partido. Por que teria de ser sempre assim? Por que ele não poderia ter sua própria mulher, em vez de se refugiar em tais aventuras sórdidas, com intervalos de anos entre cada ato? Viver um amor verdadeiro, no entanto, era algo quase inimaginável. Todas as mulheres do Partido eram iguais. Nelas a castidade estava tão entranhada quanto a lealdade ao Partido. Por meio de um condicionamento cuidadoso, iniciado desde cedo, com jogos e água gelada, com o lixo que lhes ensinavam na escola, nos Espiões e na Liga Juvenil, com as palestras, os desfiles, as canções, as palavras de ordem e a música marcial, todo sentimento natural lhes foi como que arrancado. O lado racional de Winston lhe dizia que devia haver exceções à regra, porém seu coração já não acreditava nisso. Eram todas inexpugnáveis, como o Partido desejava que fossem. E o que ele queria, mais do que ser amado, era deitar abaixo aquela muralha de virtude, mesmo que fosse apenas por uma vez em toda a sua vida. Se executado da forma certa, o ato sexual era por si só um ato de rebelião. O próprio desejo erótico era um pensamento-crime. Despertar tal instinto em Katharine seria como seduzi-la, embora ela fosse sua esposa – isto é, se ele tivesse tido sucesso em tal empreitada. Mas era preciso escrever o restante da história. E, assim, ele prosseguiu:

Aumentei um pouco a chama da lamparina. Quando a vi sob a luz...

Depois da escuridão, a luz fraca da lamparina a querosene lhe pareceu bem forte. Pela primeira vez podia observar a mulher direito. Tinha dado um o em sua direção, mas depois se deteve, tomado ao mesmo tempo de desejo e horror. Tinha consciência – uma dolorida consciência – do risco que tinha assumido ao ir até lá. Era perfeitamente possível que as patrulhas policiais o apanhassem na saída do local: podiam até estar esperando na porta naquele exato momento. Imagina ir embora sem sequer fazer o que tinha ido fazer ali...! Era preciso escrever tudo aquilo, era preciso confessar. O que ele percebeu de repente sob a luz da lamparina era que a mulher era VELHA. A maquiagem do seu rosto era tão pesada que chegava a dar a impressão de que iria rachar, como se fosse uma máscara de papelão. Havia fios brancos em seu cabelo; mas o detalhe realmente revoltante era a boca, que ao se entreabrir revelou uma

caverna escura envolta por gengivas sem um dente sequer. Winston seguiu escrevendo depressa, aos garranchos:

Quando a vi sob a luz, percebi se tratar de uma velha. Ela devia ter pelo menos uns cinquenta anos. Mas fui em frente e fiz o que tinha ido fazer.

Voltou a comprimir as pálpebras com os dedos. Enfim, tinha escrito tudo, mas não fazia diferença. A terapia não deu resultado algum. Continuava, forte como nunca, a ânsia de gritar obscenidades a plenos pulmões.

7.

“Se há alguma esperança”, escreveu Winston, “ela está nos proletas.”

Se havia esperança, ela DEVIA estar nos proletas, porque só neles, naquelas massas desdenhadas, naquele enxame de gente, nos 85% da população da Oceania, havia alguma possibilidade de que se gerasse a força capaz de destruir o Partido. O Partido não poderia ser derrubado de dentro para fora. Seus inimigos, se é que possuía inimigos, não tinham meios de se reunir, nem mesmo de se identificarem uns aos outros. Ainda que existisse a lendária Irmandade, algo que era possível – mas não exatamente provável –, era inconcebível que os seus membros pudessem se reunir em grupos maiores do que duas ou três pessoas. A rebelião se revelava através de um olhar específico, numa inflexão da voz; no máximo, num cochicho ocasional. Mas os proletas, se acaso adquirissem consciência do ser poder, sequer precisariam conspirar em segredo. A eles bastaria se levantarem e sacudirem o corpo, como um cavalo faz para espantar as moscas. Se assim desejassem, poderiam demolir o Partido na manhã seguinte. Mais cedo ou mais tarde essa ideia aria pelas suas mentes, certo? E, no entanto... Lembrou-se de uma vez em que ia caminhando por uma rua cheia de gente quando um imenso grito composto por centenas de vozes – vozes femininas – ecoou de uma rua lateral um pouco à frente. Era um murmúrio enorme, formidável, de ira e desespero, um “Oh-o-o-o-oh!” profundo e clamoroso, que prosseguiu como a reverberação de um sino. Seu coração deu um salto. Começou!, pensara naquele instante. Uma revolta! Enfim os proletas estão se libertando! Quando chegou ao local, viu uma multidão de cerca de duzentas ou trezentas mulheres, todas reunidas em torno das barracas de uma feira, com suas faces trágicas, como se fossem ageiras presas em um navio naufragando. Justo naquele momento, no entanto, o desespero geral se fragmentou em incontáveis confrontos menores. Ao que parece, até pouco antes uma daquelas barracas vendia as de lata. Eram as frágeis, de péssima qualidade, mas mesmo assim as em geral eram algo difícil de encontrar à venda. Assim, o estoque

da barraca não durou muito. As mulheres que tinham conseguido comprar tentavam se afastar com as as em punho, sendo empurradas e golpeadas pelas demais, enquanto dezenas de outras reclamavam em torno da barraca, acusando o feirante de favoritismo e de ter um estoque de as escondido em algum lugar. Então, houve uma nova série de gritos. Duas mulheres gordas, uma delas de cabelo longo escorrendo sobre a face, tinham agarrado a mesma a, e cada uma tentava com todas as faces obrigar a outra a largá-la. Elas ficaram puxando a a de um lado para o outro, até que o cabo cedeu e se soltou. Winston observou aquela cena com nojo. Por outro lado, pensou, ainda que por um breve momento, que força aterrorizante foi manifestada naquela algazarra de algumas centenas de gargantas! Por que elas não poderiam gritar da mesma forma em relação a algo de fato importante? Ele escreveu:

Enquanto elas não se tornarem conscientes jamais irão se rebelar, e enquanto não se rebelarem, não podem se tornar conscientes.

A frase, refletiu, quase poderia ter sido copiada de um dos manuais do Partido. O Partido proclamava, naturalmente, ter libertado os proletas da servidão. Antes da Revolução eles eram oprimidos de forma ultrajante pelos capitalistas. avam fome, eram açoitados, as mulheres eram obrigadas a trabalhar nas minas de carvão (na realidade elas ainda trabalhavam nas minas), as crianças eram vendidas para as fábricas já a partir dos seis anos de idade. Ao mesmo tempo, fiel aos princípios do duplipensamento, o Partido ensinava que os proletas eram naturalmente inferiores, que deviam permanecer em submissão, como os animais, a partir da aplicação de algumas regras simples. Na realidade se sabia muito pouco sobre os proletas. Não era necessário saber muito. Contanto que continuassem a trabalhar e se reproduzir, suas demais atividades não tinham importância. Abandonados à própria sorte, como o gado solto nos pampas argentinos, eles haviam retrocedido a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sarjetas, conseguiam um trabalho aos doze anos, atravessavam um curto período

de florescimento da beleza e do desejo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta e, em geral, morriam com cerca de sessenta anos. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as pequenas brigas com os vizinhos, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, os jogos e apostas, preenchiam todo o horizonte de suas mentes. Assim, mantê-los sob controle não era lá tão difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento estavam sempre circulando entre eles, espalhando boatos falsos e identificando e eliminando os raros indivíduos considerados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do Partido. De fato, não era sequer desejável que os proletas tivessem sentimentos políticos bem definidos. Tudo o que era exigido deles era que mantivessem uma espécie de patriotismo primitivo, que poderia ser invocado sempre que fosse necessário fazê-los aceitar horários de trabalho mais longos ou rações mais reduzidas. E mesmo quando eles ficavam insatisfeitos, como por vezes ocorria, sua insatisfação não os levava a lugar algum, porque, desprovidos de ideias gerais como eram, só conseguiam se fixar em queixas específicas e menores. Os grandes males invariavelmente escapavam da sua atenção. A grande maioria dos proletas não possuía sequer uma teletela em casa. Até mesmo a polícia civil pouco se interessava por eles. Londres era assolada pela criminalidade. Nela havia todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas, traficantes de drogas e contraventores de todo tipo; mas como tudo isso acontecia entre os próprios proletas, não fazia a menor diferença. Em todas as questões morais, era permitido que adotassem o seu código ancestral. O puritanismo sexual do Partido nunca lhes foi imposto: a promiscuidade não era punida, e o divórcio era permitido. Aliás, até mesmo a prática religiosa seria permitida caso os proletas demonstrassem algum indício de sentir necessidade ou desejo da religião. Eles estavam além de qualquer suspeita. Como dizia o lema do Partido: “Os proletas e os animais são livres”. Winston esticou o braço e coçou com cuidado sua úlcera varicosa. Ela tinha voltado a coçar. Você acabava voltando sempre para o mesmo ponto: afinal, como alguém poderia saber realmente com era a vida antes da Revolução? Retirou da gaveta um livro de história para crianças que a sra. Parsons havia lhe emprestado e começou a copiar um trecho dele em seu diário, que dizia assim:

Nos tempos antigos, antes da gloriosa Revolução, Londres não era a bela cidade que hoje conhecemos. Era um lugar escuro, sujo, miserável, onde pouca gente tinha o suficiente para comer, e centenas, milhares de pobres não tinham um sapato nem sequer um abrigo onde dormir. Crianças de mais ou menos a sua idade tinham de trabalhar doze horas por dia para patrões cruéis, que as castigavam com açoites quando trabalhavam muito vagarosamente, e só as alimentavam com cascas de pão velho e água. Mas em meio a toda essa terrível pobreza havia alguns poucos casarões bonitos onde residiam pessoas ricas servidas por até trinta empregados. Essas pessoas ricas eram chamadas capitalistas. Eram gordas, feias, de caras perversas, como a que você pode ver na página ao lado. Note que ele veste um casaco preto comprido que se chamava fraque, e um chapéu estranho, brilhante, em forma de chaminé, que se chamava cartola. Era esse o uniforme dos capitalistas, e ninguém além deles podia usá-lo. Os capitalistas eram donos de tudo o que havia no mundo, e todas as outras pessoas eram suas escravas. Eles eram donos de toda a terra, todas as casas, todas as fábricas, todo o dinheiro. Se alguém lhes desobedecesse, podiam atirálo na prisão, ou ainda retirarem o seu emprego e o matá-lo lentamente de fome. Quando um cidadão comum falava com um capitalista, tinha de se curvar e fazer reverência, além de tirar o boné e chamá-lo de “Senhor”. O chefão de todos os capitalistas se chamava Rei, e...

Mas ele conhecia o resto da ladainha. Em seguida vinham as referências aos bispos e suas vestes luxuosas, aos juízes e seus mantos de arminho, ao pelourinho, ao cepo, a roda de castigo, ao gato de nove caudas, ao Banquete do Prefeito de Londres e a prática de se beijar o pé do papa. Havia também uma coisa chamada jus primae noctis, que decerto não seria citada num livro para crianças. Era a lei que determinava que todo capitalista tinha o direito de ir para a cama com qualquer uma das trabalhadoras de suas fábricas. Como seria possível delimitar onde acabava a verdade e começava a mentira? PODIA realmente ser verdade que o ser humano médio de hoje vivesse melhor do que antes da Revolução. Os únicos indícios contrários a isso eram o protesto mudo que você sentia nos ossos, a percepção instintiva de que as suas condições de vida eram intoleráveis e de que era impossível que em outros tempos elas não tivessem sido ao menos um pouco melhores. Refletiu que as únicas

características indiscutíveis da vida moderna não eram a sua crueldade ou insegurança, mas simplesmente sua precariedade, sua indignidade, sua indiferença. A vida – bastava olhar em volta para constatar – não tinha nada a ver com as mentiras que emergiam das teletelas, tampouco com os ideais que o Partido almejava atingir. Ora, muitas atividades cotidianas, mesmo para um membro do Partido, eram neutras e inteiramente afastadas da política: simplesmente uma questão de se cumprir tarefas tediosas, lutar por um lugar no metrô, remendar uma meia gasta, arrumar um saquinho de sacarina, economizar uma ponta de cigarro. O ideal criado pelo Partido era enorme, terrível, luminoso – um mundo de aço e concreto, de máquinas monstruosas e armas aterrorizantes –, uma nação de guerreiros e fanáticos, marchando adiante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos pensamentos e gritando as mesmas palavras de ordem, trabalhando perpetuamente, lutando, triunfando, perseguindo – trezentos milhões de pessoas com a mesma face, o mesmo semblante. Já a realidade era composta por cidades se vertendo em ruínas, escuras, onde a multidão subnutrida perambulava com sapatos furados, vivendo em casas remendadas do século XIX, sempre cheirando a repolho e a banheiros degradados. Winston tinha a sensação de ter uma visão de Londres, vasta e arruinada, uma cidade com um milhão de latas de lixo, e misturada com ela a figura da sra. Parsons, aquela mulher de cara enrugada e cabelo ralo, lidando sem esperanças com um encanamento entupido. Voltou a esticar o braço e coçar o tornozelo. Dia e noite as teletelas massacravam os ouvidos com estatísticas que comprovavam que hoje o povo tinha mais alimento, mais roupas, melhores casas, mais opções de lazer – que as pessoas viviam mais, trabalhavam menos, eram mais altas, mais saudáveis, mais fortes, mais felizes, mais inteligentes, mais bem educadas do que aquelas de cinquenta anos atrás. Em todo caso, não havia como provar ou deixar de provar uma só dessas afirmações. O Partido proclamava, por exemplo, que atualmente 40% dos proletas eram alfabetizados; e dizia que antes da Revolução esse total não chegava a 15%. O Partido dizia que a mortalidade infantil era agora de apenas cento e sessenta a cada mil habitantes, enquanto antes fora de trezentos por mil – e assim por diante. Era como uma equação simples com duas incógnitas. Podia muito bem ser que literalmente todas as palavras contidas nos livros de história, inclusive aquelas

aceitas sem nenhum questionamento, fossem a mais pura fantasia. Até onde ele sabia, talvez jamais tivesse de fato existido uma lei de jus primae noctis, ou mesmo uma criatura conhecida como capitalista, ou um ório com a forma de uma cartola. Tudo desvanecia na névoa. O ado foi anulado, e o ato da anulação foi esquecido, de modo que a mentira tinha se tornado verdade. Somente uma vez em sua vida ela tinha possuído – DEPOIS do evento, era o que importava – um indício concreto, inquestionável, de um ato de falsificação. Tal indício esteve em suas mãos por cerca de trinta segundos. Isso foi em 1973, deve ter sido em 1973 – isto é, mais ou menos na mesma época em que ele e Katharine tinham se separado. Mas o ocorrido havia se ado uns sete ou oito anos antes. De fato a história havia começado por volta de 1965, o período dos grandes expurgos, em que os chefes originais da Revolução tinham sido eliminados de uma vez por todas. Em 1970 já não restava nenhum deles no Partido, com exceção do próprio Grande Irmão. A essa altura todos os demais tinham sido acusados de traição e atividades contrarrevolucionárias. Goldstein fugiu e se escondeu em algum local inteiramente desconhecido; quanto aos outros, alguns também tinham desaparecido, enquanto a maioria foi executada depois de arem por julgamentos públicos espetaculares, quando todos confessaram seus crimes. Entre os últimos sobreviventes estavam três homens chamados Jones, Aaronson e Rutherford. Provavelmente todos eles haviam sido presos em 1965. Como acontecia com frequência, tinham sumido durante um ano ou mais, de modo que ninguém sabia se estavam vivos ou mortos; de repente reapareceram e reconheceram a própria culpa, conforme o habitual. Eles confessaram ter colaborado com o inimigo (na época o inimigo também era a Eurásia), além de apropriação indevida de dinheiro público, assassinato de diversos membros leais ao Partido, fomento de intrigas que visavam minar a liderança do Grande Irmão – inclusive tendo se iniciado ainda muito antes da Revolução –, e atos de sabotagem que foram responsáveis pela morte de centenas de milhares de pessoas. Depois da confissão, eles foram perdoados, reconduzidos às fileiras do Partido e nomeados para cargos que pareciam importantes, mas na realidade não avam de uma espécie de cabide de emprego. Os três haviam escrito artigos longos e abjetos no Times, analisando as razões de sua deserção e prometendo corrigir-se. Algum tempo após a libertação, Winston por acaso viu o trio no Café

Castanheira. Ainda se lembrava do fascínio com que os observou, de rabo de olho é claro. Eram bem mais velhos que ele, verdadeiras relíquias de um mundo antigo, quase que as últimas grandes figuras remanescentes do ado heroico do Partido. O encanto da luta clandestina e da guerra civil ainda pairava suavemente em torno deles. Winston tinha a sensação – muito embora àquela altura fatos e datas já tivessem começado a perder a nitidez em sua mente – de que soubera os seus nomes muitos anos antes de ter tomado conhecimento do próprio Grande Irmão. Ao mesmo tempo, tinha a consciência de que eram forasda-lei, inimigos, intocáveis, condenados, com toda certeza, à aniquilação em um ou dois anos. Afinal, ninguém que tivesse caído uma vez nas mãos da Polícia do Pensamento conseguia escapar. Eram três cadáveres à espera de serem mandados de volta para o túmulo. Não havia ninguém nas mesas próximas. Não era prudente ser visto na proximidade deles. Estavam sentados, mudos, diante de copos de gim perfumado com cravo, a especialidade do local. Dos três, o que mais impressionou Winston devido a sua aparência foi Rutherford. Havia sido um famoso cartunista, e seus desenhos brutais tinham auxiliado a inflamar a opinião pública antes e durante a Revolução. Mesmo aquela altura, com largos intervalos, suas tirinhas ainda saíam no Times. Mas eram simplesmente uma imitação do seu estilo antigo, pouco convincentes, desprovidas de qualquer vigor criativo. Elas continuavam abordando os mesmos temas, só que requentados: favelas, crianças famintas, conflitos de rua, capitalistas usando cartola – até no interior das barricadas os capitalistas não abriam mão de usar cartolas. Em suma, era um esforço sem fim, desesperado, de se reinstalar no ado. Era um homem monstruoso, com uma juba de cabelo grisalho e gorduroso, um rosto inchado coberto de cicatrizes e grossos lábios negroides. Devia ter sido imensamente forte; agora seu corpanzil era meio balofo, arqueado sobre si mesmo, com banhas sobrando em todos os cantos. Ele parecia ruir diante dos olhares a sua volta, como uma montanha que desmorona lentamente. Eram três da tarde, hora solitária. Winston já não conseguia se lembrar do que tinha ido fazer no café àquela hora. O ambiente estava quase deserto. Das teletelas emergia uma música metálica. Os três estavam sentados no seu canto, realmente mudos, quase que imóveis. Sem que ninguém pedisse, o garçom veio e serviu uma nova rodada de gim. Havia um tabuleiro de xadrez na mesa ao lado deles, com todas as peças posicionadas, mas sem nenhuma partida iniciada. Nesse momento, durante cerca de meio minuto, ocorreu uma coisa estranha com

as teletelas. A melodia que tocava mudou, junto com a tonalidade da música. Era como se a música tivesse sido invadida... Algo difícil de descrever. Era uma nota estranha, fragmentada, como um zunido. Winston prontamente inventou um nome para aquele som: nota amarela. Logo após uma voz começou a cantarolar na teletela:

Sob a frondosa castanheira Eu te vendi e você me vendeu: Lá estão eles, e cá estamos nós Sob a frondosa castanheira

Os três homens não se moveram, mas quando Winston voltou a observar o rosto arrasado de Rutherford, percebeu que seus olhos estavam cheios de lágrimas. E pela primeira vez reparou, com uma espécie de arrepio interno, e ao mesmo tempo sem compreender o PORQUÊ daquele arrepio, que tanto Aaronson como Rutherford tinham o nariz quebrado. Pouco depois os três tinham sido presos novamente. Ao que consta, eles tinham se metido em novas conspirações assim que conquistaram sua liberdade. No segundo julgamento, confessaram uma vez mais todos os crimes antigos, e acrescentaram uma porção de outros. Foram executados e sua sina registrada nas histórias do Partido, como uma espécie de advertência à posteridade. Aproximadamente cinco anos depois, em 1973, Winston desenrolava um maço de documentos que tinha acabado de sair do tubo pneumático quando teve contato com um fragmento de papel que evidentemente deve ter sido colocado entre os demais e esquecido. No instante em que o desenrolou percebeu a sua importância. Era a metade de uma página arrancada de uma edição do Times de cerca de dez anos antes – a metade superior da página, de modo que aparecia a data. Ela continha uma fotografia dos delegados presentes num evento específico do Partido realizado em Nova York. Ao centro do grupo, destacavam-se Jones, Aaronson e Rutherford. Não havia como se confundir sobre isso; de qualquer forma o nome de cada um deles constava na legenda, logo embaixo.

A questão era que nos dois julgamentos eles haviam confessado que naquela data em específico se encontravam em solo eurasiano. Teriam voado de um campo de pouso clandestino no Canadá até um ponto da Sibéria, onde supostamente haviam se reunido com membros do Estado-Maior Eurasiano, a quem teriam revelado importantes segredos militares. A data ficou gravada na mente de Winston porque era o dia do equinócio de verão; mas toda a história deveria estar registrada numa porção de outros lugares. Só havia uma conclusão possível: as confissões eram falsas. Claro, isso em si não era nenhuma grande revelação. Mesmo naquela época, nem Winston imaginava que as pessoas suprimidas nos expurgos tivessem de fato cometido os crimes de que eram acusadas. Mas ali se encontrava uma prova concreta; era um fragmento do ado abolido, como um osso fóssil que surge numa camada errada e põe abaixo toda uma teoria geológica. Aquela prova seria suficiente para derrubar o Partido inteiro, se de uma ou outra maneira pudesse ter sido publicada, de modo que o mundo tomasse conhecimento do seu significado. Winston tratou de continuar trabalhando. Assim que viu a fotografia, e o que ela queria dizer, cobriu-a com outra folha de papel. Por sorte, quando a desenrolou, ela ficou de cabeça para baixo em relação à teletela. Colocou a prancheta sobre o joelho e empurrou a cadeira para trás, de modo a ficar tão longe quanto possível da teletela. Manter o semblante inexpressivo não era difícil, e com algum esforço podia controlar até mesmo o ritmo da respiração: mas era impossível controlar o batimento do coração, e a teletela era sensível o bastante para conseguir captá-lo. Deixou ar o que imaginou serem dez minutos, todo o tempo angustiado pelo temor de que algum acidente – uma súbita lufada de ar que soprasse por cima da sua mesa, por exemplo – pudesse traí-lo. Depois, sem voltar a expô-la, jogou a fotografia no buraco da memória, junto com outros papéis inúteis. Dali a um minuto, provavelmente, ela já teria sido incinerada. Tudo isso se ou dez, onze anos atrás. Hoje, quem sabe, talvez ele até tivesse guardado a fotografia consigo. Era curioso que tê-la segurado entre os dedos lhe parecesse fazer tamanha diferença, agora que a fotografia em si, e o evento que ela registrava, não avam de uma lembrança. Será que o controle do Partido sobre o ado teria ficado menos eficaz, pensou, pelo fato de que uma prova material que já não existia HAVIA EXISTIDO um dia?

Mesmo supondo que hoje ainda fosse possível, de alguma forma, recuperá-la das cinzas, a fotografia talvez nem chegasse a constituir uma prova. Na ocasião em que ele fez sua descoberta, a Oceania não estava mais em guerra com a Eurásia, portanto devia ter sido para os agentes da Lestásia que o trio de cadáveres havia traído seu país. Desde então tinham surgido novas acusações – duas, três, ele já não se lembrava quantas. Muito provavelmente as confissões tinham sido reescritas tantas vezes que os fatos e as datas originais haviam perdido toda a importância. O ado não podia apenas ser modificado, podia ser mudado incessantemente. O que mais o angustiava, como uma sensação de pesadelo, era nunca compreender com clareza por que toda aquela falsificação foi iniciada. As vantagens imediatas de falsificar o ado eram óbvias, mas a razão essencial daquilo tudo continuava sendo um mistério. Ele voltou a pegar a caneta, e escreveu:

Eu compreendo COMO: não entendo POR QUÊ.

Considerou a hipótese, como já tinha feito muitas vezes, dele próprio ser o lunático da história. Talvez um doido fosse simplesmente uma minoria de um só. Antigamente, era considerado loucura crer que a Terra gira em torno do Sol. Hoje, o sinal de loucura era crer que o ado era inalterável. Ela podia muito bem ser o ÚNICO a acreditar naquilo e, em sendo um só, também podia ser considerado um louco. Mas a ideia de que talvez fosse um lunático não chegava a perturbá-lo tanto: o horror estava em considerar a possibilidade de estar enganado. Apanhou o livro de história para crianças e contemplou o retrato do Grande Irmão estampado no frontispício. Os seus olhos hipnóticos fixaram-se nos de Winston. Era uma força imensa, que chegava a exercer uma pressão – como algo que invadia seu crânio, golpeava seu cérebro, aterrorizava-o a ponto de fazê-lo abandonar suas crenças, quase o convencendo a negar as provas que seus próprios sentidos lhe forneciam. No fim, o Partido anunciaria que dois mais dois são cinco, e todos teriam de acreditar. Era inevitável que tal coisa fosse proclamada mais cedo ou mais tarde: a própria lógica de sua posição o exigia. Além da validade da experiência, a própria existência da realidade externa era negada, ainda que tacitamente, por sua filosofia. O bom senso era a heresia das

heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como sabemos que dois mais dois são quatro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o ado é imutável? Se tanto o ado quanto o mundo externo existem somente na mente humana, e se ela própria pode ser controlada – como sair dessa arapuca? Mas não! De repente a coragem de Winston voltou a se fortalecer por conta própria. O rosto de O’Brien, que nenhuma associação de ideias parecia convocar, surgiu flutuando em sua mente. Assim ele concluiu, com mais clareza do que antes, que O’Brien estava do seu lado. Winston escrevia aquele diário para O’Brien – NA INTENÇÃO de O’Brien. Era uma espécie de carta interminável, que ninguém jamais chegaria a ler, mas que era dirigida a uma certa pessoa e se nutria desse fato. O Partido ordenava que o indivíduo rejeitasse as provas materiais que seus olhos e ouvidos lhe oferecessem. Essa era a sua ordem final, a mais essencial de todas. O coração de Winston fraquejou quando pensou no enorme poderio reunido contra ele, na facilidade com que qualquer intelectual do Partido o derrotaria num debate, nos argumentos sutis que não teria capacidade de entender, quanto mais de contestar. E, mesmo assim, ele sentia que tinha razão! Os outros estavam errados, ele estava certo. O óbvio, o tolo e o verdadeiro tinham de ser defendidos. Os truísmos são verdadeiros, esse é que é o fato! O mundo sólido existe, e suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, e os objetos largados no ar, sem base de apoio, caem na direção do centro da Terra. Com a sensação de estar dialogando com O’Brien, assim como de estar fixando um axioma importante, ele escreveu:

Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro. Se isso é itido, todo o restante decorrerá daí.

8.

Dos fundos de uma viela chegava um cheiro de café sendo torrado – café de verdade, e não Café Vitória – que logo se espalhou pela rua. Winston fez uma pausa involuntária. Durante o que talvez tenha sido dois segundos, perdeu-se no mundo semiesquecido de sua infância. Daí uma porta bateu, dando a impressão de cortar aquele aroma tão abruptamente quanto se ele fosse um som. Winston tinha caminhado vários quilômetros pelas ruas, e sua úlcera varicosa estava latejando. Era a segunda vez em três semanas que deixava de comparecer aos encontros noturnos do Centro Comunitário: um gesto temerário, pois podia ter por certo que o número de presenças e faltas no Centro era cuidadosamente verificado. Em princípio um membro do Partido não tinha horas vagas, e jamais ficava sem companhia, exceto quando estava na cama. Supunha-se que quando não estivesse trabalhando, comendo ou dormindo, estaria participando de algum tipo de recreação comunitária; fazer algo que sugerisse um apreço pela solidão, mesmo que fosse somente sair para caminhar só pela rua, sempre envolvia algum risco. Havia um termo para isso em Novalíngua: VIDAPRÓPRIA, o que significava individualismo e excentricidade. Naquela tardinha, entretanto, ao sair do Ministério, Winston se deixou levar pela fragrância que pairava no ar de abril. O azul do céu era o mais cálido que havia visto naquele ano, e de súbito a noite no Centro, sempre arrastada e ruidosa, com seus jogos enfadonhos e cansativos, suas palestras, sua camaradagem forçada, lubrificada pelo gim, pareceu-lhe uma ideia intolerável. Cedendo ao impulso, afastou-se do caminho até o ponto de ônibus e vagueou sem rumo definido pelo labirinto londrino: primeiro para o sul, depois para o leste, depois para o norte, deixando-se perder em ruas até então desconhecidas, sem se preocupar com o destino de seus os. “Se há alguma esperança”, escrevera em seu diário, “ela está nos proletas.” Essas palavras insistiam em voltar a sua mente – elas eram a afirmação de uma verdade mística e de um evidente absurdo. Ele estava nas favelas de cor parda, que preenchiam o norte e o leste do que fora um dia a estação de Saint Pancras. Subira através de uma rua margeada por duas fileiras de pequenos sobrados com portas que davam direto na calçada e que, curiosamente, lembravam vagamente

tocas de ratos. Entre as pedras pavimentadas da rua havia, aqui e ali, poças de água imunda. Uma multidão de gente perambulava pelas agens escuras que davam o aos sobrados e pelos becos transversais à rua: moças na flor da idade com os lábios grosseiramente besuntados de batom; rapazotes correndo atrás das moças; mulheres inchadas que andavam gingando e davam alguma dica do que seria daquelas moças dali a uns dez anos; velhos corcundas arrastando os pés virados para fora; e crianças descalças e esfarrapadas que brincavam nas poças d’água e se dispersavam ante os gritos furiosos das mães. Talvez um quarto das janelas da rua estavam quebradas ou tinham sido remendadas com pedaços de madeira e papelão. A maioria das pessoas não dava nenhuma bola para Winston; somente uns poucos o fitavam com uma espécie de curiosidade contida. Duas mulheres monstruosas, com braços cor de tijolo cruzados sobre o avental, conversavam diante de uma porta. Quando se aproximou delas, pôde ouvir alguns trechos da conversa:

“Sim, eu disse pra ela, tá tudo certo, eu disse. Mas se tu tivesse no meu lugar fazia que nem eu fiz. É muito fácil criticar os outros, eu disse, só que tu não tem os mesmos perrengues que eu.”

“É verdade”, concordou a outra, “é isso mesmo, é assim mesmo.”

As vozes estridentes subitamente se calaram. Enquanto ele ava, as mulheres o observaram em silêncio hostil. Bem, não era exatamente hostilidade; estava mais para uma espécie de cautela, um enrijecer momentâneo, como se ali estivesse ando um animal raro. Afinal, numa rua como aquela, o macacão azul do Partido ava bem longe de ser uma visão comum e corriqueira. De fato, era imprudente ser visto em lugares assim, a menos que se estivesse cumprindo uma tarefa específica. Os policiais da patrulha provavelmente o mandariam parar se o vissem ali. “Posso ver seus documentos, camarada? O que está fazendo aqui? A que horas saiu do seu trabalho? Por acaso você costuma tomar esse caminho para chegar em casa?” – e assim por diante. Não que houvesse algum regulamento específico proibindo a pessoa de fazer trajetos inusitados ao voltar para casa; mas já seria o suficiente para a Polícia do

Pensamento ficar alerta, caso fosse informada. Eis que de repente a rua toda se alvoroçou. De todos os cantos soavam gritos de alerta. As pessoas corriam e se entocavam em casa feito coelhos. Uma moça saltou de uma porta, pouco à frente de Winston, agarrou uma criancinha que brincava numa poça, embrulhou-a no avental e, com mais um pulo, estava de volta em casa. No mesmo instante um sujeito de terno preto, amassado como uma sanfona, surgiu correndo de uma ruazinha transversal e se aproximou rapidamente de Winston; ele apontava para o céu, e estava um tanto nervoso:

“Vaporizador!”, gritou. “Cuidado, patrão! Lá vem ele! Vai, se joga no chão!”

“Vaporizador” era o apelido que por alguma razão os proletas davam aos mísseis. Winston se lançou ao chão de bruços, sem pensar duas vezes. Os proletas raramente se enganavam quando davam esse tipo de alarme. Eles pareciam possuir alguma espécie de instinto que lhes dizia, com alguns segundos de antecedência, que um foguete estava vindo, muito embora eles voassem mais rápido que o som. Winston envolveu a cabeça com os braços. Houve um ribombo que pareceu fazer toda a rua e a calçada tremerem. Em seguida uma chuva de detritos atingiu suas costas. Quando se levantou é que ele percebeu que estava todo coberto por pequeninos cacos de vidro da janela da casa ao lado. Continuou andando. O míssil tinha demolido um conjunto de casas de rua, uns duzentos metros adiante. Uma coluna de fumaça negra pairava no céu, e mais abaixo já se via uma nuvem de poeira em torno de uma pequena multidão que tinha se formado próximo aos escombros. Mais um pouco adiante, na própria rua, havia um monte de entulho e, entre os pedaços de reboco, ele avistou uma faixa de vermelho bem vivo traçada no chão. Só quando chegou mais perto é que se deu conta que se tratava de uma mão humana decepada na altura do pulso. Afora o sangue que jorrava bem vermelho, a mão estava tão branca que parecia mais um molde de gesso. Tratou de chutar aquele troço para a sarjeta e depois, buscando evitar a multidão, se enfiou por uma ruazinha à direita. Em três ou quatro minutos já estava fora da área atingida pelo míssil, e a vida sórdida e ruidosa das ruas seguia sua toada como se nada tivesse ocorrido. Eram quase oito da noite, e os estabelecimentos

que vendiam bebidas alcoólicas aos proletas (“pubs”, era como eles eram chamados ali) estavam lotados de fregueses. Através de suas portas de vaivém emporcalhadas, que se abriam e fechavam incessantemente, emergia um cheiro de urina, serragem e cerveja azeda. Num canto formado pela fachada saliente de uma casa viam-se três sujeitos bem próximos uns dos outros, o do meio segurando um jornal dobrado que os demais examinavam por cima dos seus ombros. Mesmo antes de chegar próximo o bastante para distinguir a expressão que tinham no rosto, Winston notou, através de cada detalhe de seus corpos, o tanto que estavam hipnotizados pela leitura. Era nítido que a notícia que liam era algo muito sério. Estava a alguns os de distância quando de repente o grupo se desfez e teve início uma discussão violenta entre dois deles. Por alguns instantes, pareceram estar prestes a chegar às vias de fato.

“Porra, tu tá surdo? Tô falando que faz mais de um ano que não dá nada com sete no fim!”

“Deu sim. Deu sete sim!”

“Não deu não! Tenho tudo anotado em casa. Faz mais de dois anos que anoto os números todos num papel. Anoto a porra toda, não perco nada. E tô dizendo: faz um baita tempo que não dá nada com sete no fim...”

“Mas eu te digo que DEU sete! Se quiser, te falo até a porra do número. O final eu sei que era quatro zero sete. Isso em fevereiro, acho que na segunda semana de fevereiro.”

“Fevereiro o cacete! Tenho todos os números lá em casa, anotadinhos. E tô dizendo que...”

“Ah! parem de encher o saco!”, disse o terceiro sujeito.

Estavam falando da Loteria. Quando já tinha se afastado cerca de trinta metros, Winston olhou para trás. Os dois ainda discutiam, com semblantes febris, fanatizados. A Loteria, com seus imensos prêmios semanais, era o único evento público que de fato despertava o interesse dos proletas. Era bem provável que para milhões deles a Loteria fosse o principal motivo para continuar vivos, quiçá o único. Ela era o seu deleite, a sua loucura, o seu analgésico e o seu estimulante intelectual. Quando o tema era a Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um verdadeiro exército de indivíduos que ganhava a vida vendendo sistemas, prognósticos e amuletos de sorte. O trabalho de Winston não tinha nada a ver com a Loteria, cuja istração se encontrava sob a responsabilidade do Ministério da Fartura, mas ele sabia (como, aliás, todos no Partido sabiam) que em grande parte todos aqueles prêmios eram imaginários. Na realidade só as pequenas quantias eram efetivamente pagas, pois os ganhadores dos prêmios maiores eram pessoas inexistentes. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre as diversas regiões da Oceania, não era tão difícil operar o esquema. Mas se havia alguma esperança, ela estava nos proletas. Era preciso se agarrar a isso com unhas e dentes. Quando o pensamento era traduzido em palavras, parecia algo razoável; mas quando aqueles seres humanos que perambulavam pela calçada entravam na equação, aquilo se transformava num ato de fé. A rua que tinha tomado descia em declive. Winston teve a sensação de já ter caminhado naquela vizinhança antes, e de estar perto de uma avenida principal. De algum canto chegou aos seus ouvidos uma gritaria geral. A rua fez uma curva brusca e se encerrou numa escadaria que dava o a uma viela mais abaixo, onde alguns feirantes vendiam verduras murchas em suas bancas. Nesse instante, Winston se lembrou de que lugar era aquele. A viela desembocava numa grande avenida, e na travessa seguinte, a menos de cinco minutos de caminhada, ficava a lojinha em que ele tinha comprado o caderno que hoje lhe servia de diário. E perto dela ficava a papelaria onde ele tinha adquirido a caneta e o vidro de tinta. Deteve-se por um instante no alto da escada. Do outro lado do beco havia um barzinho miserável cujas janelas pareciam embaçadas, mas na realidade estavam apenas cobertas de poeira. Um ancião recurvado, porém ainda ágil, com bigodes grisalhos que se eriçavam para frente como os de um camarão, empurrou a porta

de vaivém e entrou. Enquanto Winston o contemplava, ocorreu-lhe que aquele velho, que devia ter por baixo uns oitenta anos, já era um homem de meia-idade na época da Revolução. Ele e uns poucos outros como ele eram os últimos elos existentes com o mundo extinto do capitalismo. A geração mais velha tinha sido quase inteiramente eliminada nos grandes expurgos dos anos 1950 e 60, e o terror imposto aos que permaneceram vivos obrigou-os a se refugiar na mais completa submissão intelectual. Ora, se ainda restava alguém vivo que fosse capaz de dar uma descrição verídica das condições de vida na primeira metade do século, teria de ser um proleta. De repente, veio à mente de Winston o trecho do livro de história que ele havia copiado em seu diário, e ele foi tomado por uma ideia maluca: ele iria até o bar, faria amizade com o ancião e o interrogaria. Pretendia lhe dizer mais ou menos assim: “Fale-me de sua vida quando o senhor era garoto. Como eram as coisas naquele tempo? Elas eram melhores ou piores do que hoje em dia?”. Com adas apressadas, como se tivesse receio de perder aquela lufada momentânea de coragem, desceu os degraus da escadaria e atravessou a rua estreita. Aquilo era loucura, é evidente. Como usual, não havia regulamento contra travar conversa com os proletas nem contra frequentar seus bares, mas aquele era um ato muito fora do comum para ar desapercebido. Caso as patrulhas aparecessem ele poderia dar a desculpa de que tinha se sentido mal durante a caminhada, mas era pouco provável que lhe dessem algum crédito. Empurrou a porta e logo foi atingido em cheio por um cheiro horrível de queijo velho e cerveja azeda. Quando adentrou o ambiente, o barulho das vozes logo foi reduzido talvez à metade do volume. Podia sentir atrás das costas todos os olhares cravados em seu macacão azul. Um jogo de dardos em andamento do outro lado do salão chegou a ser interrompido por cerca de trinta segundos. O velho que Winston tinha seguido estava junto ao balcão discutindo com o barman, um rapaz grande, forte, com um nariz em formato de gancho e braços colossais. Formando um semicírculo ao redor, alguns fregueses assistiam à cena de copo na mão.

“Pô, eu te pedi com educação, não pedi?”, dizia o ancião, endireitando os ombros, com postura hostil. “Quer me dizer que não tem uma caneca de um quartilho [Nota do Tradutor: pint mug] nessa birosca?”

“E que diabos É um quartilho?”, respondeu o barman, inclinando-se para frente, com as pontas dos dedos apoiadas sobre o balcão.

“Olha só pra ele! Diz que é dono de boteco e não sabe o que é um quartilho! Ora, um quartilho é um quarto de galão. Daqui a pouco vou ter que te ensinar o abecedário.”

“Nunca ouvi falar disso aí”, disse o barman. “Aqui só temos copos de um litro ou meio litro. Estão aí na prateleira, bem na sua frente.”

“Mas eu gosto de tomar um quartilho”, insistiu o velho. “Você bem que podia me tirar um quartilho só do galão. No meu tempo não tinha essa história de litro.”

“Sei. No seu tempo as pessoas viviam é em cima das árvores”, disse o barman, olhando de relance para os demais fregueses ao redor.

Houve uma gargalhada geral, e o mal-estar causado pela entrada de Winston pareceu ter desaparecido. Sob a barba branca, a face do ancião ficou toda vermelha. Logo ele se virou e, resmungando sozinho, quase tropeçou em Winston, que o segurou delicadamente pelo braço:

“Posso lhe oferecer um drinque?”

“Ora, o senhor é um cavalheiro”, disse o velho, voltando a endireitar os ombros.

Ele não parecia ter notado o macacão azul de Winston. “Um quartilho!”, acrescentou para o barman com certa hostilidade. “Um quartilho da boa.”

O barman serviu duas doses de meio litro de uma cerveja marrom-escura em canecas que tinha acabado de lavar num balde debaixo do balcão. Nos bares dos proletas só se podia tomar cerveja. Não era permitido tomar gim, muito embora na prática fosse bem fácil arranjar algum. O arremesso de dardos estava novamente animado, e os homens junto ao balcão começaram a conversar sobre os bilhetes da Loteria. Por algum tempo, a presença de Winston foi esquecida. Ele logo avistou, debaixo da janela, uma mesa de pinho onde ele e o ancião podiam dialogar sem receio de ser ouvidos. Era imensamente perigoso, mas ao menos não havia teletela no local – disso ele tinha se certificado assim que pôs os pés no bar.

“Ele bem que podia ter me servido um quartilho”, resmungou o velho ao sentarse atrás de seu copo. “Meio litro pra mim não chega, fico querendo mais. Já um litro é muito, me faz mijar adoidado. Pra não falar do preço.”

“Você deve ter visto muita coisa mudar desde que era jovem”, disse Winston, experimentando o tema.

Os olhos azuis pálidos do ancião deslocaram-se do alvo dos dardos para o balcão e do balcão para a porta do banheiro dos homens, como se imaginasse que todas as mudanças tivessem se ado ali mesmo, dentro daquele bar.

“A cerveja era melhor”, disse por fim. “E mais barata! Quando eu era mais jovem a cerveja mais clara – da boa – custava quarenta centavos o quartilho. Isso foi antes da guerra, é claro.”

“Que guerra foi essa?”, quis saber Winston.

“Ora, todas elas”, respondeu o velho, vagamente. Apanhou a caneca e endireitou uma vez mais os ombros. “Um brinde à sua saúde e felicidade!”

Em seu pescoço magro o pomo-de-adão, um tanto proeminente, fez um brevíssimo movimento de sobe e desce, e então a cerveja desapareceu da caneca. Winston se dirigiu ao balcão e retornou com mais duas canecas de meio litro. O ancião já não parecia se lembrar da questão com beber um litro de cerveja de uma só vez.

“Você é bem mais velho que eu”, disse Winston. “Já devia ser um adulto antes de eu nascer. Deve se lembrar como era a vida nos velhos tempos, antes da Revolução. As pessoas da minha idade não sabem nada daquela época. Nós só podemos consultar os livros, e o que eles dizem pode não ser verdade. Eu gostaria de saber a sua opinião a respeito disso. Os livros de história dizem que antes da Revolução a vida era completamente diferente do que é hoje em dia. Então reinava a mais terrível opressão, injustiça, miséria – pior do que tudo que podemos imaginar. Aqui em Londres a maioria do povo nunca tinha o suficiente para comer, desde o nascimento até a morte. Metade da população sequer tinha um par de sapatos. Trabalhavam doze horas por dia, paravam de estudar aos nove anos e dormiam até dez pessoas no mesmo quarto. Os livros também contam que havia um número extremamente pequeno de pessoas, que não ava da casa dos milhares – os chamados capitalistas – que eram ricos e poderosos. Possuíam tudo o que podia ser possuído. Moravam em casarões de grande luxo, tinham trinta empregados, circulavam pela cidade em automóveis e grandes carruagens puxadas por quatro cavalos, bebiam champanhe, usavam cartolas...”

De repente, o semblante do ancião se iluminou:

“Cartolas!”, disse ele. “Ora, mas que engraçado você falar delas. Ontem mesmo eu estava pensando em cartolas. Sabe lá por que cargas-d’água fui lembrar disso. Tava só matutando. Faz um montão de tempo que não vejo uma. Eles deram um fim nelas. A última vez que usei uma foi no enterro da minha cunhada. E olha que isso foi em... Bem, não vou lembrar a data, mas deve ter sido uns cinquenta anos atrás. Claro que eu aluguei uma cartola só praquela ocasião, você me entende né?”

“As cartolas não têm importância”, disse Winston, paciente. “A questão é que esses capitalistas – junto com um punhado de advogados e gente da Igreja, e outros que também viviam às custas deles – eram os donos do mundo. Tudo existia para o seu proveito. Gente como você – as pessoas comuns, os trabalhadores – eram seus escravos. Eles podiam fazer o que bem entendessem com vocês. Podiam mandá-los para trabalhar no Canadá, como se fossem gado. Se assim quisessem, podiam dormir com suas filhas. Podiam mandar açoitá-los. Vocês tinham de tirar o boné quando eles avam por perto. Todo capitalista era acompanhado por um bando de lacaios que...”

O semblante do velho voltou a se iluminar:

“Lacaios!”, disse ele. “Taí uma palavra que não escuto faz um baita tempo. Lacaios! Isso sim me faz voltar um tempão atrás. Bem, lembro que eu costumava – eita, faz tempo pra burro – eu costumava ir ao Hyde Park no domingo à tarde pra escutar os caras fazendo discurso. Os caras do Exército da Salvação, os católicos, os judeus, os indianos – tinha todo mundo. E tinha um sujeito... Eita, não vou lembrar do nome, mas ele falava bem pra burro, falava na lata! ‘São um bando de lacaios!’, ele gritava assim sabe. ‘Lacaios da burguesia! Lacaios da classe dominante!’ Parasita ela outra palavra que ele usava. E hienas, me lembro bem que ele mandava ver, chamava os caras de hienas. Claro que ele tava falando do Partido Trabalhista, você me entende?”

Winston teve a impressão de que aquela era uma conversa de surdos.

“O que na verdade eu quero saber é o seguinte: você acha que hoje há mais liberdade do que naquele tempo? Como ser humano, você sente ter hoje um tratamento mais digno? Naquele tempo os ricos, aqueles que estavam por cima...”

“A Câmara dos Lordes”, completou o ancião, nostálgico.

“Que seja, a Câmara dos Lordes. O que estou querendo saber é se essas pessoas o tratavam como alguém inferior só porque elas eram ricas, e você era pobre. Por exemplo, é verdade que você tinha de chamá-las de ‘sir’ e tirar o boné quando estava na sua presença?”

O velho parecia estar totalmente absorto em reflexões. Bebeu quase que um quarto da sua caneca de cerveja antes de responder.

“Sim. Elas gostavam que a gente cumprimentasse elas com o boné. Era sinal de respeito, certo? Eu não gostava muito, mas fazia. Era meio que obrigado a fazer, vamos dizer.”

“E por acaso era comum – só estou repetindo o que li nos livros de história –, era comum que essas pessoas e seus empregados abrissem caminho pela calçada empurrando vocês para a sarjeta?”

“Bem, teve uma vez que me empurraram mesmo”, disse o ancião. “Eu me lembro como se fosse ontem. Foi na noite da regata de remo no rio Tâmisa – eu trombei com uma sujeito na avenida Shaftesbury. Ele tava todo chique: camisa

social, cartola, sobretudo preto. Vinha meio que ziguezagueando pela calçada e eu trombei nele sem querer. Daí ele disse: ‘Por que não olha por onde anda?’. E eu respondi: ‘Tu tá achando que é o dono da rua?’. E ele: ‘Olha que eu te torço o pescoço se der uma de metido pra cima de mim’. E eu disse: ‘Ah, você tá mamadão. Não enche, senão eu chamo a polícia’. Daí, você não vai acreditar, o sujeito pôs as mãos bem aqui no meu peito e me deu um empurrão tão forte que por pouco não fui atropelado por uma ônibus que vinha ando pela rua. Ah, mas naquele tempo eu era jovem, eu ira dar um murro bem dado na cara dele se...”

Uma sensação de impotência tomou conta de Winston. A memória daquele velho não ava de um amontoado de pormenores sem importância alguma. Poderia interrogá-lo pelo resto do dia sem obter nenhum dado histórico genuíno. De certo modo, as histórias do Partido talvez pudessem ser verdadeiras: podiam até ser inteiramente reais. Fez a sua última tentativa:

“Bem, talvez eu não tenha conseguido me fazer entender”, disse. “O que estou tentando dizer é o seguinte: você já viveu por muitos anos; de fato viveu metade da sua vida antes da Revolução. Em 1925, por exemplo, você já era um adulto. Pelo que ainda consegue se lembrar, você diria que em 1925 a vida era melhor do que hoje, ou pior? Se acaso pudesse escolher, preferiria viver naquela época ou na de agora?”

O ancião fitou longamente o alvo dos dardos na parede. Terminou a caneca de cerveja, com goles ainda mais vagarosos do que antes. Quando enfim disse alguma coisa, tinha um ar tolerante, até mesmo filosófico, como se a cerveja tivesse amainado a sua rudeza.

“Eu sei o que você quer que eu diga. Quer que eu diga que preferia ser jovem outra vez. A maioria das pessoas vai dizer que quer ser jovem de novo, se você for perguntar. A gente tem saúde e força quando é mais novo. Quando chegam na minha idade, as pessoas tão sempre com algum problema. Meus pés só faltam

me matar, e a minha bexiga tá uma desgraceira. Tenho de levantar pra mijar umas seis ou sete vezes toda noite. Mas ser velho tem lá suas vantagens. A gente deixa de se preocupar tanto com as coisas, sabe. Não quer nem mais saber de mulher, e isso é um troço fantástico. Olha, não sei se vai acreditar, mas faz quase trinta anos que não transo com ninguém. E eu nem quero mesmo saber de mulher na minha vida, sabe? Essa é que é a verdade.”

Winston encostou as costas no peitoril da janela. Era inútil insistir naquilo. Estava prestes a pedir mais duas canecas de cerveja quando o velho de repente se levantou e correu o mais rápido que pôde para o mictório fedorento no outro canto do salão. O segundo meio litro já estava fazendo efeito. Winston permaneceu ali, por um ou dois minutos, contemplando sua caneca vazia, e mal se deu conta quando seus pés trataram de levá-lo de volta para a rua. Dali a quem sabe uns vinte anos no máximo, ele refletiu, aquela questão tão imensa e tão simples, “Antes da Revolução a vida era melhor do que hoje?”, deixaria de uma vez por todas de ter a chance de ser respondida, visto que os poucos e dispersos sobreviventes do mundo antigo que ainda podiam ser encontrados mostravam-se inteiramente incapazes de comparar uma época com a outra. Eles se recordavam de milhões de coisas sem importância, a briga com um colega de trabalho, as horas perdidas buscando uma bomba de bicicleta perdida, a expressão do rosto de uma irmã falecida há muitos anos, os redemoinhos de poeira levantados pelo vento numa certa manhã setenta anos atrás; no entanto, praticamente todos os fatos históricos relevantes permaneciam fora do alcance de sua visão. Eram como a formiga, que consegue ver os objetos pequenos à frente, mas ignora os grandes. E quando sua memória falhava e os registros escritos eram falsificados – quando isso ocorria, as alegações do Partido, isto é, de que era responsável pela melhoria das condições de vida da população em geral, tinham de ser aceitas, pois não havia e jamais haveria parâmetros com os quais confrontarem tais alegações. Naquele momento o fio dos seus pensamentos subitamente se deteve. Ele parou e elevou seu olhar. Estava numa rua estreita, com algumas lojinhas escuras espalhadas entre prédios residenciais. Suspensas acima de sua cabeça viam-se três bolas de metal desbotado que davam a impressão de um dia terem sido douradas. Pareceu-lhe que conhecia aquele lugar. Mas é claro! Estava diante da lojinha onde tinha comprado o seu diário.

Sentiu uma pontada de medo. Já fora um tanto ousado comprar o caderno, de modo que ele tinha chegado a jurar para si mesmo que nunca mais se aproximaria daquele lugar. Entretanto, no momento em que deixou seu pensamento vaguear, foi justamente para lá que os seus pés, por iniciativa própria, o conduziram. Bem, era justamente contra impulsos suicidas dessa natureza que ele esperava se proteger ao iniciar seu diário. Mesmo assim, notou que embora já fossem cerca de nove da noite, a loja continuava aberta. Com a sensação de que chamaria menos atenção entrando do que ficando parado na calçada, entrou. Se perguntassem, poderia responder muito plausivelmente que estava procurando lâminas de barbear. O proprietário tinha acabado de acender o lampião a óleo que estava pendurado no teto e exalava um cheiro sujo, mas amistoso. Era um homem de seus sessenta anos, frágil e arqueado, de nariz comprido e benevolente, e olhos pacientes deformados pelos óculos grossos. Tinha o cabelo quase todo branco, mas as sobrancelhas eram grossas e pretas. Seus óculos, seus movimentos delicados e irrequietos, somados ao fato de trajar um velho paletó de veludo preto, davam a ele certo ar de intelectualidade, como se fosse um escritor, ou quem sabe um músico. Tinha a voz suave, meio amortecida, e sua conversa era menos degradada do que a maioria dos proletas.

“Eu o reconheci ali na calçada”, foi logo dizendo. “Foi o senhor que comprou aquele álbum de recordações. Papel muito bom aquele, não é? Era chamado de vergê creme. Já não fazem papel assim há pelo menos uns... Ah, acho que uns cinquenta anos, sem exagero.” Continuou fitando Winston por cima dos óculos. “Bem, eu posso ajudá-lo em algo mais? Ou só veio dar uma olhada?”

“Eu ia ando pela rua”, disse Winston, sem dar maiores detalhes, “e resolvi entrar. Não estou procurando nada em especial.”

“Está certo”, disse o lojista, “pois de fato não creio que pudesse ajudá-lo em muita coisa.” Desculpou-se fazendo um gesto com a mão. “Você veja como são as coisas: já não tenho quase nada, a loja está vazia. Cá entre nós, o comércio de antiguidades está por um fio. Acabou a procura, e o estoque também chegou ao

fim. Móveis, louças, cristais – aos poucos foram todos se quebrando. E é claro que a maioria das coisas de metal já foi fundida. Faz anos que eu não vejo um castiçal de latão.”

Na realidade a loja estava atulhada de mercadorias, mas quase nada ali tinha algum valor relevante. Mal era possível andar dentro dela, uma vez que o chão estava tomado por pilhas de moldura empoeiradas. Na janela havia bandejas de porcas e parafusos, formões estragados, canivetes com lâminas quebradas, relógios enegrecidos que nem davam mais a impressão de funcionar, e um monte de outras quinquilharias do tipo. Somente sobre uma mesinha no canto amontoava-se um conjunto de bugigangas – caixinhas de rapé laqueadas, broches de ágata e coisas assim – que talvez pudesse ter algo de interessante. Ao se deslocar em direção à mesinha, o olhar de Winston foi atraído por um objeto liso, redondo, que brilhava suavemente à luz do lampião. Apanhou-o com a mão e o ou a examiná-lo. Era um pedaço de vidro pesado, curvo de um lado e achatado do outro, quase no formato de um hemisfério. Em seu interior, ampliado pela superfície encurvada, via-se um objeto estranho, cor-de-rosa e espiralado, que lembrava uma rosa ou uma anêmona-do-mar.

“O que é isso?”, perguntou Winston, fascinado.

“É um coral”, explicou o velho. “Deve ter vindo do oceano índico. Costumavam incrustar essas coisas em vidro. Isso daí deve ter no mínimo uns cem anos, quiçá até mais.”

“É uma coisa linda”, disse Winston.

“É uma coisa linda”, concordou o outro, apreciando a peça. “Mas hoje em dia

poucos diriam isso.” Tossiu. “Agora, se por acaso estiver pensando em comprar, são quatro dólares. Eu me lembro de uma época em que um objeto como esse chegaria a valer umas oito libras esterlinas, e oito libras valiam... Bom, não sei mais calcular, mas sei que era um bocado de dinheiro. Hoje, no entanto, quem é que liga para antiguidades genuínas, mesmo as poucas que sobraram?”

Winston pagou de imediato os quatro dólares e enfiou o objeto cobiçado em seu bolso. Ele foi atraído não tanto por sua beleza, mas principalmente pela impressão de que aquilo pertencia a uma era muito diferente da atual. O vidro macio, límpido como água de chuva, não se parecia com nenhum outro vidro que conhecia. O objeto era duplamente atraente por além de tudo ser inteiramente inútil, embora ele tivesse a intuição de que sua finalidade original era a de servir como um peso de papel. Pesava bastante no bolso, mas por sorte não fazia tanto volume. Era um objeto consideravelmente estranho, até mesmo comprometedor, para estar na posse de um membro do Partido. Tudo o que era antigo e tudo o que era belo era sempre vagamente suspeito. O velho ficou claramente mais animado depois de receber os quatro dólares. Winston se deu conta de que ele provavelmente teria se contentado com três, até mesmo com dois dólares.

“Lá em cima tenho um quarto que você talvez queira conhecer”, disse. “Não tem grandes coisas, só uma ou outra peça. Mas, se formos subir, vamos precisar de luz.”

Acendeu outro lampião e, com as costas inclinadas, conduziu Winston por uma escada íngreme e gasta, que dava num corredor minúsculo no andar de cima, até chegarem a um aposento que não era virado para a rua, e sim para um pátio com piso de seixos arredondados e uma floresta de coifas de chaminé. Winston se deu conta de que os móveis continuavam arrumados como se o cômodo fosse habitado no dia a dia. Havia um tapete comprido no chão, um ou dois quadros na parede e uma poltrona funda, mal conservada, junto à lareira. Um relógio de vidro antigo, com mostrador de doze horas, tiquetaqueava sobre a borda da lareira. Debaixo da janela, ocupando quase um quarto do aposento, via-se uma

enorme cama de casal, ainda com seu colchão.

“Nós vivemos nesse quarto até minha mulher morrer”, disse o velho, como quem dá uma desculpa. “Estou vendendo a mobília aos poucos. Essa cama de mogno é linda, tirando os percevejos. Mas receio que você ache ela um tanto grandalhona.”

O sujeito estava segurando o lampião bem alto, no intuito de iluminar todo o aposento, e sob aquela luz morna e amarelada, o lugar parecia curiosamente aconchegante. Como um raio, ou pela cabeça de Winston a ideia de que seria muito fácil alugar aquele quarto por alguns dólares semanais, se tivesse coragem de se arriscar com isso. Era uma ideia louca, despropositada, que merecia ser imediatamente abandonada. Mas o quarto tinha despertado nele uma espécie de nostalgia, uma saudade ancestral. Winston tinha a impressão de saber exatamente como seria a sensação de estar sentado num lugar como aquele, numa poltrona ao lado da lareira, com os pés apoiados no guarda-fogo e uma chaleira sobre a chapa lateral: completamente só, totalmente seguro, sem ninguém a observá-lo, sem voz alguma a persegui-lo, sem ruído algum além do tique-taque do relógio e do assobio da chaleira.

“Não há teletela!”, ele não conseguiu evitar que o comentário saísse da boca, como um sussurro.

“Ah”, disse o velho, “eu nunca tive essas coisas. É tudo muito caro. E, de certa forma, nunca senti falta. Veja só que bela mesinha de abas dobráveis ali no canto. Só que se você quiser usá-la, terá de trocar as dobradiças, é claro.”

No outro canto havia uma pequena estante de livros, e Winston já tinha começado a se dirigir até ela. Só tinha porcaria. A busca e a destruição de livros fora realizada nos bairros proletas de forma tão diligente e exaustiva quanto em

todos os demais lugares. Era pouco provável que ainda existisse em toda a Oceania um único livro impresso antes de 1960. O velho, ainda segurando o lampião, estava parado diante de um quadro emoldurado em pau-rosa pregado na parede do outro lado da lareira, do lado oposto ao da cama.

“Agora, se tiver algum interesse em gravuras antigas...”, começou a falar, delicadamente.

Winston atravessou o quarto para examinar o quadro. Era uma gravura em metal de um edifício oval, de janelas retangulares, e uma pequena torre na fachada. Havia uma grade de ferro em torno do prédio e, nos fundos, algo que lembrava uma estátua. Winston contemplou a imagem por alguns instantes. Parecia-lhe vagamente familiar, embora não se lembrasse da estátua.

“A moldura foi fixada à parede”, disse o velho, “mas se quiser eu creio que possa desparafusá-la.”

“Conheço esse prédio”, disse Winston por fim. “Hoje ele se encontra em ruínas. Fica no meio da rua, bem na frente do Palácio da Justiça.”

“Isso mesmo. Bem em frente ao Fórum. Ele foi bombardeado em... Bem, já fazem muitos anos. Antigamente era uma igreja. Eles a chamavam de São Clemente dos Dinamarqueses.” Sorriu, com ar de desculpa, como se tivesse consciência de estar dizendo algo ligeiramente ridículo, e acrescentou: ‘Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente!’”

“O que é isso?”, Winston quis saber.

“Ah, ‘Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente’. Era uma rima da minha época de infância. Já não lembro como ela continuava, mas sei que acabava com: ‘Aí vem a luz da vela, vá para cama com ela. Aí vem um machado, cuidado para não perder a cabeça com um corte bem dado’. Era uma espécie de dança. As pessoas se davam as mãos e erguiam os braços, formando como se fosse um túnel, e a gente ava embaixo. Daí, quando cantavam ‘cuidado para não perder a cabeça’, eles abaixavam os braços e prendiam quem estava ando debaixo. Era uma canção só com nomes de igrejas. Tinha nela todas as igrejas de Londres – isto é, as principais.”

Winston ficou se indagando, de forma vaga, a que século pertenceria a tal igreja. Era sempre complexo determinar a idade de um prédio londrino. Tudo o que era grande e imponente, e de aparência relativamente nova, era automaticamente rotulado como uma obra posterior à Revolução, ao o que todas as construções que eram evidentemente mais antigas eram todas atribuídas a um período obscuro denominado Idade Média. Era dito que séculos e séculos de capitalismo não haviam produzido nada de valor. Assim, conhecer a história pela arquitetura era tão inviável quanto conhecê-la através dos livros. Estátuas, inscrições, lápides comemorativas, nomes de ruas – tudo quanto pudesse lançar alguma luz sobre o ado fora sistematicamente alterado.

“Nunca soube que esse edifício um dia foi uma igreja”, disse.

“Ora, ainda há uma porção delas por aí”, explicou o velho, “só que hoje elas são usadas para outras finalidades. Mas, puxa vida, como era mesmo que continuava a canção? Ah! Lembrei!

Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente, Você deve três vinténs pra mim, dizem os sinos da São Martim...

Bem, eu me lembro desse pedaço, do resto já não sei. Um vintém era uma moedinha de cobre parecida com a de um centavo.”

“Onde ficava a igreja de São Martim?”, Winston quis saber.

“A de São Martim? Ela ainda está de pé. Fica na Praça Vitória, ao lado da galeria de pintura. É um prédio com uma espécie de fachada triangular com colunas, e uma escadaria imensa.”

Winston conhecia bem o tal prédio. Era um museu destinado a diversas exposições de propaganda: maquetes e miniaturas de mísseis e Fortalezas Flutuantes, figuras de cera representando as atrocidades cometidas pelos inimigos e coisas do tipo.

“São Martim dos Campos, era como a chamavam”, acrescentou o velho, “mas eu não me lembro de nenhum campo lá naquelas bandas.”

Winston não comprou a gravura. Seria uma posse ainda mais despropositada do que o peso de papel de vidro. Ademais, ele não poderia levá-la para casa – a menos que a retirasse da moldura. Mas se deixou ficar alguns minutos conversando com o velho, cujo nome, veio a descobrir, não era Weeks – como talvez se pudesse deduzir pelo letreiro na fachada da loja –, mas Charrington. Ao que parecia o sr. Charrington era um viúvo de sessenta e três anos que morava naquela mesma loja havia cerca de trinta. Durante todo esse tempo ele tivera a intenção de mudar o nome na fachada, mas nunca chegou a tomar a decisão final. Enquanto eles conversavam, a canção meio esquecida ecoava na cabeça de Winston:

Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente, Você deve três vinténs pra mim, dizem os sinos da São Martim...

Era curioso, mas repetindo a letra, ele tinha de fato a impressão de ouvir os sinos; os sinos de uma Londres perdida que ainda existia em algum lugar, disfarçada e esquecida. De cada uma de suas torres fantasmagóricas ele parecia ouvi-los tocando. No entanto, até onde podia se lembrar, em sua vida inteira ele nunca tinha ouvido as badaladas de um sino de igreja. Despediu-se do sr. Charrington e desceu a escada sozinho, pois não queria que o velho o visse examinando a rua antes de sair. Já tinha tomado a decisão de que, após algum tempo – um mês, quem sabe – se arriscaria a visitar a loja outra vez. Talvez não fosse mais perigoso do que faltar a uma noite no Centro. A verdadeira tolice foi ter voltado ali, depois de ter comprado o diário, sem saber ao certo se o dono do estabelecimento merecia a sua confiança. Contudo...! Sim, pensou novamente, haveria de voltar. Compraria outras amostras de belas bugigangas. Compraria a gravura da São Clemente dos Dinamarqueses, depois a retiraria da moldura e a levaria para casa enrolada debaixo da jaqueta de seu macacão. Arrancaria da memória do sr. Charrington o restante dos versos daquela canção. Até mesmo o projeto insano de alugar o quarto do andar de cima voltou a cintilar em sua mente. Durante uns cinco segundos, talvez, o seu entusiasmo o deixou desatento, e Winston saltou para a calçada sem antes dar uma espiada pela janela. Tinha até começado a cantarolar baixinho, numa melodia improvisada:

Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente, Você deve três vinténs pra mim, dizem os...

Subitamente, seu coração pareceu-lhe gelar no peito, enquanto seus intestinos

deram a impressão de derreter. Uma pessoa de macacão azul vinha caminhando na direção oposta, a menos de dez metros dele. Era a morena do Departamento de Ficção. Embora estivesse começando a escurecer, Winston não teve nenhuma dificuldade em reconhecê-la. Ela o encarou por um breve instante, depois se afastou em adas rápidas, como se não o tivesse visto. Durante uns bons segundos, Winston sentiu-se tão paralisado que não pôde se mexer. Depois virou para a direita e saiu dali com adas pesadas, sem perceber que tinha tomado a direção errada. De qualquer modo, uma questão estava resolvida: agora não havia mais dúvida de que a garota o espionava. Ela devia tê-lo seguido até lá, porque não era verossímil que por puro acaso ela fosse ear na mesma noite pela mesma viela obscura, a quilômetros de distância de qualquer bairro habitado por membros do Partido. Seria muita coincidência. Pouco importava se pertencia à Polícia do Pensamento, ou se era apenas uma espiã amadora movida pelo excesso de zelo. Bastava que estivesse a observá-lo. Provavelmente também o vira entrar no bar. Era difícil caminhar. A cada o dado, o cristal em seu bolso se chocava contra sua coxa, e ele chegou a pensar em simplesmente jogá-lo fora. Mas o pior de tudo era a dor de barriga. Durante uns dois minutos, teve a impressão de que morreria se não achasse logo uma privada. Mas num bairro como aquele certamente não havia banheiros públicos. Felizmente o espasmo ou, deixando em seu lugar apenas uma dorzinha chata. A rua era um beco sem saída. Winston se deteve, ficou alguns segundos pensando no que fazer, e enfim deu meia-volta e começou a refazer seus os. Ao dar meia-volta, ocorreu-lhe que a garota tinha cruzado seu caminho havia não mais que três minutos e que, se apertasse o o, provavelmente ainda podia alcançá-la. Poderia segui-la até um lugar ermo, e daí esmagar seu crânio com alguma pedra solta da calçada. Até mesmo o peso de papel em seu bolso deveria dar conta do recado. Mas ele abandonou imediatamente o plano, pois mesmo a ideia de fazer qualquer tipo de esforço físico naquele momento lhe era inável. Não conseguia correr, e não seria capaz de atacar ninguém. Além disso, ela era jovem e vigorosa e poderia muito bem se defender. Pensou também em correr para o Centro Comunitário e ficar por lá até o lugar fechar, tratando de forjar um álibi parcial para aquela noite. Mas isso também parecia ser impossível. Um tremendo cansaço o dominava. O que ele queria mesmo era chegar logo em casa para poder se sentar e descansar num canto.

ava das dez da noite quando finalmente chegou ao seu apartamento. Às onze e meia o fornecimento de luz seria cortado na central. Dirigiu-se à cozinha e engoliu uma xícara quase cheia de Gim Vitória, depois sentou-se à mesa da alcova e tirou o diário da gaveta. Mas não o abriu de imediato. Na teletela uma mulher com voz metálica entoava uma canção patriótica nas alturas. Ele permaneceu ali, contemplando o papel mármore da capa do caderno, tentando eliminar aquela voz de sua consciência, sem sucesso. Era à noite que eles vinham prender as pessoas, sempre à noite. O ideal era que a pessoa se suicidasse antes de ser capturada. Sem dúvida havia gente capaz disso. De fato, muitos dos desaparecidos eram suicidas. Mas era preciso ter uma coragem desesperada para se matar num mundo em que em parte alguma era possível obter armas de fogo ou venenos de ação rápida e segura. Winston refletiu, com uma espécie de assombro, acerca da inutilidade biológica da dor e do medo; na traição do corpo humano, que invariavelmente se congelava na inércia justamente no momento em que dele se exigia um esforço a mais. Poderia ter silenciado a garota morena se conseguisse agir com rapidez, mas precisamente por conta do perigo extremo que corria, havia perdido inteiramente a capacidade de agir. Assim, ocorreu-lhe que nos momentos de crise o embate da pessoa nunca era com um inimigo externo, mas sempre com seu próprio corpo. Mesmo agora, a despeito do gim, a dorzinha chata que sentia no estômago o impedia de encadear seus pensamentos. E o mesmo se dava em todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas pelas quais lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo se dilata até ocupar o universo inteiro, e mesmo quando não estamos paralisados pelo medo nem gritamos de dor, a vida é uma luta sem fim contra a fome ou o frio ou a insônia, contra um estômago enjoado ou uma dor de dente. Abriu o seu diário. Era importante escrever alguma coisa naquele momento. A mulher da teletela tinha iniciado uma nova canção. Sua voz parecia cravejar o seu cérebro com cacos de vidro pontiagudos. Winston tentou pensar em O’Brien, por quem, ou para quem, o diário estava sendo escrito, mas em vez disso começou a pensar no que se aria com ele depois que a Polícia do Pensamento o levasse. Não fazia diferença se o matassem na mesma hora. Ser morto era justamente o esperado. A questão era que antes da morte (ninguém tocava nesse assunto, apesar da coisa ser do conhecimento geral) seria preciso

ar pela rotina da confissão: rastejar pelo chão, implorar por misericórdia, ouvir o estalido dos próprios ossos se partindo, ter os dentes quebrados, ver os chumaços de cabelo ensanguentado. Afinal, por que submeter as pessoas àquilo, se o final era sempre o mesmo? Por que não encurtar a vida delas em alguns dias ou semanas? Ninguém jamais havia se livrado da prisão e ninguém jamais havia deixado de confessar. A partir do momento em que a pessoa sucumbia ao pensamento-crime, fatalmente estaria morta dali a algum tempo. Por que então aquele terror tinha de ser estabelecido no futuro, se ele não alterava absolutamente nada? Winston voltou a tentar – com um pouco mais de êxito do que antes – evocar a imagem de O’Brien: “Ainda nos encontraremos lá onde não há trevas”, ele dissera. Winston sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber. “Lá onde não há trevas” era o futuro imaginário, que nunca se podia vislumbrar inteiramente, mas que ainda podia ser compartilhado de forma mística através da presciência. Mas com a voz da teletela castigando seus ouvidos, era impossível se manter naquele fio de pensamento. Pôs um cigarro na boca. Não tardou para que metade do tabaco caísse em sua língua, um pó amargo um tanto difícil de cuspir. Então, o rosto do Grande Irmão surgiu-lhe na mente, expulsando de imediato o de O’Brien. Da mesma forma como fizera alguns dias antes, retirou uma moeda do bolso e ou a contemplá-la. O rosto o fitava de volta com uma expressão ao mesmo tempo grave, calma e protetora – mas que espécie de sorriso se ocultava sob aquele bigode preto? Tal qual versos fúnebres, as palavras lhe voltaram à mente:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Parte 2

1.

Já era lá pela metade da manhã quando Winston saiu de sua estação de trabalho para se dirigir ao banheiro. Uma figura solitária vinha ao seu encontro lá do outro extremo do imenso e bem iluminado corredor. Era a garota do cabelo escuro. Haviam se ado quatro dias desde que ele a viu quando estava diante da lojinha de bugigangas. Quando ela chegou mais perto, ele percebeu que seu braço direito estava apoiado numa tipoia, coisa que era imperceptível à distância porque a tipoia era justamente da mesma cor que o macacão do Partido. Provavelmente ela tinha machucado a mão enquanto manobrava um dos grandes caleidoscópios nos quais os enredos dos romances eram “criados”. Era um acidente relativamente comum no Departamento de Ficção. Estavam a cerca de uns quatro metros de distância quando ela tropeçou e caiu quase estatelada no chão, soltando um grito sentido de dor. Devia ter caído sobre o braço já machucado. Winston se deteve ante a cena, enquanto a garota já estava se ajoelhando para levantar. Seu rosto tinha adquirido um tom amarelocreme, o que só ajudava a realçar seus lábios, mais vermelhos do que nunca. Seus olhos estavam fixados nos dele, com uma expressão de súplica que lembrava mais medo do que dor. Uma emoção estranha fez o coração de Winston se agitar no peito. Diante dele estava uma inimiga que desejava a sua morte; mas diante dele também havia uma criatura humana que sofria, quiçá com algum osso quebrado. Instintivamente, fez um gesto na sua direção com a intenção de ajudá-la naquela situação. No instante em que Winston a viu cair sobre o braço ferido, fora como se ele sentisse aquela dor em seu próprio corpo.

“Você se machucou?”, achou por bem perguntar.

“Não foi nada. É meu braço, mas logo a.”

Ela falou isso como se o seu coração quisesse voar para fora do peito. Estava visivelmente pálida.

“Você não quebrou nada, né?”

“Não, eu estou bem. Doeu um pouco, mas já está ando.”

Ela lhe estendeu a outra mão, e ele a ajudou a se recompor. De pé, ela já tinha recuperado alguma cor, e parecia bem melhor.

“Não foi nada”, ela repetiu. “Apenas uma pancada no pulso. Obrigada, camarada!”

Tendo dito isso, ela seguiu na mesma direção de antes, com a mesma ada resoluta, como se quisesse demonstrar que de fato não tinha se machucado. Todo o ocorrido não havia ado de meio minuto, ou talvez nem isso. Não permitir que os sentimentos se revelassem no semblante era um hábito que já havia adquirido proporções de instinto; além disso, tudo havia se ado bem diante de uma teletela. Em todo caso fora muito difícil não manifestar uma surpresa momentânea, pois nos dois ou três segundos em que ele a ajudava a se reerguer, a garota tinha enfiado em sua mão alguma coisa. Não havia a menor dúvida de que o seu gesto foi intencional. Era um objeto pequeno e achatado. Ao ar pela porta do banheiro, ele o transferiu para o bolso e o apalpou com a ponta dos dedos. Era um pedacinho de papel, dobrado várias vezes. Enquanto permanecia de pé, diante do mictório, com um movimento dos dedos ele conseguiu desdobrar o papel. Era evidente que continha algum recado. Por um momento, sentiu-se tentado a se trancar num dos cubículos com privada para

lê-lo ali mesmo, mas ele bem sabia que seria uma loucura bem estúpida – afinal, eles eram justamente um dos locais que as teletelas vigiavam com atenção redobrada. Voltou a sua estação de trabalho, sentou-se e, com toda a naturalidade, atirou o papelzinho no meio de outros papéis sobre a escrivaninha, como se ele não tivesse a menor importância. Colocou os óculos e puxou o falaescreve na sua direção. “Cinco minutos”, disse para si mesmo. “No mínimo cinco minutos!” Dentro do peito, sentia o coração saltar numa batida medonha. Por sorte a sua tarefa naquele momento era pura rotina – a retificação de uma extensiva lista de números –, de modo que não requeria grande atenção. Fosse o que fosse que estava escrito naquele papel, devia ter algum sentido político. Até onde podia imaginar, havia tão somente duas possibilidades. Uma, e a mais provável, era de que a garota fosse agente da Polícia do Pensamento, como ele temia desde o início. Não compreendia porque a Polícia do Pensamento haveria de mandar recadinhos como aquele, mas devia ter os seus motivos. O que estava escrito no papel podia ser uma ameaça, uma intimação, uma ordem de suicídio, ou mesmo alguma espécie de armadilha. Mas havia outra possibilidade, mais louca, que insistia em martelar seus pensamentos, embora ele se esforçasse ao máximo para reprimi-la. Era de a mensagem não vir exatamente da Polícia do Pensamento, mas sim de alguma espécie de organização clandestina. Talvez a Irmandade existisse, afinal de contas! Quiçá a garota fosse parte dela! Sem dúvida que era uma ideia um tanto absurda, mas ela tinha brotado em sua mente no mesmo instante em que sentiu o papelzinho ser inserido em sua mão. Só minutos depois a primeira explicação, muito mais provável, lhe ocorrera. E mesmo agora, apesar de seu intelecto lhe dizer que provavelmente aquele recado significava o seu fim – mesmo agora, não era nisso que ele acreditava, e a esperança irracional persistia, e seu coração insistia em martelar o peito, e foi com alguma dificuldade que ele conseguiu evitar que a sua voz tremesse enquanto murmurava os números para o falaescreve. Enrolou todos os papéis usados no trabalho recém-concluído e enfiou-os no tubo pneumático. Haviam se ado oito minutos. Ajustou os óculos no nariz, suspirou e puxou para perto o outro maço de papéis referente à tarefa seguinte, com o papelzinho em cima. Pegou-o e alisou-o com os dedos. Nele estava escrito, numa letra grande e irregular:

EU TE AMO.

Durante vários segundos, Winston permaneceu em estado de choque, sendo incapaz até mesmo de lembrar-se de atirar a peça incriminadora no buraco da memória. Quando enfim se livrou do recado, não o fez sem antes o reler uma vez mais, para se certificar de que eram mesmo aquelas palavras, embora soubesse muito bem do risco envolvido em demonstrar tanto interesse por qualquer tipo de leitura. Ao longo do restante da manhã, foi muito difícil se manter concentrado no trabalho. Pior do que ser obrigado a direcionar a mente para uma série de tarefas minuciosas e insignificantes era a necessidade de disfarçar o seu estado de ânimo diante da teletela. Era como se uma fogueira ardesse em sua barriga. Foi uma nova tortura o almoço na cantina quente, ruidosa e apinhada de gente. Winston teve a esperança de ficar a sós alguns minutos durante a refeição, mas para o seu azar o imbecil do Parsons veio sentar-se ao seu lado, com um fedor de suor que quase vencia o cheiro do guisado, e o bombardeou com diversos comentários acerca dos preparativos para a Semana do Ódio. Estava interessadíssimo num modelo em papel machê da cabeça do Grande Irmão, de uns dois metros de altura, que estava sendo construído especialmente para o evento pelo grupo de Espiões de sua filha. O mais irritante era que no meio daquela algazarra de vozes Winston mal conseguia ouvir o que Parsons dizia, e tinha de ficar o tempo todo pedindo para que ele repetisse uma ou outra observação idiota. Apenas uma vez pôde ver a garota de relance, do outro lado do salão, sentada com duas outras moças numa mesa. Ela não deu indicações de tê-lo visto, e em todo caso ele não voltou a olhar na sua direção. A tardinha foi mais ável. Logo depois do almoço recebeu uma tarefa delicada, difícil, que lhe exigiu várias horas de pesquisa e o abandono das demais questões. Consistia da falsificação de uma série de relatórios de produção de dois anos antes, com o objetivo de desacreditar um eminente membro do Partido Interno que hoje se encontrava comprometido por suspeitas nebulosas. Essa era a função que Winston desempenhava com o maior talento, de modo que durante mais de duas horas conseguiu manter sua mente livre da questão com a garota. Mas logo após a memória do seu rosto voltou a invadir seus

pensamentos, e com ela um desejo avassalador, intolerável, de simplesmente ficar só. Afinal, seria impossível elaborar aquilo tudo enquanto não conseguisse estar sozinho. À noite, no entanto, ele deveria ir ao Centro Comunitário. Engoliu as pressas outra refeição sem gosto na cantina, correu até o Centro, participou da farsa solene de um “grupo de discussão”, jogou duas partidas de pingue-pongue, entornou vários copos de gim na garganta e ou mais meia hora sentado ouvindo uma palestra intitulada “O Ingsoc e o jogo de xadrez”. Sua alma se contorcia de tédio, mas dessa vez ou a noite inteira no Centro. Afinal, a visão das palavras EU TE AMO naquele papelzinho tinha feito o desejo de permanecer vivo transbordar em seu interior, e a ideia de correr mais riscos sem necessidade pareceu-lhe de repente uma grande idiotice. Foi somente depois das onze da noite, quando já se encontrava em casa e deitado na cama – no escuro, onde a pessoa fica oculta até da teletela, desde que mantenha o silêncio –, que ele encontrou o momento para pensar alongadamente. Era uma questão física que exigia uma solução: como entrar em contato com a garota e marcar algum encontro. Já não lhe ava pela mente a possibilidade daquilo ser uma armadilha. Sabia que não era, por conta da inconfundível agitação da garota ao lhe ar o bilhete. Era evidente que ela estava apavorada, como seria muito natural. Tampouco cogitou a ideia de se esquivar inteiramente daquela situação. De fato, há apenas cinco noites ele tinha considerado a ideia de esmagar o seu crânio com um bloco de calçada; mas isso já não era importante. Imaginava o seu corpo jovem inteiramente nu, tal como viu naquele sonho. Havia pensado que ela fosse tão tola quanto às demais moças, que sua mente estava entupida de mentiras e ódio e seu ventre de gelo. Uma espécie de febre o dominou ao pensar que poderia perdê-la, que aquele corpo tão branco e jovem pudesse escapar de suas mãos! O que ele temia mais do que tudo era que ela decidisse mudar de ideia se ele demorasse muito para responder aquele recado. Mas a dificuldade física do encontro era monumental. Era como tentar mover uma peça numa partida de xadrez quando você já via o xeque-mate chegando. Para onde quer que ele virasse o rosto, tinha uma teletela o encarando. Na realidade todas as formas possíveis de se comunicar com ela lhe haviam ocorrido nos cinco minutos após a leitura do recado; mas agora, com mais tempo para refletir, voltou a examiná-las uma por uma, como quem espalha pela mesa uma série de ferramentas. Era evidente que aquele tipo de encontro ocorrido pela manhã não poderia se

repetir. Acaso ela trabalhasse no Departamento de Registro, talvez fosse relativamente mais simples, mas ele tinha uma noção muito vaga da localização exata do Departamento de Ficção, e não havia nenhum pretexto para visitá-lo. Acaso soubesse onde ela morava, e a que horas deixava o trabalho, poderia achar um jeito de encontrá-la no caminho para casa. Mas segui-la pela rua não era prudente, pois teria de esperá-la nas imediações do Ministério, o que certamente seria notado. Quanto a enviar uma carta pelo correio, era impossível. Por um processo que sequer era secreto, todas as cartas eram abertas durante o trânsito. Na verdade pouquíssima gente ainda escrevia cartas. Quando, por alguma razão, havia necessidade de se enviar alguma comunicação, existiam cartões postais impressos com uma longa lista de frases, de modo que bastava riscar aquelas que não correspondiam ao que você desejava comunicar. Além do mais, ele não sabia o nome da garota, muito menos o seu endereço. Enfim, concluiu que o lugar mais seguro era a cantina. Se pudesse pegá-la sentada sozinha numa mesa, nalgum ponto mais para o centro do salão, não tão perto das teletelas e com barulho suficiente das conversas ao redor – se tais condições se mantivessem por pelo menos uns trinta segundos, talvez fosse possível trocar algumas palavras com ela de maneira segura. Durante uma semana inteira após a entrega do recado, a vida de Winston transcorreu como um sonho inquieto. No dia seguinte não viu nem sinal dela na cantina até que já era tarde, porque o toque da sirene indicando o fim do horário de almoço já tinha ocorrido. Bem, era possível que o horário dela tivesse sido trocado para um turno posterior. Eles se cruzaram sem sequer olhar um para o outro. Um dia depois ela estava na cantina em seu horário costumeiro, porém acompanhada por mais três moças, e todas sentaram numa mesa bem em frente a uma teletela. Em seguida, por três dias longos e angustiantes, ela simplesmente não foi vista em lugar algum. A mente e o corpo de Winston pareciam dominados por uma sensibilidade intolerável, uma espécie de lucidez aguçada, que transformava em agonia cada movimento, cada som, cada contato, cada palavra que ele era obrigado a dizer ou ouvir. Mesmo nas horas de sono ele era incapaz de escapar por completo da imagem dela. Durante tais dias, sequer tocou em seu diário. Se é que havia alívio em algum lugar, era em seu trabalho, onde por vezes conseguia desconectar sua mente daquela situação por, quem sabe, dez minutos seguidos. Afinal, ele não fazia a menor ideia do que poderia ter se ado com a garota. Não havia como

obter qualquer tipo de informação. Ela podia muito bem ter sido vaporizada, ou se suicidado, quiçá simplesmente transferida para o outro extremo da Oceania. De todas as hipóteses possíveis, a pior e a mais provável era que tivesse tão somente mudado de ideia, e resolvido ar a evitá-lo. Mas no dia seguinte ela reapareceu. Já não trazia o braço na tipoia, apenas uma tira de esparadrapo envolvendo o pulso. O alívio em revê-la foi tanto que não pôde resistir à tentação de olhar fixamente na sua direção por vários segundos. No dia seguinte, quase conseguiu lhe falar qualquer coisa: ao entrar na cantina, ela já estava sentada numa mesa longe da parede, e completamente sozinha. Era cedo, e o salão não estava apinhado como de costume. A fila avançou lentamente, até que Winston estava bem perto do balcão. Nesse momento houve um atraso de cerca de dois minutos, pois alguém tinha se queixado de não ter recebido seu tablete de sacarina. Mas a jovem ainda estava só quando Winston apanhou sua bandeja e começou a dirigir-se até sua mesa. Ele ia caminhando com naturalidade, fingindo procurar algum lugar mais adiante, até que já estava a cerca de três metros da mesa desejada. Bastavam mais dois segundos, mais alguns os, e tudo estaria resolvido. Então uma voz atrás dele chamou “Smith!”. Winston fingiu que não tinha ouvido. “Smith!”, repetiu a voz, agora mais alto. Era inútil insistir: virou-se, e viu que um jovem louro, com cara de bobo, chamado Wilsher, que ele na realidade mal conhecia, convidava-o com um sorriso a ocupar o lugar vago em sua mesa. Bem, não era seguro recusar a oferta. Após ser reconhecido por algum amigo que fosse, não cairia bem ir sentar-se à mesa de uma garota desacompanhada. Chamaria atenção demais. Assim, Winston sentou-se na mesa com um sorriso amistoso. O rosto louro e tolo correspondeu com outro sorriso. Winston teve uma alucinação súbita, onde ele próprio cravava uma picareta bem no meio daquele rosto. Minutos depois a mesa da garota foi toda ocupada. Entretanto, ela provavelmente o vira se aproximar, e quem sabe tivesse entendido como um sinal. No dia seguinte, ele procurou chegar mais cedo. E, de fato, lá estava ela, numa mesa mais ou menos no mesmo lugar, ainda só. A pessoa que estava na sua frente na fila era um homenzinho de movimentos rápidos, tal qual um besouro, de cara achatada e olhos desconfiados. Assim que se afastou do balcão carregando sua bandeja, Winston viu o homenzinho seguir para a mesa da garota. Outra vez, suas esperanças morriam na praia. Havia um lugar vago numa outra mesa um pouco mais afastada, mas alguma coisa na aparência daquele homenzinho dava a entender que ele devia ser alguém

suficientemente atento ao próprio conforto para optar pela mesa mais vazia. Winston continuou andando, com o coração apertado no peito. Não adiantaria nada sentar na mesma mesa se não pudesse ficar a sós com ela. Nesse momento houve um grande barulho. O homenzinho estava de quatro, estatelado no chão. Sua bandeja tinha voado longe, e dois pequenos rios de sopa e café escorriam pelo chão. O homenzinho se ergueu, dirigindo um olhar fulminante para Winston, a quem visivelmente considerava o provável culpado pelo seu tropeço. Mas acabou dando tudo certo. Cinco segundos depois, com o coração martelando o peito, Winston já estava sentado na mesa da garota. De início, não olhou para ela. Assim que se sentou, retirou os alimentos da bandeja e começou a comer. Era muito importante falar imediatamente, antes que alguém mais decidisse se sentar à mesa, mas ele estava paralisado de medo. Uma semana inteira havia se ado desde que ela tinha lhe dado o recado. Talvez tivesse mudado de ideia, com certeza tinha mudado de ideia! Era impossível que aquele caso terminasse bem; isso simplesmente não ocorria na vida real. E ele teria se calado para sempre se naquele momento não tivesse visto Ampleforth, o poeta de orelhas peludas, vagando pelo salão com sua bandeja em mãos, buscando um lugar para sentar. Ainda que na sua maneira vaga, Ampleforth nutria alguma simpatia por Winston, e decerto escolheria a mesa onde estavam, caso o visse nela. Assim, ele tinha não mais do que um minuto para agir. Ele e a garota comiam sem parar. O prato do dia era um ensopado ralo de vagem. Quase que sussurrando, Winston começou a falar. Em nenhum momento eles levantaram os olhos. Metendo colherada após colherada da sopa na boca, trocaram as palavras necessárias, num murmúrio sem qualquer tipo de expressão facial.

“A que horas você sai do serviço?”

“Seis e meia.”

“Onde podemos nos ver?”

“Praça da Vitória, perto do monumento.”

“Lá é cheio de teletelas.”

“Não tem importância, se houver bastante gente.”

“Algum código?”

“Não. Não se aproxime até que eu esteja no meio da multidão. E não olhe pra mim. Apenas fique por perto.”

“A que horas?”

“Às sete.”

“Tudo bem.”

Ampleforth acabou não notando Winston, e sentou-se noutra mesa. Eles não voltaram a trocar sequer uma palavra; e, tanto quanto era possível, em se tratando de duas pessoas sentadas uma de frente para outra numa mesma mesa, não trocaram olhares. A garota terminou seu almoço e foi embora, enquanto Winston decidiu ficar mais um pouco para fumar um cigarro.

Winston chegou na Praça da Vitória antes da hora marcada. Deu algumas voltas em torno da base da imensa coluna espiralada cujo topo sustentava a estátua do Grande Irmão. A figura estava voltada para o sul, encarando os céus onde havia derrotado os aviões eurasianos (alguns anos antes eram lestasianos, segundo a história oficial da época) na Batalha da Pista Um. Na rua, diante da coluna, havia a estátua de um homem montado num cavalo, figura que supostamente representava Oliver Cromwell. Haviam se ado cinco minutos desde o horário combinado, e nada da garota aparecer. Novamente, um terrível medo se apossou de Winston. Ela não viria, tinha mudado de ideia! Dirigiu-se lentamente para o lado norte da praça e, com uma espécie de prazer empalidecido pelas circunstâncias, identificou a igreja de São Martim, cujos sinos, na época em que ela os possuía, entoavam “Você deve três vinténs pra mim”. Nesse instante, viu a garota parada junto à base do monumento, lendo ou fingindo ler um texto gravado na própria coluna, que seguia sua espiral. Não era seguro se aproximar até que mais gente viesse transitar naquele ponto da praça. Havia teletelas por toda parte. Porém, justo naquele momento ouviu-se uma gritaria e uma barulheira de veículos pesados vindo de algum canto à esquerda de onde estava. De repente, teve a impressão de que todo mundo estava correndo para um mesmo ponto da praça. A garota, valendo-se de sua agilidade, contornou os leões da base do monumento e se juntou à multidão. Winston logo foi atrás. Enquanto corria, ouviu alguns gritos do povo, e percebeu que um comboio de prisioneiros eurasianos estava ando perto do ponto onde todos se amontoavam. O lado sul da praça já se encontrava ocupado por uma grande quantidade de pessoas, o que dificultava o o. Winston, que normalmente preferia estar no limite externo de qualquer tipo de tumulto, foi obrigado a distribuir cotoveladas e se espremer entre corpos até alcançar o centro da multidão. Assim, em pouco tempo viu que já se encontrava a um braço de distância da garota; mas daí teve seu avanço interrompido por um proleta imenso, acompanhado por uma mulher igualmente corpulenta, que juntos pareciam formar uma muralha de carne verdadeiramente impenetrável. Winston se contorceu, enfiou-se de lado e, com um empurrão violento, conseguiu meter seu ombro entre os dois. Por um instante parecia que seus intestinos estavam sendo esmagados entre aqueles dois quadris musculosos; mas enfim conseguiu ar, não sem perder algumas gotas de suor. Estava ao lado dela, ombro a ombro. Ambos fixavam o olhar num ponto

qualquer, na rua à frente. Uma longa fila de caminhões, com guardas de fisionomia impenetrável, em posição de sentido, com metralhadoras à mão, postados em cada canto dos veículos, ia trafegando lentamente. Nos caminhões, apertados uns pelos outros e de cócoras, iam homenzinhos amarelos vestindo uniformes esverdeados um tanto esfarrapados. Seus tristes rostos mongóis olhavam para fora, entretanto sem demonstrar a menor curiosidade. De vez em quando, os caminhões sacolejavam, e era possível ouvir o tilintar de metais: todos os prisioneiros estavam acorrentados por grilhões. Assim, um após o outro, avam muitos caminhões lotados de caras tristonhas. Winston sabia disso, mas só os podia ver intermitentemente. O ombro da garota, e o seu braço direito, até o cotovelo, se comprimiam contra ele. Sua face estava tão próxima que quase podia sentir seu calor. Ela assumiu imediatamente o controle da situação, como fizera na cantina. Começou a falar com o mesmo tom de voz inexpressivo de antes, mal mexendo os lábios, num sussurro que quase se perdia inteiramente em meio à algazarra de vozes e máquinas.

“Você consegue me ouvir?”

“Sim.”

“Consegue tirar folga no domingo à tarde?”

“Sim.”

“Então escute com atenção. Você vai precisar decorar isso. Vá até a estação Paddington...”

Com uma espécie de precisão militar que deixou Winston assombrado, a moça detalhou todo o itinerário que ele deveria seguir. Uma viagem de meia hora de trem. Sair da estação e seguir à esquerda. Dois quilômetros de caminhada pela estrada. Uma porteira sem a viga superior. Uma trilha que atravessa um campo. Uma agem gramada. Um caminho estreito entre arbustos. Uma árvore morta coberta de musgo. Era como se ela tivesse um mapa inteiro dentro da cabeça.

“Conseguiu decorar tudo?”, sussurrou por fim a garota.

“Sim.”

“Você vira à esquerda, depois à direita, depois à esquerda outra vez. E a porteira está sem a viga de cima.”

“Tudo certo. A que horas?”

“Mais ou menos às três da tarde. Talvez tenha de esperar lá um pouco. Eu devo chegar por outro caminho. Tem certeza que decorou tudo?”

“Sim.”

“Então dá o fora o mais rápido possível.”

Isso nem era necessário dizer. Só que durante algum tempo nenhum dos dois conseguiu se livrar daquela multidão toda. A fila de caminhões continuava

ando, e o povo, insaciável, queria ver tudo. No início algumas vais e assovios tinham surgido aqui e ali, mas vinham somente dos membros do Partido que estavam nas imediações, e não duraram muito. A emoção predominante era realmente a de pura curiosidade. Afinal os estrangeiros, fossem eles da Eurásia ou da Lestásia, eram uma espécie de animal estranho. Eles literalmente nunca eram vistos ando pela rua, senão como prisioneiros agrilhoados em cerimônias como aquela. Dessa forma, mesmo como prisioneiros eles podiam ser observados somente por alguns minutos. Tampouco se sabia o que acontecia com eles, sem contar os poucos que eram enforcados como criminosos de guerra. Os demais desapareciam, provavelmente sendo encaminhados para campos de trabalhos forçados. Faces mongóis e arredondadas tinham dado lugar a outras de um tipo mais europeu: sujas, barbadas e exaustas. Seus olhos por vezes se cruzavam com os de Winston, quando se fixavam com estranha intensidade, para logo após se afastarem para sempre. O comboio chegava ao fim. No último caminhão da fila vinha um velho, com o rosto coberto por um emaranhado de pelos e cabelos grisalhos, de pé, com seus punhos cruzados à frente do corpo, como alguém acostumado a andar com os braços amarrados. Estava quase no momento de Winston e a garota seguirem seus rumos. No último instante, no entanto, quando a multidão ainda os comprimia, a mão dela buscou a dele e a apertou ligeiramente. Na verdade o aperto de mão não durou nem dez segundos, mas ainda assim aquilo pareceu um longo tempo. Ele teve tempo de aprender todos os detalhes daquela mão: explorou os dedos compridos, as unhas naturalmente bem-feitas, a palma, calejada pelo trabalho duro, a carne macia da parte interna do pulso. Decorou-a inteira somente pelo tato, e soube que a reconheceria se a visse de novo. No mesmo instante, ocorreu-lhe que ainda não sabia a cor dos olhos dela. Deviam ser castanhos, mas pessoas de cabelo escuro às vezes têm olhos azuis. Virar a cabeça para olhá-la diretamente teria sido uma completa loucura. Com suas mãos se despedindo, invisíveis em meio à multidão, os dois continuavam olhando fixamente para frente, de modo que não eram os olhos da jovem que fitavam com melancolia os de Winston, e sim os olhos do velho prisioneiro, ocultos por seu cabelo desgrenhado.

2.

Winston seguiu pelo caminho pincelado de luz e sombra, pisando em poças douradas sempre que os ramos das árvores se distanciavam uns dos outros. Debaixo das árvores, à esquerda, o solo era como um mar de jacintos. O ar parecia beijar sua pele. Era dia dois de maio. De algum canto no interior do bosque emergia o som característico dos pombos. Bem, ainda era cedo. A viagem não ofereceu nenhuma dificuldade, e a garota demonstrou ter tanto controle da situação que ele não sentia tanto medo quanto normalmente sentiria. Parecia claro que ele podia confiar nela para encontrar um lugar realmente seguro para um encontro. Em geral, não era possível supor que alguém estivesse mais seguro na zona rural do que em Londres. É claro que lá não havia teletelas, mas sempre se corria o risco de que o local fosse monitorado por microfones escondidos, que poderiam muito bem captar e identificar a voz de quem quer que estivesse por ali; além disso, não era fácil viajar sozinho sem atrair atenção. Para distâncias inferiores a cem quilômetros não havia necessidade do visto no aporte, mas às vezes havia patrulhas nas estações, examinando os documentos de todos os membros do Partido que eventualmente encontrassem, e fazendo perguntas indiscretas. No entanto, nenhuma patrulha aparecera, de modo que ao sair da estação Winston dirigira várias olhadelas cautelosas para trás, para ter a certeza de que não estava sendo seguido. O trem estava cheio de proletas, festivos e alegres por causa do calor de domingo. O vagão com assentos de madeira em que Winston viajou estava apinhado com os numerosos membros de uma só família, onde se incluíam desde uma vovó desdentada até um bebezinho com cerca de um mês. Pretendiam ar a tarde com os parentes do interior e, como explicaram sem qualquer cerimônia a Winston, comprar um pouco de manteiga no mercado negro. O caminho se alargou e, um minuto depois, Winston chegou à trilha mencionada pela garota – uma simples picada aberta pelo gado que costumava ar por ali e mergulhar mata adentro. Não trazia relógio, mas não deviam ser nem três da tarde. Os jacintos formavam uma camada tão densa debaixo de seus pés que era impossível andar sem pisar neles. Winston se ajoelhou e começou a colher alguns, em parte para ar o tempo, em parte pela vaga ideia de que seria

agradável ter um ramo de flores para oferecer à garota quando eles finalmente estivessem a sós. Já tinha reunido um buquê razoável, e estava aspirando levemente seu perfume enjoativo quando um ruído logo atrás dele o fez gelar da cabeça aos pés: era o estalido inconfundível de um pé pisando num graveto. Continuou colhendo flores. Era a melhor coisa a fazer. Podia ser a garota – ou talvez ele estivesse de fato sendo seguido. Olhar para trás seria uma confissão de culpa. Apanhou uma flor do chão, depois outra. Uma mão tocou suavemente o seu ombro. Winston olhou para cima. Era a garota. Ela balançou a cabeça, num sinal evidente de que ele devia se manter quieto; depois abriu caminho entre os arbustos e seguiu agilmente pela trilha estreita que conduzia ao interior do bosque. Era evidente que ela já tinha feito aquele caminho, pois evitava os trechos enlameados como se tivesse tudo mapeado na mente. Winston foi logo atrás, ainda com o buquê de flores na mão. Sua primeira sensação foi de alívio mas, observando o corpo forte e esguio à sua frente, com a faixa escarlate justa o suficiente para desvelar a curva dos quadris, começou a pesar-lhe a consciência da sua própria inferioridade. Afinal, mesmo agora ainda lhe parecia perfeitamente possível que ela se virasse, lhe desse uma olhada e se afastasse. Winston estava embriagado pela doçura do ar e o verdor das folhas. Já no caminho da estação até ali, os raios do sol de maio o haviam feito sentir-se sujo e anêmico, uma criatura que vivia sempre entre quatro paredes, com a poeira e a fuligem londrina impregnada nos poros. Ocorreu-lhe que até aquele momento ela provavelmente não o vira ao ar livre em plena luz do dia. Chegaram à árvore caída que ela tinha mencionado. A garota saltou sobre o tronco e empurrou alguns arbustos para os lados, revelando uma agem oculta. Quando seguiu atrás dela, Winston percebeu que eles estavam numa clareira natural, uma pequena colina coberta de relva e envolta por árvores novas e altas, que a escondiam por completo. A garota parou e virou-se para ele.

“Aqui estamos”, disse.

Winston se encontrava a alguns os de distância dela. Ainda não tinha coragem de se aproximar mais.

“Não quis dizer nada no caminho”, prosseguiu ela, “porque podia ter algum microfone escondido. Não creio que tinha, mas poderia ter. E aqueles porcos são bem capazes de reconhecer a nossa voz. Aqui nós estamos seguros.”

Ele continuava sem coragem de se aproximar dela.

“Estamos seguros?”, repetiu estupidamente.

“Sim. Olha essas árvores.” Eram pequenos freixos que tinham sido cortados e brotavam novamente, formando uma floresta de postes, nenhum deles mais grosso que o pulso de uma pessoa. “Não há nada grande o suficiente onde se possa esconder um microfone. E eu já estive aqui antes.”

Estavam só fazendo rodeios. Naquela altura Winston já havia dado o seu jeito de se aproximar um pouco mais. A garota continuava diante dele com o corpo ereto e um sorriso estampado no rosto, um sorriso com leve ar de ironia, como se perguntasse por que diabos ele estava demorando tanto para tomar alguma atitude. Os jacintos tinham caído pelo chão, em cascata. Pareciam ter se dirigido para lá por vontade própria. Winston pegou na mão dela.

“Você acredita”, disse, “que até agora eu não sabia a cor dos seus olhos?” Eram castanhos, observou; um castanho bem claro, com cílios escuros. “Agora que pode me ver direito, ainda aguenta continuar me olhando?”

“Sim, facilmente.”

“Tenho trinta e nove anos. Tenho uma esposa da qual não consigo me livrar. Tenho varizes. Ah, e cinco dentes postiços.”

“Pouco me importa”, disse a garota.

No momento seguinte, ela estava nos seus braços, sem que fosse possível dizer quem abraçou a quem. No começo Winston não sentiu nada, somente a mais completa incredulidade diante daquela cena. O corpo jovem se apertava contra o seu, mechas de cabelo escuro tocavam sua face e... sim! – ela realmente tinha acomodado seu rosto na posição certa, e ele estava beijando aquela boca de lábios grandes e vermelhos. Ela envolveu seu pescoço com os braços, e o chamava de meu querido, meu amor, meu adorado. Winston a puxou para o chão; ela não oferecia resistência alguma, ele podia fazer o que bem entendesse com ela. A verdade, no entanto, é que não experimentava nenhuma outra sensação física além do mero contato. Sentia-se ao mesmo tempo incrédulo e orgulhoso. Estava realmente contente por aquilo estar acontecendo, mas não tinha desejo físico. Tudo se sucedeu rápido demais, a juventude e a beleza dela o amedrontavam – ademais ele já estava demasiadamente acostumado a viver sem mulher, embora não soubesse por quê. A garota ergueu o tronco e retirou uma flor de jacinto dos cabelos. Depois se sentou encostada nele, ando um dos braços por sua cintura.

“Não tem nada não, querido. Não há pressa. Nós temos a tarde toda. Não é maravilhoso esse esconderijo? Eu descobri esse lugar numa vez em que me perdi durante uma caminhada comunitária. Se alguém vier nessa direção, podemos escutar a uns cem metros de distância.”

“Qual é o seu nome?”, perguntou Winston.

“Julia. O seu eu sei. É Winston – Winston Smith.”

“Como descobriu isso?”

“Acho que eu sou melhor que você para descobrir coisas, querido. Mas me diga: qual era a sua opinião ao meu respeito antes daquele dia em que lhe entreguei o recado?”

Winston não se sentia nem um pouco inclinado a lhe contar qualquer mentira. Até pensou que seria uma espécie de sacrifício ou oferenda amorosa lhe contar tudo desde o início.

“Eu tinha ódio. Só de olhar pra você”, disse. “Queria estuprá-la e depois matá-la. Há duas semanas eu pensei muito seriamente em esmagar sua cabeça com um bloco de calçada. Se quer mesmo saber, eu achava que você tinha alguma ligação com a Polícia do Pensamento.”

A garota gargalhou com vontade, evidentemente tomando aquelas palavras como um elogio à excelência da sua capacidade de disfarce.

“A Polícia do Pensamento? Não me diga que pensou realmente nisso!?”

“Bem, talvez não nisso, exatamente nisso. Mas, veja só: você é tão jovem e saudável, sabe como é?... pensei que talvez...”

“Pensou que eu me dedicava de corpo e alma ao Partido. Uma moça pura, de gestos e palavras puras. Faixas, desfiles, palavras de ordem, jogos, caminhadas comunitárias – aquela coisa toda. Então achou que na primeira chance que tivesse eu iria denunciá-lo como criminoso do pensamento, e levá-lo à morte?”

“Sim, sim, algo assim. Você deve saber que há muitas garotas assim.”

“A culpa é toda dessa maldita faixa”, disse ela, arrancando a faixa escarlate da Liga Juvenil Antissexo e atirando-a contra o tronco de uma árvore. Daí, como se o gesto lhe recordasse algo, colocou a mão no bolso do macacão e retirou uma barra de chocolate. Quebrou-a pela metade e deu um dos pedaços para Winston. Antes mesmo de tê-lo em mãos ele percebeu, pelo cheiro, que se tratava de chocolate fora do comum. Era escuro e brilhante, e estava embalado num papel prateado. Em geral as barras de chocolate eram coisas marrons, foscas, farelentas, cujo gosto, até onde se podia descrever, lembrava a fumaça exalada pelos incineradores de lixo. No entanto, ele já havia provado um chocolate daquela qualidade antes. De fato, assim que o odor alcançou suas narinas, surgiu em sua memória algo que ele sequer conseguia definir, algo forte e perturbador.

“Onde você arranjou isso?”, perguntou.

“No mercado negro”, ela respondeu, como se não fosse nada demais. “Na realidade acho que sou esse tipo de garota para quem vê de fora: me destaco nos esportes; fui comandante de tropa enquanto estive nos Espiões; faço trabalho voluntário três noites por semana na Liga Juvenil Antissexo. ei horas e horas colando a baboseira deles pelas paredes de Londres. Nas paradas, sempre sou uma das que carregam as faixas. Estou sempre de cara alegre e nunca tiro o corpo fora das tarefas. É o que eu digo: ‘Nunca deixe de gritar junto com o povo’. É o único jeito de não correr perigo.”

O primeiro pedaço de chocolate já havia derretido na língua de Winston. O sabor era delicioso. Só que aquela lembrança continuava rondando as fronteiras de sua consciência, algo que podia sentir intensamente, mas não reduzir a uma forma definida, como um objeto visto de rabo de olho. Afastou-a de si, sabendo apenas que se tratava da lembrança de algum ato que gostaria de desfazer, mas não podia.

“Você é muito jovem”, disse. “Uns dez ou quinze anos mais jovem que eu. O que viu de atraente em mim?”

“Bem, foi alguma coisa no seu rosto. Achei que valeria a pena correr o risco. Sou boa em identificar pessoas que não se ajustam. Assim que bati os olhos em você, soube que você estava contra ELES.”

Por ELES, aparentemente, ela quis se referir ao Partido, e principalmente ao Partido Interno, sobre o qual ela falava com um ódio tão genuíno e sarcástico que Winston se sentia inquieto, mesmo sabendo que, se havia um lugar em que ambos sabiam estar seguros, esse lugar era ali. Outra coisa que o surpreendeu foi o seu linguajar um tanto grosseiro. Supostamente os membros do Partido não deveriam usar palavrões, e o próprio Winston raramente recorria a eles, pelo menos em voz alta. Julia, entretanto, parecia incapaz de mencionar o Partido, especialmente o Partido Interno, sem usar os palavrões que eram vistos escritos a giz e a carvão nos muros de certas ruelas escuras. Não que aquilo o desagradasse. Não ava de um sintoma de revolta que ela sentia contra o Partido e seus métodos, e de certa forma parecia algo perfeitamente natural e saudável, como o espirro de um cavalo que sente o cheiro de feno apodrecido. Eles tinham saído da clareira e vagueavam novamente pelo trecho pincelado de luz e sombra, com os braços em torno das respectivas cinturas sempre que a trilha se alargava ao ponto de permitir que andassem lado a lado. Winston notou que a cintura dela parecia bem mais delicada agora que a faixa tinha sido removida. Só se falavam por cochichos e sussurros. Fora da clareira, alertou

Julia, era melhor manter silêncio. Enfim alcançaram o limite do pequeno bosque, e Julia o deteve.

“Não vá para o campo aberto. Pode ter alguém na espreita. Enquanto ficarmos atrás das árvores, não corremos perigo.”

Estavam sob a sombra de algumas aveleiras. A luz do sol, filtrada pela folhagem extensa, ainda assim lhes ardia o rosto. Winston olhou para o campo diante deles e foi atingido por um lento e curioso choque de reconhecimento. Ele conhecia o local de vista. Uma pastagem antiga, já um tanto rasa, cortada por uma trilha sinuosa e com um ou outro montinho de terra feito por toupeiras. No cercado irregular de arbustos que se via do outro lado do campo, a brisa fazia com que os ramos dos olmos balançassem suavemente, de modo que as folhas estremeciam levemente, em densas massas, lembrando cabelos longos de mulher. Em algum lugar bem próximo dali, onde a vista não alcançava, deveria haver um riozinho formando poças verdes onde os robalos nadavam livremente.

“Por acaso não tem um riozinho aqui perto?”, ele sussurrou.

“Tem sim. Fica na beirada do outro campo ali na frente. Tem peixes, alguns até bem grandões. Dá pra vê-los balançando a cauda nos laguinhos à sombra dos salgueiros.”

“É a Terra Dourada... quase”, murmurou Winston.

“Terra Dourada?”

“Não é nada. É só uma paisagem que às vezes vejo em sonhos.”

“Olha!”, sussurrou Julia.

Um tordo tinha acabado de pousar num galho a menos de cinco metros de onde eles estavam, quase na altura dos olhos de ambos. Talvez não os tivesse visto; afinal ele estava ao sol, e eles na sombra. Abriu suas asas, depois tornou a fechálas cuidadosamente, baixou a cabeça por um instante, como se estivesse fazendo uma espécie de saudação ao sol, e então começou a cantar. Na quietude da tardinha, o volume da cantoria era surpreendente. Winston e Julia se abraçaram e deixaram-se ficar onde estavam, inteiramente fascinados com a cena. A melodia prosseguia sem cessar, minuto após minuto, com variações incríveis, que jamais se repetiam, quase como se o arinho estivesse deliberadamente se exibindo para os dois. Às vezes ele parava por alguns segundos, abria e voltava a fechar as asas, depois estufava o peito malhado e reiniciava seu canto. Winston o contemplava com uma espécie de vaga reverência. Para quem, para o que, estaria o tordo cantando? Não havia nem companheira nem rival à vista. Que é que o levava a pousar num campo deserto e cantarolar para o vazio? Winston perguntou a si mesmo se era de fato verdade que não havia algum microfone escondido nas redondezas. A conversa entre ele e Julia transcorrera inteiramente em voz baixa, e o aparelho não teria sido capaz de captar suas palavras, mas captaria o canto do tordo. Era perfeitamente possível que, na outra ponta do instrumento, um homenzinho com cara de besouro estivesse escutando atentamente – escudando aquilo. Aos poucos, no entanto, aquela torrente melódica foi expulsando de sua mente todo o tipo de conjectura. Era como algo líquido sendo despejado diretamente sobre o seu ser, inundando-o completamente; algo que inclusive se misturava com a luz do sol filtrada pela folhagem. Assim, Winston já não pensava, era pura sensação. A cintura da garota, envolta por seu braço, era quente e macia. Puxou-a para si, e os dois ficaram face a face, com seus peitos encostados um no outro, de modo que seu corpo pareceu fundirse com o dele. Por onde quer que suas mãos trafegassem pelo corpo dela, a

sensação era que ela se abria como água. Enfim suas bocas se colaram, e foi algo bem diferente dos beijos quase formais de outrora. Quando seus rostos se separaram outra vez, ambos suspiraram profundamente. O arinho se assustou e fugiu para o céu. Winston aproximou os lábios da orelha dela:

“AGORA”, ele sussurrou.

“Aqui não”, ela sussurrou de volta. “Vamos voltar ao esconderijo. É mais seguro.”

Depressa, pisando aqui e ali nalguns ramos secos, os dois refizeram o caminho de volta à clareira. Quando estavam uma vez mais envoltos pelo círculo de árvores, Julia se virou e o encarou. Ambos estavam um tanto ofegantes, mas o sorriso reaparecia nos cantos de seus lábios. Ela o fitou por alguns instantes, e logo depois tateou o zíper do macacão. E então, sim! Foi quase como se deu no sonho de Winston. Quase com a mesma agilidade, ela tirou a roupa; e, quando a atirou para um canto, o fez com o mesmo gesto magnífico que parecia capaz de aniquilar toda uma cultura. Seu corpo era bem branco, chegava a cintilar ao sol. Mas, por um momento, ele não o viu. Tinha os olhos fixados na sua face sardenta, no leve sorriso de ousadia. Ajoelhou-se diante dela e segurou suas mãos.

“Já fez isso antes?”

“Claro que sim. Centenas de vezes... bem, um montão de vezes.”

“Com membros do Partido?”

“Sim, sempre com membros do Partido.”

“Com membros do Partido Interno?”

“Não, com aqueles porcos, jamais. Mas há um bom bocado deles que FARIAM isso se vissem qualquer pequena abertura. Eles não são tão santinhos quanto gostam de parecer.”

O coração de Winston deu um solavanco. Quantas vezes afinal ela tinha feito aquilo? Ele gostaria que tivessem mesmo sido centenas – quiçá milhares. Tudo o que cheirasse a devassidão sempre o preenchia da esperança mais selvagem. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre debaixo da superfície; talvez seu culto ao zelo e à abnegação não asse de uma máscara ocultando o mais absoluto desregramento. Se pudesse infectar toda aquela corja com lepra ou sífilis, com que alegria o faria! Tudo que pudesse ajudar a apodrecê-lo, debilitálo e miná-lo ainda mais! Ele puxou Julia para baixo, de modo que ficaram ambos ajoelhados, frente a frente.

“Veja bem: quanto mais homens você teve, maior é o meu amor por ti. Você entende?”

“Sim, entendo perfeitamente.”

“Eu odeio a pureza, odeio a bondade! Não quero mais virtude em canto nenhum. Quero que todos sejam devassos até os ossos.”

“Bem, então acho que eu devo servir, querido. Sou devassa até os ossos.”

“Você gosta de fazer isso? Não me refiro somente a fazer comigo: falo da coisa em si.”

“Amo.”

Isso. Isso era, acima de tudo, o que Winston queria ouvir. Não somente o amor por uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples e indiscriminado: essa era a força capaz de esmagar o Partido, de reduzi-lo a pedacinhos. Winston a deitou sobre a relva, entre os jacintos. Desta vez não houve dificuldade alguma. Dali a alguns instantes, o ofegar do peito de ambos voltou ao normal; e, com agradável torpor, tombaram separados no solo. O sol parecia ter ficado mais quente. Ambos tinham sono. Ele apanhou os dois macacões que foram atirados num canto e os usou para cobrir uma parte do corpo dela. Pegaram no sono quase imediatamente – dormiram por cerca de meia hora. Winston foi o primeiro a acordar. Sentou-se e ficou contemplando o rosto sardento de Julia, que ainda dormia, usando as próprias mãos de travesseiro. Com exceção da boca, não se podia dizer que fosse tão bonita. Olhando de perto, viam-se uma ou duas rugas em torno de seus olhos. O cabelo escuro e curto era extraordinariamente espesso e macio. Winston lembrou-se que ainda não sabia o seu nome inteiro, nem sequer onde morava. Aquele corpo jovem e sadio, agora inteiramente desprotegido, provocou nele um sentimento comivo, protetor. Mas não pôde se conectar novamente com aquela ternura irracional que o tinha inundado enquanto o arinho cantava. Puxou os macacões para o lado e estudou o seu dorso branco e macio.

Antigamente, pensou, um homem olhava para o corpo de uma mulher, via que ele era desejável, e esse era o fim da história. Mas hoje em dia já não era possível sentir esse amor, esse desejo puro. Nenhuma emoção era pura, estava tudo misturado com o medo, e com o ódio. A união dos dois tinha sido uma batalha; o seu gozo, uma vitória. Aquilo era um duro golpe desferido contra o Partido: um genuíno ato político.

3.

“Nós ainda podemos voltar aqui”, disse Julia. “Em geral não há perigo em usarmos duas vezes o mesmo esconderijo. Mas só podemos voltar daqui a um ou dois meses, claro.”

Tão logo despertou, sua conduta havia mudado inteiramente. Tornou-se atenta e prática, vestiu-se, amarrou novamente a faixa escarlate na cintura e começou a organizar os detalhes da viagem de volta. De fato, a Winston pareceu natural deixar tal tarefa sob sua incumbência. Não havia como negar que o tino prático dela era superior ao seu; além disso, ela parecia conhecer perfeitamente os arredores de Londres – fruto da sua participação em incontáveis caminhadas comunitárias. O itinerário que ela lhe sugeriu era bem diferente do que tinha sido usado na ida, e o levava até outra estação ferroviária.

“Nunca volte para casa pelo mesmo caminho que usou para vir”, disse ela, como quem proclama uma importantíssima regra geral.

Ela iria na frente, e Winston deveria esperar meia hora antes de tomar o seu próprio rumo de volta. Julia também disse o nome de um lugar onde eles poderiam se reencontrar após o trabalho, dali a quatro dias. Era uma rua num dos bairros mais pobres da cidade, onde havia uma feira livre que costumava ser bem barulhenta e apinhada de gente. Ela ficaria andando de banca em banca, fingindo buscar cadarços para sapatos ou linha de costura. Acaso achasse não haver perigo, assoaria o nariz quando o visse se aproximando; senão, ele deveria simplesmente ar, sem reconhecê-la. Com sorte, no entanto, não haveria nenhum risco, e eles teriam cerca de uns quinze minutos para conversar no meio da multidão – tempo que também serviria para combinarem o próximo encontro.

“E agora eu tenho de ir”, disse ela, logo após ele ter decorado as instruções. “Devo estar de volta até sete e meia. Preciso trabalhar cerca de duas horas na Liga Juvenil Antissexo. Nós vamos distribuir uns panfletos, ou coisa assim. Não é um horror? Dá uma olhada em mim, por favor. Estou com alguma folha no cabelo? Tem certeza? Então até mais, meu amor, até breve!”

Ela se atirou em seus braços e o beijou com certa violência. Pouco depois se enfiou entre as árvores e desapareceu no bosque, praticamente sem fazer ruído algum. Winston continuava sem saber o seu nome inteiro, assim como o seu endereço. Mas não fazia a menor diferença, pois era impensável que algum dia eles pudessem se encontrar em ambientes fechados, ou trocar qualquer espécie de comunicação por escrito. Mas conforme as coisas se sucederam, eles jamais voltaram à clareira do bosque. Durante todo o mês de maio só houve uma única outra ocasião em que puderam ficar a sós por algum tempo. Foi noutro esconderijo conhecido de Julia: o campanário de uma igreja em ruínas que ficava numa área rural praticamente deserta, onde há trinta anos caíra uma bomba atômica. Era um esconderijo excelente uma vez em que se estava lá; o problema, no entanto, era justamente chegar lá: o trajeto era bem perigoso. No resto do tempo eles só puderam se encontrar pelas ruas, cada vez num lugar diferente, e nunca por mais de meia hora. Quando se viam na rua, em geral era possível conversar, por assim dizer. Enquanto caminhavam pelas calçadas apinhadas de gente, sem jamais estarem lado a lado nem olharem um para o outro, eles travavam uma conversa um tanto estranha, intermitente, que se interrompia e reatava como os fachos de um farol: ora subitamente silenciada pela aproximação de alguém com o uniforme do Partido, ou pela proximidade de uma teletela; ora retomada minutos depois já no meio de uma frase; ora cortada abruptamente quando os dois se afastavam um do outro no local previamente combinado; ora continuada, quase sem introdução, já no dia seguinte. Julia parecia bastante habituada a tal tipo de conversa, que ela chamava “falar em prestações”. Ela também tinha uma capacidade surpreendente de falar sem mexer os lábios. Apenas uma vez, em quase um mês de encontros noturnos, eles conseguiram trocar um beijo. Iam ando em silêncio por uma rua lateral (Julia nunca

falava quando estavam distantes das ruas e avenidas principais) quando se ouviu um estrondo ensurdecedor – a terra tremeu, o ar escureceu e Winston logo se viu deitado de lado, ferido e amedrontado. Uma bomba-foguete devia ter atingido algum ponto bem perto dali. De repente ele percebeu o rosto de Julia a poucos centímetros do dele, mortalmente pálido, branco como giz. Até os lábios dela estavam brancos. Estava morta! Apertou-a contra si e sentiu que estava beijando um rosto vivo e quente. Toda aquela brancura era nada mais que algum pó que tinha caído em cima deles, cobrindo seus corpos, assim como suas faces. Havia noites em que, tendo chegado ao ponto de encontro, tinham de ar um pelo outro sem dar qualquer pequena mostra de que se conheciam, por conta de alguma patrulha à vista, ou de um helicóptero sobrevoando as imediações. Ainda que fosse menos perigoso, seria difícil acharem tempo para se encontrarem. A semana de trabalho de Winston somava sessenta horas, e a de Julia era ainda mais longa. Já os seus dias de folga variavam conforme a pressão no trabalho, e raramente coincidiam. Na verdade era raro Julia ter uma noite inteiramente livre. Perdia um tempo impressionante assistindo a palestras e apresentações, distribuindo panfletos para a Liga Juvenil Antissexo, preparando faixas para a Semana do Ódio, fazendo arrecadação para a campanha da poupança, e outras atividades do tipo. Valia a pena, ela dizia – era uma camuflagem. Respeitando as leis menores, podia infringir as maiores. Chegou ao ponto de convencer Winston a comprometer mais uma de suas noites para dedicar meio expediente semanal à fábrica de munições, onde o trabalho era realizado voluntariamente por membros zelosos do Partido. Assim, uma noite por semana Winston ava quatro horas de um tédio paralisante aparafusando e montando pedacinhos de metal que provavelmente eram partes de fusíveis de bomba, numa oficina mal iluminada e cheia de correntes de ar – onde o barulho das marteladas se mesclava de forma horripilante com a música que emergia das teletelas. Quando se encontraram na torre da igreja, as falhas em suas conversas fragmentadas foram preenchidas. Era uma tarde de céu ardente. No quartinho logo acima dos sinos, o ar estava quente e parado, o que tornava o cheiro de fezes de pombo ainda mais impactante. Mesmo assim, aram horas conversando, sentados no chão empoeirado e cheio de detritos. De vez em quando um deles se levantava e ia espirar pelas seteiras, de modo a ter certeza de que ninguém se aproximava do local.

Julia tinha vinte e seis anos de idade. Residia numa hospedaria com outras trinta moças (“Sempre em meio ao fedor de mulher. Como eu detesto mulher!”, dizia entre parênteses), e trabalhava, como ele havia imaginado, nas máquinas de criação de novelas do Departamento de Ficção. Ela gostava do trabalho, que consistia principalmente em fazer funcionar e manter em bom estado um poderoso e complexo motor elétrico. Ela era “não esperta”, mas apreciava trabalhar com as mãos, e ficava à vontade lidando com o maquinário. Sabia descrever todo o processo de composição de uma novela, desde a diretriz geral traçada pelo Comitê de Planejamento até os retoques finais realizados pelo Esquadrão de Reescrita. Mas não se interessava pelo produto final daquilo tudo. “Não tinha gosto pela leitura”, explicou. Para ela os livros eram simplesmente um produto que precisava ser fabricado, como compotas de geleia ou cadarços de sapato. Não se lembrava de nada que fosse anterior ao início dos anos 1960, e a única pessoa que conhecera que falava frequentemente dos dias anteriores à Revolução era um avô, que desapareceu do mapa quando Julia tinha oito anos. Na escola, ela tinha sido capitã do time de hóquei, e ganhou o troféu de ginástica por dois anos consecutivos. Também foi líder de tropa dos Espiões e secretária setorial da Liga da Juventude; isso antes de se filiar à Liga Juvenil Antissexo. Sempre demonstrou ser uma excelente cidadã. Até foi escolhida (um infalível sinal de boa reputação) para trabalhar na Pornosec, subseção do Departamento de Ficção que produzia pornografia barata para ser distribuída entre os proletas. Os que trabalhavam por lá davam o apelido de Casa da Sujeira para sua própria seção, ela explicou. Ficou lá por cerca de um ano, ajudando a produzir livros de bolso em pacotes lacrados, com títulos curiosos, como Histórias de espancamento e Uma noite num internato de moças, que eventualmente seriam comprados furtivamente por jovens proletas, convencidos de que adquiriam algo ilegal.

“Como são esses livros?”, perguntou Winston, curioso.

“Uma bela bosta. Na verdade são muito chatos. São apenas seis enredos, que são misturados e reaproveitados. Bem, é claro que eu só trabalhei nos caleidoscópios. Nunca fiz parte do Esquadrão de Reescrita. Não me dou bem com literatura, querido, não sirvo nem para isso.”

Winston ficou sabendo, estarrecido, que todos os trabalhadores da Pornosec, exceto o chefe da divisão inteira, eram moças. Supostamente os homens, cujos instintos sexuais eram menos controláveis que os das mulheres, corriam maior risco de serem corrompidos por toda aquela imundice com que elas lidavam.

“Eles não gostam de ter mulheres casadas trabalhando lá”, acrescentou Julia. “Todo mundo imagina que as garotas são tão puras... Bem, em todo caso aqui está uma que não é.”

Ela teve o seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos. O homem era um membro do Partido de sessenta anos, que mais tarde veio a se suicidar para evitar a prisão.

“E fez muito bem”, ela comentou. “Senão eles acabariam descobrindo meu nome na hora da sua confissão.”

Depois daquele caso tiveram muitos outros. Aos seus olhos, a vida era muito simples: você quer se divertir e “eles”, isto é, o Partido, fazem de tudo para evitar que você se divirta. Por isso você deve fazer de tudo para burlar as regras. Ela parecia achar muito natural que “eles” quisessem privar você dos prazeres, da mesma forma que era natural você querer evitar ser flagrado infligindo a lei. Julia odiava o Partido, e dizia isso com palavras cruas e grosseiras, mas não o criticava de uma forma global. Só se interessava pela doutrina do Partido quando ela se referia a sua vida particular. Winston também percebeu que ela nunca usava palavras em Novalíngua, com exceção daquelas que tinham chegado à linguagem corrente. Ela nunca tinha ouvido falar na Irmandade, e inclusive se recusava a acreditar na sua existência. Todo tipo de revolta organizada contra o Partido lhe parecia uma grande bobagem, fadada ao fracasso. A coisa mais inteligente a fazer era burlar as regras e dar um jeito de se manter vivo. Ele ficou

refletindo que deveria haver muitas outras garotas como ela na geração mais nova: jovens crescidos no mundo pós-Revolução, ignorantes de tudo o mais, aceitando o Partido como algo tão inalterável quanto o céu, não se rebelando contra sua autoridade, mas simplesmente fugindo dela, como um coelho foge de um cão. Eles sequer discutiram a hipótese de casamento. Era demasiadamente distante para merecer alguma consideração. Ademais seria impossível que algum comitê sancionasse um casamento daqueles, ainda que Winston pudesse se livrar de sua atual esposa, Katharine. Mesmo como um sonho de olhos abertos, aquele era um caso sem esperança.

“E como ela era, a sua esposa?”, indagou Julia.

“Era... Conhece aquela palavra em Novalíngua, BENEPENSANTE? No sentido dela ser naturalmente ortodoxa, incapaz de ter um mau pensamento?”

“Não, eu não conhecia essa palavra. Mas conheço muito bem esse tipo de gente.”

Assim, Winston começou a relatar a história de seu casamento, mas o curioso é que ela já parecia conhecer as partes essenciais. Descreveu para ele, quase como se o tivesse visto ou sentido na pele, o modo como o corpo de Katharine se enrijecia quando ele a tocava, aquele jeito dela de parecer que o estava evitando com todas as suas forças mesmo quando estavam enroscados um no outro. De fato ele não sentia nenhuma dificuldade em conversar com Julia sobre esse tipo de coisa: fazia tempo que Katharine havia deixado de ser uma lembrança dolorosa para tornar-se meramente uma lembrança desagradável.

“Eu até teria ado, não fosse por uma coisa”, disse ele. Contou do pequeno

ritual frígido no qual Katharine o obrigava a participar semanalmente, sempre na mesma noite. “Ela tinha horror daquilo, mas nada no mundo conseguia fazê-la mudar de ideia. Ela costumava chamar de... acho que você jamais imaginaria.”

“Nosso dever para com o Partido”, disse Julia no mesmo instante.

“Como sabia disso?”

“Também fui à escola, querido. Aulas de sexo uma vez por mês, para jovens acima dos dezesseis. E também estive no Movimento da Juventude. Eles enfiam isso na sua cabeça por anos a fio. ito que em muitos casos acaba funcionando. Mas nunca se pode saber com certeza; as pessoas são tão hipócritas...”

Julia começou a discorrer sobre o tema. Com ela, tudo girava em torno da sua própria sexualidade. Assim que esse assunto surgia em alguma conversa, ela sempre demonstrava ser muito bem informada sobre tudo que lhe dizia respeito. Ao contrário de Winston, ela compreendeu o sentido profundo do puritanismo sexual do Partido. Não se tratava somente da questão do instinto sexual criar um mundo próprio, fora do controle do Partido – um instinto que, por isso, deveria ser destruído caso possível. O mais importante era que a privação do sexo levava à histeria, o que era altamente desejável, pois poderia ser transformada em fervor de guerra, e veneração ao líder. Eis como Julia explicava a questão:

“Quando você faz amor, está gastando energia; depois disso, já está feliz o suficiente, e não dá bola para mais nada. E eles não gostam nada nada disso. Querem que você esteja quase estourando de energia o tempo todo. Toda essa história de marchar para cima e para baixo e ficar gritando e agitando bandeiras não a de sexo que azedou. Ora, se você já se sente feliz em seu interior, por que diabos se excitar com esse negócio de Grande Irmão, Planos Trienais, Dois

Minutos de Ódio, e todo resto dessa idiotice?”

Era tudo verdade, verdade verdadeira, pensou Winston. Havia uma ligação direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política. Como poderiam ser mantidos no tom certo o medo, o ódio e a credulidade imbecil que o Partido necessitava nos seus membros, a não ser pelo represamento de um poderoso instinto, que depois viria a ser usado como força motriz? O impulso sexual era perigoso para o Partido, e o Partido o usava em interesse próprio. O instinto de paternidade também foi capturado de forma semelhante, embora fosse impossível abolir a família – e, na verdade, as pessoas eram incentivadas a gostar dos filhos quase nos mesmos moldes do ado. As crianças, por sua vez, eram voltadas sistematicamente contra os pais, e aprendiam a espioná-los e a relatar seus desvios. De fato, a família havia se transformado numa extensão da Polícia do Pensamento. Era um meio pelo qual todos podiam estar cercados, noite e dia, de informantes que os conheciam na intimidade. De repente, os pensamentos de Winston se voltaram para Katharine. Sem dúvida ela o denunciaria à Polícia do Pensamento se acaso fosse suficientemente inteligente para conseguir perceber a heresia presente em suas opiniões. Mas o que na realidade o levou a se lembrar dela foi o calor sufocante da tarde, que já fazia o suor escorrer em sua testa. Começou a contar a Julia alguma coisa que tinha ocorrido, ou melhor, que não tinha ocorrido noutra tarde abafada de verão, onze anos antes. Havia somente três ou quatro meses que estavam casados. Em algum lugar de Kent, ambos tinham se perdido do grupo durante uma caminhada comunitária. Aconteceu porque retardaram o o. Não foi por mais de dois ou três minutos, mas acabaram tomando a direção errada e se vendo impedidos de prosseguir adiante quando chegaram à beira do paredão de uma antiga mina de giz. Era uma queda vertical de dez ou vinte metros, com rochas imensas ao fundo. Não havia ninguém a quem perguntar a direção certa. Assim que perceberam que estavam perdidos, Katharine começou a ficar nervosa. Ter se afastado do grupo principal, mesmo que somente por alguns minutos, lhe dava a impressão de estar agindo contra alguma regra. Queria correr de volta pelo caminho e procurá-los na outra direção. Naquele momento, entretanto, Winston percebeu alguns tufos de

salgueirinhas crescendo nas rachaduras da colina sobre a qual eles se encontravam. Um dos tufos era de duas cores – magenta e vermelho-tijolo –, aparentemente crescendo da mesma raiz. Winston nunca tinha visto algo como aquilo, e chamou Katharine para que ela viesse ver também:

“Olha, Katharine! Olha só essas flores. Aquela moitinha lá embaixo, perto do fundo. Está vendo que são duas cores diferentes?”

Ela já tinha se virado para voltar pelo mesmo caminho, mas veio espiar, um tanto tensa. Chegou até a se inclinar sobre o rochedo para ver onde ele apontava. Winston permaneceu parado, um pouco atrás dela, e a segurou pela cintura para dar-lhe mais segurança. Naquele momento, de repente lhe ocorreu que eles estavam completamente sós. Não havia nas imediações uma única criatura humana, nenhuma folha se mexia, nem sequer arinhos avam voando. Num lugar ermo como aquele, era muito pequeno o risco de haver algum microfone escondido; e, ainda que houvesse, ele só poderia captar sons. Era o momento mais quente e sonolento da tarde. O sol ardente os fustigava a pele, o suor escorria em seus rostos. Foi ali que a ideia lhe surgiu...

“Por que não deu um bom empurrão nela?”, disse Julia. “Eu daria.”

“Sim, querida, sei que teria feito isso. E eu também, se naquela época fosse a pessoa que sou hoje. Ou talvez eu... bem, não tenho certeza.”

“Você lamenta não tê-la empurrado?”

“Sim. No fim das contas eu lamento não ter seguido com a ideia.”

Estavam sentados, um ao lado do outro, sobre o piso empoeirado. Puxou-a mais para perto. Julia descansou a cabeça em seus ombros, e o perfume agradável dos seus cabelos venceu o fedor das fezes de pombo. Ela era muito jovem, ele pensou, ainda esperava alguma coisa da vida, não entendia que empurrar uma pessoa inconveniente precipício abaixo não resolveria coisa alguma.

“Na verdade não teria feito diferença”, ele confessou.

“Então por que você lamenta não tê-la empurrado?”

“Só porque prefiro fazer uma afirmação positiva a outra negativa. Nesse jogo que jogamos, não temos como vencer. Alguns fracassos são melhores que outros, e é tudo.”

Sentiu que ela deu de ombros, discordando dele. Sempre o contradizia quando ele dizia coisas do tipo. Ela não aceitava a derrota do indivíduo como lei inexorável da natureza. De certa maneira, até percebia que estava condenada, e que mais cedo ou mais tarde a Polícia do Pensamento a prenderia e mataria, mas com outra parte da mente acreditava ser possível construir um mundo secreto onde poderia viver como bem entendesse. Tudo o que necessitava era sorte, esperteza e audácia. Não podia compreender a inexistência de felicidade possível no presente, nem que a única vitória se encontrava num futuro distante, muito depois da morte, e que a partir do momento em que de declarava guerra ao Partido era melhor pensar em si mesma como um cadáver.

“Nós somos os mortos”, disse ele.

“Nós ainda não morremos”, disse Julia, despreocupadamente.

“Fisicamente, não. Seis meses, um ano... quiçá cinco anos. Bem, eu tenho medo da morte. Você ainda é jovem; de modo que presumo que tenha mais medo da morte do que eu. É claro que tentaremos evitá-la ao máximo. Mas isso não fará muita diferença. Enquanto os seres humanos permanecerem humanos, morte e vida serão a mesma coisa.”

“Que bobagem! Com quem você prefere ir para a cama: comigo ou com um esqueleto? Por acaso não gosta de estar vivo? Não gosta de sentir: esse sou eu, essa é a minha mão, minha perna; sou real, sólido, estou vivo! Não gosta DISSO?”

“Gosto sim”, itiu ele.

“Então para com essa história de morte. E agora ouça, querido, temos de combinar nosso próximo encontro. Que tal se voltássemos à clareira do bosque? Já se ou um bom tempo desde a última vez. Só que desta vez você precisa chegar lá por outro caminho. Eu já planejei tudo. Você tem de pegar o trem... bem, veja aqui, vou desenhar um mapa.”

E com seu jeito prático ela juntou um pouco de poeira, formando um pequeno quadrado. Em seguida, com um galinho retirado de um ninho de pombo, começou a esboçar um mapa no chão.

4.

Winston olhou em torno do quartinho surrado que ficava em cima da loja do sr. Charrington. Ao lado da janela, a cama enorme estava arrumada com cobertores esfarrapados e um travesseiro sem fronha. O relógio antigo, com mostrador de doze horas, tiquetaqueava sobre a borda da lareira. No canto, em cima da mesa de abas dobráveis, o peso de papel de vidro que ele tinha adquirido em sua última visita cintilava suave na semiescuridão. Na guarda do fogão havia um velho fogareiro a óleo, uma a e duas xícaras, tudo fornecido pelo sr. Charrington. Winston acendeu o fogo e pôs uma pouco de água para ferver. Ele tinha trazido consigo um envelope cheio de Café Vitória e algumas pastilhas de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam sete e vinte; e eram realmente dezenove e vinte. Ela chegaria às dezenove e trinta. Loucura, loucura, seu coração parecia repetir: loucura deliberada, gratuita e suicida. De todos os crimes que um membro do Partido podia cometer, aquele era o mais difícil de ocultar. A ideia a princípio lhe surgira na mente sob a forma de uma visão do peso de vidro refletido na superfície da mesa de abas dobráveis. Como havia previsto, o sr. Charrington não apresentou dificuldade alguma para alugar o quarto. Ficou bem satisfeito com o dinheirinho extra que haveria de ganhar. Tampouco se mostrou escandalizado ou desrespeitoso quando ficou claro que Winston pretendia usar o quarto para encontros amorosos. Em vez disso, seu olhar perdeu-se na meia distância e ele se pôs a falar de generalidades, com um ar tão delicado que dava a impressão de ter se tornado parcialmente invisível. A privacidade, disse, era mesmo uma coisa muito valiosa. Todo mundo desejava ter um local em que pudesse estar a sós de tempos em tempos. E quando alguém encontrava um local desses, não era senão um gesto de cordialidade que aqueles que soubessem da questão a guardassem para si mesmos. O antiquário acrescentou, parecendo quase se dissolver no ar, que a casa tinha duas entradas, sendo uma delas pelo quintal, que dava para um beco. Debaixo da janela tinha alguém cantando. Winston espiou lá fora, protegido pela cortina de musselina. O sol de junho ainda flutuava no alto do céu, e no pátio ensolarado uma mulher gigantesca, sólida como uma pilastra normanda, com braços fortes e vermelhos e avental de tecido pobre em volta da cintura, andava

pesadamente daqui para lá entre uma tina de lavar roupas e um varal, estendendo uma porção de panos quadrados que Winston percebeu serem fraldas de bebê. Sempre que não tinha a boca cheia de prendedores, cantava num contralto vigoroso:

Foi somente uma fantasia sem esperança. Ela ou como um dia de abril, Mas bastou um olhar e uma palavra, e os sonhos se agitaram! Ah! Eles roubaram meu coração gentil!

Fazia várias semanas que aquela canção estava na moda em Londres. Era uma das inúmeras canções, todas muito similares, compostas especialmente para os proletas por uma subseção do Departamento de Música. As letras eram elaboradas – sem nenhuma intervenção humana – por um instrumento conhecido como versificador. No entanto, o canto da mulher era tão cheio de sentimento que transformava aquela porcaria horrorosa num som quase agradável. Winston podia ouvir a mulher cantando, o ruído causado pelo atrito de seus sapatos na laje, os gritos das crianças na rua e, nalgum lugar bem distante, o ronco surdo do trânsito – e mesmo assim o quarto parecia curiosamente silencioso, uma vez que não havia ali nenhuma teletela. Loucura, loucura, loucura!, voltou a pensar. Era inconcebível que pudessem frequentar aquele lugar por mais do que algumas semanas sem que fossem descobertos. Mas a tentação de ter um esconderijo que fosse verdadeiramente deles, um quartinho de fácil o, foi mais forte. Durante algum tempo após a visita ao campanário da igreja, não tinham conseguido se encontrar. As horas de trabalho tinham sido aumentadas drasticamente, por conta dos preparativos para a Semana do Ódio. Ainda faltava mais de um mês, mas a enormidade e a complexidade do evento exigia de todo mundo cotas extras de trabalho. Mas, enfim, ambos haviam conseguido a mesma tarde livre. Tinham combinado de retornar à clareira do bosque. Na noite anterior, encontraram-se rapidamente pela rua. Como de costume, ao se aproximar de Julia em meio à multidão, Winston mal olhou para ela. Mas pela breve olhadela que lançou sobre ela, pareceu-lhe

que estava mais pálida que de costume.

“Não vai dar mais”, murmurou, assim que julgou seguro falar. “Quer dizer, amanhã não vai dar.”

“O que?”

“Amanhã à tarde, não vou poder ir.”

“Por que não?”

“Ah, o de sempre. Desta vez começou mais cedo.”

Por um momento, Winston ficou furioso. Naquele mês, desde que tinham começado a se relacionar, a natureza do desejo que sentia por ela havia se modificado. No início, quase não havia sensualidade. Na primeira vez, o sexo tinha sido apenas um ato automático. Mas após a segunda vez tudo mudou. O aroma dos seus cabelos, o gosto de sua boca e a maciez da sua pele pareciam então impregnar o ar em sua volta. Ela havia se tornado uma necessidade física, algo que ele não somente tinha desejo, como sentia ter direito a gozar. Assim, quando Julia disse que não poderia ir, teve a sensação de estar sendo lesado. Mas naquele momento a multidão os espremeu e, acidentalmente, suas mãos se encontraram. Ela apertou suavemente a ponta dos seus dedos, um toque que parecia ser um convite antes à afetuosidade do que ao desejo. Winston refletiu que, quando se vive com uma mulher, essa sensação de desapontamento deveria ser muitas vezes algo natural; de repente, ele foi tomado por uma ternura profunda, como nunca havia sentido até então. Desejou que eles

fossem um casal com dez anos de convívio em comum. Desejou ear com ela pelas ruas, como faziam naquele instante, só que abertamente, sem medo, falando sobre trivialidades e comprando coisinhas para a casa. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde pudesses ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer amor toda vez que se encontravam. Não foi precisamente naquele momento, mas no dia seguinte, que lhe surgiu a ideia de alugar o quarto do sr. Charrington. Quando sugeriu o plano a Julia, ela concordou com uma facilidade inesperada. Afinal, ambos sabiam ser loucura. Era como se estivessem dando, intencionalmente, um o rumo ao túmulo. Sentado na beira da cama, Winston voltou a pensar nas celas nos porões do Ministério do Amor. Era curioso como aquele horror predestinado se afastava da consciência da pessoa e depois voltava. Um horror localizado ali, nalgum ponto futuro, que antecedia a morte com a mesma certeza com que o 99 antecedia o 100. Um destino que não era possível evitar, muito embora talvez fosse possível atrasar; entretanto, em vez disso, a pessoa volta e meia decidia abreviá-lo através de um ato perfeitamente consciente e intencional. Naquele momento, os apressados soaram na escada. Julia irrompeu no quarto. Trazia uma sacola de ferramentas de lona marrom rústica, como a que por vezes ele a vira carregando de um lado para o outro no Ministério. Tentou abraçá-la, mas ela se desvencilhou dele com certa ansiedade, em parte porque ainda carregava a sacola nas mãos.

“Só um segundo”, disse. “Quero que veja o que tenho aqui comigo. Você trouxe aquela bosta de Café Vitória? Imaginei que sim. Pode jogar fora, não vamos mais precisar dele. Olha só isso aqui.”

Julia ajoelhou-se, abriu a sacola e retirou algumas chaves inglesas e uma chave de fenda que ocupavam a parte superior. Por debaixo havia vários pacotes de papel. O primeiro embrulho que entregou a Winston lhe pareceu, pelo tato, ter uma consistência estranha, porém vagamente familiar. Estava cheio de uma substância pesada; parecia ser areia, e cedia onde a pessoa o tocasse.

“Ora, isso não é açúcar?”, disse ele.

“Açúcar de verdade. Nada de sacarina, açúcar! E aqui temos um belo pão – pão mesmo, pão decente, não aquela coisa horrorosa que nos acostumamos a comer – e um vidro de geleia. E aqui uma lata de leite. Mas veja só isso! É disso que eu mais me orgulho. Tive de embrulhar num pano porque...”

Mas não era preciso explicar porque havia embrulhado. O aroma já preenchia todo o quarto: um cheiro forte e pronunciado, que parecia a Winston uma emanação direta dos primeiros anos de sua infância, mas que de vez em quando ainda podia jurar que sentia, atravessando um corredor antes de uma porta ser batida, ou se espalhando misteriosamente numa rua cheia de gente, algo que num instante era inalado, e no momento seguinte desvanecia como se nunca houvesse existido.

“É café”, ele murmurou, “café de verdade.”

“Sim! Café do Partido Interno. Aqui tem um quilo inteiro”, disse ela.

“Como arranjou tudo isso?”

“É tudo para o Partido Interno. Não há nada que aqueles porcos não tenham. Absolutamente nada. Mas naturalmente os garçons e as empregadas acabam ando a mão numa coisa ou outra e – veja só, também consegui um pacotinho de chá.”

Winston também se ajoelhou ao seu lado. Rasgou fora uma pontinha do pacote.

“É chá de verdade. Não são folhas de amora.”

“Tem aparecido muito chá ultimamente. Eles conquistaram a Índia, ou algo assim”, disse ela sem dar muita importância. “Mas escuta, querido: quero que fique de costas pra mim por uns três minutinhos. Vai sentar ali no outro canto da cama. Não vá ficar tão perto da janela. E não olha enquanto eu não mandar se virar.”

Winston ficou observando, distraído, através da cortina de musselina. Lá no pátio a mulher de braços vermelhos continuava a marchar de um lado para o outro, entre a tina e o varal. Tirou mais dois prendedores de roupa da boca e seguiu cantarolando, com profundo sentimento na voz:

Eles dizem que o tempo cura todas as coisas, Dizem que podemos sempre esquecer; Mas, ao longo dos anos, os sorrisos e lágrimas Seguem fazendo meu coração sofrer!

Ela sabia de cor todos os versos daquela canção melosa, ao que pareceu a Winston. A voz se elevava no ar doce do verão, extremamente afinada, transparecendo uma espécie de melancolia feliz. Dava a impressão de que ela ficaria perfeitamente contente se aquela noite de junho fosse infinda, e o seu estoque de roupas sujas inesgotável, para que pudesse ficar por ali uns mil anos, pendurando roupas no varal e cantarolando bobagens.

Winston achou curioso o fato de jamais ter ouvido um membro do Partido cantar sozinho, de maneira espontânea. Sem dúvida que seria uma atitude pouco ortodoxa, uma excentricidade perigosa, como falar consigo mesmo em voz alta. Mas talvez as pessoas só achassem um tema para cantar quando estavam perto de ar fome.

“Já pode se virar”, disse Julia.

Ele se virou e levou quase um segundo para reconhecê-la. Certamente imaginava que ela estaria nua. Mas não estava. A sua transformação fora muito mais surpreendente que isso. Julia havia se maquiado. Devia ter ido a uma loja dos bairros proletas e comprado um estojo completo de maquiagem. Seus lábios estavam bem vermelhos; suas bochechas, rosadas; seu nariz, retocado; havia até algo aplicado suavemente em torno dos olhos, fazendo com que ficassem mais brilhantes. Na verdade o trabalho não fora tão cuidadoso, mas os padrões de Winston nesse quesito tampouco eram tão elevados. Ele nunca tinha visto nem sequer imaginado uma mulher do Partido com o rosto devidamente maquiado. A melhora na aparência de Julia era digna de nota. Com algumas pinceladas de maquiagem nos lugares certos, ela tinha ficado não somente mais bonita como muito, muito mais feminina. Os cabelos curtos e o macacão masculino somente realçavam ainda mais o efeito. Quando a abraçou, uma onda de violetas sintéticas inundou suas narinas. Ele se lembrou da semiescuridão de uma cozinha de subsolo e da boca cavernosa de uma mulher. Era exatamente o mesmo perfume; mas naquele momento isso não tinha a menor importância.

“E perfumada!”

“Sim, querido, perfumada. E sabe o que vou trazer da próxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade nalgum canto e usá-lo no lugar dessas malditas calças. E meias de seda, e sapatos de salto alto! Nesse nosso quarto eu serei mulher, e não

uma camarada do Partido.”

Jogaram a roupa para o lado e subiram na imensa cama de mogno. Era a primeira vez que ele ficava completamente nu na presença dela. Até então tivera muita vergonha do corpo pálido e magro, das varizes saltadas nas batatas das pernas e da mancha de pele acima de um tornozelo. Não havia lençóis, no entanto o cobertor sobre o qual estavam deitados era surrado e liso, e as dimensões da cama, assim como sua elasticidade, deixaram ambos abismados.

“Deve estar cheia de percevejos, mas quem se importa?”, disse Julia.

Não havia mais cama de casal em lugar nenhum; só mesmo nas casas dos proletas. Winston se lembrava de ter dormido algumas vezes numa cama de casal durante a infância. Mas Julia, até onde podia rememorar, jamais havia se deitado em uma. Pouco tempo depois, adormeceram. Quando Winston acordou os ponteiros do relógio marcavam quase nove da noite. Não se mexeu do lugar, porque Julia estava dormindo com a cabeça apoiada em seu braço. A maior parte da maquiagem tinha se espalhado entre a cara dele e o travesseiro, porém uma mecha de ruge ainda restava, realçando a beleza do rosto dela. Um raio dourado do sol poente atravessava os pés da cama e iluminava a lareira, onde fervia uma a com água. No pátio lá fora, a mulher havia encerrado a cantoria, porém ainda se ouviam alguns gritos bem distantes de crianças brincando na rua. Winston permaneceu parado, refletindo se no ado algo como aquilo havia sido corriqueiro, comum. Julia despertou, esfregou os olhos e apoiou-se sobre o cotovelo, para poder olhar o fogareiro.

“Já evaporou metade dessa água”, disse ela. “Vou me levantar e logo faço um café para nós. Ainda temos uma hora. A que horas eles apagam as luzes no seu prédio?”

“Às onze e meia.”

“Na minha hospedaria é às onze. Mas a gente tem de chegar antes disso porque... Ei! Chispa daí, bicho nojento!”

Julia se curvou de repente na cama, pegou um sapato no chão e o atirou num dos cantos do quarto com um movimento brusco, vigoroso, como se fosse um menino; era o mesmo movimento que Winston a vira fazer ao atirar o dicionário em Goldstein, naquela manhã, durante os Dois Minutos de Ódio.

“Que foi isso?”, ele perguntou, surpreendido.

“Um rato. Eu vi quando ele pôs o focinho asqueroso para fora daquele buraco ali no rodapé. Está vendo? Ao menos dei um belo susto nele.”

“Ratos!”, murmurou Winston. “No nosso quarto!”

“Eles estão em todo canto”, disse Julia, sem dar maior importância para o assunto, e voltando a se deitar. “Já apareceram até na cozinha da pensão. Alguns bairros de Londres estão infestados. Sabia que eles atacam as crianças? Atacam mesmo. Há ruas em que as mães não se arriscam a deixar seus bebês sozinhos nem por dois minutos. São uns ratões grandões, marrons, os que atacam. E o pior é que eles sempre...”

“CHEGA!”, implorou Winston, cerrando os olhos com força.

“Querido! Nossa, você está branco que nem uma vela. Está se sentindo mal? Você tem nojo de ratos?”

“Um rato... É o pior dos horrores desse mundo!”

Ela se aproximou e se enroscou toda nele, como que querendo tranquilizá-lo através do calor de seu corpo. Winston não abriu os olhos de imediato. Por alguns momentos tivera a sensação de retornar a um pesadelo que se repetia em sua vida de forma cíclica. Era sempre mais ou menos a mesma coisa. Ele se via diante de uma muralha de escuridão, e do outro lado dela havia algo inável, algo horrível demais para ser encarado face a face. No sonho, seu sentimento mais profundo era sempre o do autoengano, porque lá no fundo ele sabia muito bem o que estava do outro lado da muralha. Se fizesse um esforço mortal, como o de arrancar um pedaço do próprio cérebro, poderia trazer aquele mistério até a luz. No entanto, sempre acordava sem descobrir o que era; mas tinha alguma espécie de relação com o que Julia dizia quando ele a interrompeu.

“Desculpa”, disse ele. “Não foi nada. É que eu não gosto de ratos, só isso.”

“Não se preocupe, querido, não vou deixar que esse bichões nojentos entrem aqui. Vou tampar o buraco com um pedaço de pano antes de irmos embora. E quando voltarmos trarei um pouco de argamassa para deixar tudo bem fechado.”

O momento escuro de pânico já estava quase esquecido. Sentindo-se um pouco envergonhado de si mesmo, ele sentou recostado na cabeceira da cama. Julia se levantou, vestiu seu macacão e fez o café. O cheiro que emergia da a era tão forte e estimulante que eles correram para fechar a janela, com medo de que alguém lá fora o sentisse e pudesse suspeitar de alguma coisa. Ainda melhor do

que o sabor do café era a textura sedosa que lhe conferia o açúcar, algo que Winston tinha praticamente se esquecido após anos e anos de sacarina. Com uma mão no bolso e uma fatia de pão com geleia na outra, Julia perambulou pelo quarto, olhando com certa indiferença para a estante de livros, analisando qual seria a melhor forma de consertar a mesa de abas dobráveis, deixando-se cair na poltrona surrada para ver se era confortável, observando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de deboche tolerante. Enfim, decidiu levar para a cama o peso de papel de vidro para poder observá-lo sob uma luz mais forte. Winston o tomou de suas mãos, fascinado como sempre pelo aspecto delicado do vidro, com as bolinhas internas que lembravam gostas de chuva.

“Você sabe para que diabos isso serve?”, perguntou Julia.

“Acho que não serve para nada. Aliás, é por isso que eu gosto dele. É um pedacinho da história que se esqueceram de alterar. É uma mensagem de um século atrás... bem, se alguém soubesse como ler.”

“E aquele quadro ali” – Julia indicou com a cabeça a gravura na parede oposta –, “será que também tem um século?”

“Deve ter mais. Eu diria que tem uns duzentos anos. Mas não dá para ter certeza. Hoje em dia é praticamente impossível descobrir a idade real das coisas.”

Julia foi espiar a gravura na parede mais de perto.

“Foi aqui que aquele bichão meteu o focinho para fora”, disse, dando um chute no rodapé bem abaixo do quadro. “Que prédio é esse? Já vi nalgum lugar.”

“É uma igreja, ou pelo menos foi uma igreja. Chamava-se São Clemente dos Dinamarqueses.” Logo o trecho da cantiga que o sr. Charrington havia lhe ensinado voltou à memória e ele acrescentou, um pouco nostálgico: “Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente!”

Para sua surpresa, Julia completou:

Você deve três vinténs pra mim, dizem os sinos da São Martim, Quando você vai me pagar?, os sinos de Old Bailey vão perguntar...

“Já não me lembro mais como ela continuava. Só sei que terminava assim: ‘Aí vem a luz da vela, vá para cama com ela. Aí vem um machado, cuidado para não perder a cabeça com um corte bem dado!’.”

Eram como as duas partes de uma contrassenha. Mas decerto havia algum outro verso após ‘os sinos de Old Bailey vão perguntar’... Talvez fosse possível desenterrá-lo da memória do sr. Charrington, se pudesse provocá-lo com o estímulo certo.

“Quem lhe ensinou essa canção?”, perguntou Winston.

“Meu avô. Ele costumava cantar ela para mim quando eu era pequenina. Foi vaporizado quando eu tinha oito anos... ou ao menos desapareceu. Eu queria saber o que é um limão”, acrescentou, como mera curiosidade. “Uma laranja eu já vi uma vez. É uma espécie de fruta redonda e amarela, de casca grossa.”

“Eu me lembro dos limões”, disse Winston. “Eram bem comuns nos anos 50. E tão azedos que só de cheirar já dava um amargor na boca.”

“Bem, aposto que está cheio de percevejos atrás desse quadro aqui”, disse Julia. “Um dia desses vou tirá-lo da parede e dar-lhe uma bela limpada. Acho que já deve estar na hora de irmos embora. Preciso tirar a maquiagem. Que droga! Depois eu limpo o batom do seu rosto.”

Winston ficou ali deitado mais alguns minutinhos. O quarto estava lentamente escurecendo. Voltou-se para a luz e ficou contemplando o peso de papel de vidro. A sua fonte inesgotável de interesse não era nem o fragmento de coral, mas o próprio interior do vidro. Ali dentro havia tanta profundidade, e no entanto o vidro era quase tão transparente quanto o ar em volta dele. Era como se a sua superfície fosse a abóboda celeste, contendo dentro de si todo um mundo em miniatura, completo, com sua própria atmosfera. Winston tinha a impressão de poder entrar ali dentro, e de já estar ali: ele, a cama de mogno, a mesinha de abas dobráveis, o relógio, a gravura em metal e o próprio peso de papel. O peso de vidro era o quarto em que estava, e o coral era a sua vida, e a de Julia, gravadas pela eternidade no coração daquele cristal.

5.

Syme havia sumido. Numa bela manhã, não apareceu no trabalho: alguns desavisados comentaram sua ausência. No dia seguinte ninguém mais falou dele. No terceiro dia, Winston foi ao vestíbulo do Departamento de Registro para dar uma olhada no quadro de avisos. Um dos avisos era uma lista impressa de membros do Comitê de Xadrez, do qual Syme fizera parte. Tinha quase exatamente o mesmo aspecto de antes – nada nele foi riscado ou rasurado –, mas faltava um nome. Era o que bastava. Syme havia deixado de existir; aliás, nunca havia existido. Fazia um calor infernal. No labiríntico Ministério, as salas sem janelas, com ar condicionado, tinham uma temperatura normal, mas nas ruas as calçadas assavam os pés dos transeuntes, e era um verdadeiro horror o mau cheiro do metrô no horário de pico. Os preparativos para a Semana do Ódio seguiam a pleno vapor, e os funcionários de todos os ministérios faziam hora extra. Desfiles, comícios, paradas militares, conferências, exposições de bonecos de cera, exibições de filmes, programas de teletela – era preciso deixar tudo bem organizado; era preciso montar estandes, ilustrar imagens, criar lemas, compor músicas, fazer circular certos boatos, forjar fotografias. Os colegas de trabalho de Julia, no Departamento de Ficção, tinham suspendido a produção de novelas e estavam redigindo uma série de panfletos sobre atrocidades. Além do seu serviço regular, Winston ava longas horas, todo santo dia, examinando exemplares antigos do Times, alterando e embelezando trechos de notícias que seriam posteriormente citadas nos discursos. Tarde da noite, quando bandos de proletas desorientados perambulavam pelas ruas, a cidade tinha um ar curiosamente febril. As bombas-foguetes estouravam com maior frequência e às vezes, à distância, bem ao longe, ouviam-se explosões fortíssimas que ninguém sabia explicar, e sobre as quais corriam boatos bem cabeludos. A nova melodia que seria a canção-tema da Semana do Ódio (ela era chamada de Canção do Ódio) já estava composta e era tocada incessantemente pelas teletelas. Tinha um ritmo selvagem, uma espécie de latido, que não podia ser classificado exatamente como música, e se assemelhava à batida de um tambor. Quando entoada por centenas de vozes, ao som de os em marcha, era

especialmente aterrorizante. Ela já tinha caído no gosto dos proletas, e na madrugada das ruas competia com “Foi somente uma fantasia sem esperança”. Os filhos dos Parsons tocavam a Canção do Ódio a qualquer hora do dia ou da noite, usando um pente e um rolo de papel higiênico – algo que agredia os ouvidos. As noites de Winston estavam mais ocupadas do que nunca. Grupos de voluntários, organizados por Parsons, preparavam a rua para as celebrações da Semana do Ódio: costuravam faixas, pintavam cartazes, erguiam mastros nos telhados e estendiam arames de um lado ao outro da rua para depois pendurarem bandeirolas. Parsons gabava-se de que só as Mansões Vitória, sozinhas, exibiriam quatrocentos metros de bandeiras. Ele estava em seu elemento natural, tal qual pinto no lixo. O calor e o trabalho manual lhe haviam oferecido, inclusive, o pretexto ideal para retomar o uso do short e da camisa aberta após o expediente. Estava em toda parte a todo momento, empurrando, puxando, serrando, martelando, improvisando, animando a todos com estímulos amistosos e exalando de cada dobra de seu corpo o que poderia ser definido como uma reserva inesgotável de um cheiro acre de suor. De repente, um novo cartaz surgiu nas ruas de Londres. Não tinha legenda alguma, e representava simplesmente a monstruosa figura de um soldado eurasiano, de uns três a quatro metros de altura, avançando com botas enormes, uma cara mongólica sem nenhuma expressão, e apontando uma metralhadora que apoiava no quadril. Onde quer que você se posicionasse em relação à ilustração, o cano da metralhadora, ampliado pela perspectiva, parecia estar sempre apontado para a sua direção. O cartaz foi colado em todos os espaços disponíveis, tornando-se até mesmo mais numeroso do que os retratos do Grande Irmão. Os proletas, normalmente apáticos em relação à guerra, estavam sendo incitados a entrar em um dos seus surtos periódicos de patriotismo. Como que para se harmonizar com o cenário geral, ultimamente as bombas-foguetes estavam matando mais do que o usual. Uma delas atingiu um cinema lotado em Stepney, sepultando várias centenas de vítimas sob os escombros. Toda a população das vizinhanças se reuniu para um cortejo fúnebre interminável, que levou várias horas e que na realidade estava mais para um ato de indignação. Outra bomba caiu sobre um terreno baldio que era usado como parque infantil, e dizimou dezenas de criancinhas. Houve outras demonstrações de ira, a imagem de Goldstein foi queimada, centenas de cópias do cartaz do soldado eurasiano foram arrancadas e jogadas nas fogueiras, e muitas lojas foram saqueadas ao

longo de todo o tumulto. Em seguida correu o boato de que os espiões estavam dirigindo as bombas-foguetes por controle remoto, e um casal de idosos suspeitos de terem origem estrangeira tiveram a sua casa incendiada e acabaram morrendo sufocados. No quarto em cima da loja do sr. Charrington, ao menos sempre que conseguiam chegar lá, Julia e Winston ficavam deitados lado a lado na cama sem lençóis, sob a janela aberta, nus por conta do calor. O rato não voltou mais, no entanto os percevejos haviam se multiplicado exponencialmente. Mas aquilo não parecia fazer a menor diferença para eles. Sujo ou limpo, aquele quarto era o seu paraíso. Assim que o adentravam, polvilhavam tudo com pó de pimenta comprado no mercado negro, arrancavam as roupas e faziam amor com os corpos suados, depois adormeciam e despertavam para constatar que os percevejos tinham se reagrupado e preparavam um novo contra-ataque. Durante o mês de junho eles chegaram a se encontrar quatro, cinco, seis... sete vezes. Winston tinha abandonado seu hábito de bebericar gim a todo momento. Parecia até não precisar mais dele. Havia engordado um pouco, e sua úlcera varicosa tinha melhorado, deixando tão somente uma mancha marrom na pele acima do tornozelo – até mesmo suas costumeiras crises matinais de tosse haviam cessado. O processo da vida agora havia deixado de ser algo intolerável, e ele não sentia mais ímpetos de fazer caretas para as teletelas nem de gritar insultos a plenos pulmões. Agora que eles tinham um esconderijo seguro, praticamente um lar, já não lhes parecia algo tão ruim o fato de só poderem se ver de vez em quando, e somente por algumas horas de cada vez. Tudo o que importava era que aquele quarto em cima do antiquário existia. Saber que ele estava lá, inviolado, era quase o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do ado, onde sobreviviam animais extintos. O próprio sr. Charrington, refletia Winston, era mais um animal extinto. Geralmente guardava uns minutinhos para poder conversar com ele antes de subir. O velho parecia sair bem raramente de casa, se é que saía de fato. Tampouco parecia ter algum tipo de clientela. Levava uma vida fantasmagórica entre a lojinha escura e uma cozinha ainda menor onde preparava suas refeições. Nela havia, dentre outras quinquilharias, um gramofone incrivelmente antigo, com uma trompa imensa. Ele parecia contente em poder conversar com alguém. Circulando entre as mercadorias sem valor, com seu nariz comprido, seus óculos grossos e seus ombros murchos envergando o paletó de veludo, ele sempre parecia mais com um colecionador do que com um comerciante. Com uma

espécie de entusiasmo desbotado pelo tempo, manipulava esta ou aquela velharia insignificante – uma rolha de porcelana, a tampa pintada de uma caixa de rapé quebrada, um medalhão sem valor contendo um tufo de cabelo de algum bebê falecido –, mesmo sem nunca demonstrar interesse genuíno de que Winston a comprasse, mas simplesmente de que a pudesse irar por um momento. Dialogar com ele era como ouvir os sons de uma caixa de música bem gasta. Dos recônditos da memória, ele tirava novos fragmentos de canções e rimas esquecidas. Havia uma sobre vinte e quatro gralhas, outra sobre uma vaca de chifre torto, outra sobre a morte do pobre pintarroxo. “Fiquei pensando que talvez pudesse lhe interessar”, dizia, com um riso um pouco constrangido, sempre que aparecia com um novo fragmento. Só que ele nunca conseguia se lembrar de mais do que alguns poucos versos de cada canção. Winston e Julia sabiam – de certa forma isso sempre esteve na mente deles – que o que estava se ando não teria como se manter por muito tempo. Em certas ocasiões a morte iminente lhes parecia algo tão palpável quanto a cama em que estavam deitados, e daí eles se agarravam com uma espécie de sensualidade desesperada, como uma alma condenada se agarra ao último tantinho de prazer quando faltam apenas alguns minutos para a hora da sua partida deste mundo. Mas também havia ocasiões em que eles tinham a perfeita ilusão não somente da sua segurança, como da permanência indefinida daquela situação. Eles tinham a impressão de que, enquanto estivessem dentro daquelas quatro paredes, nenhum mal poderia cair sobre eles. Chegar até lá era perigoso e difícil, mas o quarto era mesmo um santuário. Era como se Winston olhasse dentro do peso de papel, com a nítida impressão de ser perfeitamente possível penetrar naquele mundo de vidro; e que, uma vez lá dentro, o próprio tempo deixaria de ar. Com certa frequência ambos se entregavam a sonhos e fantasias de fugas da iminência do seu destino sombrio. Teriam sorte indefinidamente e poderiam levar aquele caso adiante, exatamente como era hoje, pelo restante da vida. Ou então Katharine morreria e, graças a manobras sutis, Winston e Julia conseguiriam se casar. Ou então se suicidariam juntos. Ou então desapareceriam, se disfarçariam para não ser reconhecidos, aprenderiam a falar com o sotaque dos proletas, arrumariam emprego numa fábrica e viveriam suas vidas numa vila qualquer, sem que ninguém do Partido jamais se desse conta. Eram ideias absurdas, eles bem sabiam. Na realidade não havia chance de fuga. Não tinham intenção nem mesmo de executar o seu único plano factível, o suicídio. Viver dia após dia, semana após semana, alargando um

presente que não tinha futuro, parecia um instinto irresistível, tal como nossos pulmões sempre irão aspirar o alento seguinte, enquanto houver ar. Às vezes eles também falavam de se dedicar à rebelião ativa contra o Partido, mesmo sem a menor noção de como dar o primeiro o. Ainda que a fantasia da Irmandade fosse real, restava a dificuldade de saber o que fazer para encontrá-la. Em dado momento Winston contou a Julia sobre a estranha intimidade que existia, ou parecia existir, entre ele e O’Brien, e o impulso que por vezes sentia, de simplesmente se apresentar a O’Brien, dizer que era um inimigo do Partido e pedir-lhe ajuda. O curioso era que isso não parecia a Julia nada de absurdamente audacioso ou imbecil. Afinal, ela mesma estava acostumada a julgar as pessoas pela fisionomia, e portanto lhe parecia algo natural que Winston acreditasse e confiasse em O’Brien somente por conta de uma troca de olhares. Além disso, ela partia do princípio de que todo mundo, ou praticamente todo mundo, odiava secretamente o Partido e não hesitaria em burlar suas leis se julgasse que era inteiramente seguro fazê-lo. Mesmo assim, ela se recusava a crer que existia, ou poderia existir, uma oposição ampla e organizada ao Partido. Todas aquelas histórias sobre Goldstein e seu exército clandestino eram, segundo ela, basicamente um monte de bobagem – coisa que o próprio Partido tinha inventado por suas próprias razões, e que você tinha de fingir que acreditava. Incontáveis vezes, em comícios do Partido e manifestações espontâneas, ela pediu aos berros a execução de pessoas cujos nomes nunca tinha ouvido antes, e cujos supostos crimes ela não ava nem perto de acreditar que fossem mesmo reais. Sempre que havia julgamentos públicos ela ocupava seu lugar em meio aos destacamentos da Liga da Juventude que rondavam os tribunais desde a manhã até a noitinha, bradando de tempos em tempos “Morte aos traidores!”. Durante os Dois Minutos de Ódio ela sempre superava os demais nos insultos a Goldstein. No entanto tinha uma ideia bem vaga acerca de quem era Goldstein de fato, e das doutrinas que ele propagava. Afinal, ela havia crescido depois da Revolução, e era jovem demais para se lembrar das batalhas ideológicas dos anos 1950 e 60. Algo como um “movimento político independente” era para ela inimaginável; e, seja como for, o Partido era invencível. Sempre existiria, sempre seria o mesmo. A única forma de rebelar-se contra ele era através da desobediência secreta ou, na melhor das hipóteses, praticando atos isolados de violência, como por exemplo assassinatos e atentados a bomba. De certo modo ela era bem mais alerta do que Winston, e muito menos

suscetível à propaganda do Partido. Uma vez, quando ele mencionou a guerra contra a Eurásia no meio de uma conversa qualquer, ela o surpreendeu ao afirmar, com toda naturalidade, que em sua opinião aquela guerra sequer estaria acontecendo. As bombas-foguetes que eram despejadas diariamente sobre Londres provavelmente estariam sendo disparadas pelo próprio governo da Oceania, “só para aterrorizar o povo”. Aquela era uma ideia que jamais havia ado pela mente de Winston. Ela também provocou nele uma espécie de inveja ao dizer que durante os Dois Minutos de Ódio a sua maior dificuldade era controlar as risadas. Porém, só colocava em dúvida os ensinamentos do Partido quando eles interferiam de alguma forma em sua própria vida. No mais, estava disposta a aceitar a mitologia oficial, simplesmente porque a diferença entre a verdade e a mentira não lhe parecia tão importante. Julia acreditava, para dar um exemplo que lhe foi ensinado na escola, que o Partido tinha inventado o avião. (Nos seus próprios tempos de escola, no final dos anos 1950, Winston recordava que o Partido havia reivindicado somente a invenção do helicóptero; dez anos depois, na época em que ela estava na escola, já reivindicavam igualmente a invenção do avião; mais uma geração e estariam ensinando nas salas de aula que também inventaram a máquina a vapor.) E quando ele disse a Julia que os aviões já existiam muitos anos antes do seu nascimento, portanto bem antes da Revolução, ela acabou achando o fato altamente desinteressante. Afinal, qual o interesse em saber quem tinha inventado o avião? Para Winston foi um choque até maior descobrir, por meio de um comentário ageiro, que ela não se lembrava de que quatro anos atrás a Oceania esteve em guerra com a Lestásia, e em paz com a Eurásia. Era bem verdade que ela considerava toda aquela história de guerra uma grande farsa; mas aparentemente sequer chegou a se dar conta de que o nome do inimigo tinha mudado. “Pensei que sempre havíamos estado em guerra com a Eurásia”, explicou, sem maiores inquietações. Ele se assustou um pouco com aquilo. Quanto à invenção do avião, ela foi de fato muito anterior ao nascimento dela, mas a troca de inimigos na guerra tinha ocorrido há somente quatro anos, um bom tempo depois de ela já ter se tornado adulta. Os dois discutiram tal questão por, quem sabe, uns quinze minutos. No fim ele conseguiu obrigar a memória dela a recuar até que pudesse relembrar vagamente de que houvera um tempo em que o inimigo era a Lestásia, e não a Eurásia. Mas ela continuava achando aquela questão altamente desinteressante.

“E daí?”, indagou, sem paciência. “É sempre uma bosta de guerra após a outra, e a gente sabe que tudo que a no noticiário é mentira.”

Às vezes ele lhe falava do Departamento de Registro e das falsificações descaradas que executava em seu trabalho. Mas essas coisas não pareciam horrorizá-la. Ela não sentia como se um abismo estivesse se abrindo aos seus pés ao pensar nas mentiras que se transformavam em verdades. Ele também lhe contou a história de Jones, Aaronson e Rutherford, e daquele pedacinho de papel que um dia veio parar em suas mãos. Mas não foi nada que a deixasse abalada. De início, para falar a verdade, ela nem entendeu muito bem do que ele estava falando.

“Eles eram seus amigos?”, perguntou.

“Não, nunca os encontrei pessoalmente. Eram membros do Partido Interno. Além disso, eram bem mais velhos do que eu. Eram dos velhos tempos, de antes da Revolução. Eu só os conhecia de vista mesmo.”

“Então por que diabos essa preocupação toda? As pessoas não são mortas o tempo todo?”

Ele tentou fazê-la entender a importância da coisa:

“Mas aquele foi um caso excepcional. Não foi somente um assassinato. Você percebe que o ado, a partir de ontem, foi abolido? Se sobrevive em algum lugar, é em um ou outro objeto sólido, sem palavras gravadas, como aquele

pedaço de vidro ali. Nós já não sabemos praticamente mais nada sobre a Revolução e os anos anteriores à Revolução. Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro retocado, toda estátua, rua e edifício rebatizado, toda data histórica alterada. E tal processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe, que não um presente sem fim onde o Partido é sempre o dono da razão. Eu sei, é claro, que o ado é falsificado, mas eu jamais seria capaz de provar, mesmo tendo sido eu mesmo o autor da falsificação. Uma vez executado o serviço, não restam provas. A única prova está em minha própria mente, e sequer tenho certeza se outros seres humanos partilham das minhas recordações. Foi tão somente naquele caso, em toda a minha vida, que tive em minhas mãos uma prova real, concreta, depois de um fato ocorrido – anos depois dele, aliás.”

“E de que adiantou?”

“De nada adiantou, porque joguei a prova fora minutos depois. Mas se a mesma coisa acontecesse hoje, eu a guardaria comigo.”

“Bem, eu não faria isso!”, disse Julia. “Não me importo em correr riscos, mas tem de ser por algo que valha a pena, não por recortes de jornal velho. O que você poderia fazer com a tal prova, se a tivesse guardado?”

“Talvez pouca coisa. Mesmo assim era uma prova. Poderia ter ajudado a semear algumas dúvidas, aqui e ali, caso eu me arriscasse a mostrá-la a alguém. Realmente não creio que possamos mudar alguma coisa em nosso tempo de vida, mas dá para sonhar com pequenos grupos de resistência brotando aqui e ali – pequenos grupos de gente que vai se unindo, e que vão aumentando com o tempo, quiçá deixando alguns registros bem conservados, para que a geração seguinte possa continuar a rebelião de onde paramos.”

“Não estou interessada na próxima geração, querido. Estou interessada em NÓS.”

“Ora, isso porque você só é rebelde da cintura para baixo”, disse ele.

Ela achou sua frase de uma ironia brilhante, e envolveu-o em seus braços, deliciada com sua inteligência. De fato Julia não nutria o menor interesse pelas diversas ramificações da doutrina do Partido. Sempre que ele começava a falar dos princípios do Ingsoc, do duplipensar, da mutabilidade do ado e da negação da realidade objetiva, e a se valer de palavras em Novalíngua, ela se entediava rapidamente, ficava confusa e dizia que nunca tinha prestado atenção naquele tipo de coisa. Sabia muito bem que tudo aquilo não ava de uma grande baboseira, então por que diabos ela tinha de se preocupar com tais assuntos? Ela sabia quanto aplaudir e quando vaiar, e isso era tudo o que precisava saber. Quando ele insistia muito com esses assuntos, Julia tinha o hábito desconcertante de cair no sono. Era uma dessas pessoas que têm o poder de adormecer a qualquer momento e em qualquer posição. Dialogando com ela, ele se deu conta de como era fácil exibir um ar de ortodoxia sem fazer a menor ideia do que fosse “ortodoxia”. De certa forma, a visão de mundo do Partido era adotada com maior convicção pelas pessoas que eram incapazes de compreendê-la. Elas aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque nunca percebiam por completo a enormidade do que se solicitava delas, e não estavam suficientemente interessadas nos acontecimentos públicos para entenderem tudo o que se ava. Graças a sua falta de compreensão, graças a sua ignorância do plano geral, elas conseguiam preservar a sua saúde mental. Elas simplesmente engoliam tudo, e o que engoliam não lhes causava mal, porque não deixava resíduo algum, exatamente como um grão de milho que atravessa todo o corpo de uma ave sem ser digerido.

6.

Finalmente aconteceu. A mensagem tão aguardada havia chegado. Pareceu-lhe que ele havia aguardado a vida inteira por aquilo. Caminhava pelo longo corredor do Ministério e estava quase no local onde Julia lhe ou o bilhete quando, subitamente, se deu conta que alguém com o porte mais encorpado que o seu também caminhava às suas costas. A pessoa, fossem quem fosse, tossiu um pouco, no que parecia ser um sinal de que pretendia lhe falar alguma coisa. Winston se deteve e virou. Era O’Brien. Enfim se encontravam, face a face. A Winston, entretanto, pareceu-lhe que o seu único impulso era o de fugir dali. Sentia o coração dar saltos. Naquele momento, não seria capaz de dizer uma só palavra, porém O’Brien seguiu em frente na mesma direção em que eles já se dirigiam, apenas colocando, por um instante, uma mão amigável no braço de Winston, de modo que agora ambos caminhavam lado a lado. Então, ele começou a falar com a cortesia solene que lhe era tão peculiar, e que o diferenciava da maioria dos membros do Partido Interno:

“Estava esperando uma oportunidade para falar contigo”, disse O’Brien. “Dia desses eu li no Times um dos seus artigos sobre a Novalíngua. Você tem um interesse um tanto erudito pelo novo idioma, estou certo?”

Winston havia recuperado parcialmente o seu autocontrole.

“Bem, acho que estou longe de ser um erudito”, respondeu. “Sou apenas um amador. Não é o meu forte. Nunca tive nenhuma participação na elaboração do idioma.”

“Mas você escreve nele com muita elegância”, insistiu O’Brien. “E olha que não sou o único a achar isso. Recentemente tive uma conversa com um amigo seu que é claramente um perito no assunto. Agora me foge à memória o nome dele.”

O coração de Winston voltou a saltar, doloridamente. Era inconcebível que aquelas palavras não fossem uma referência a Syme. No entanto Syme não estava apenas morto, como tinha sido abolido, era uma impessoa. Fazer qualquer referência que o identificasse de alguma forma era mortalmente perigoso. Assim, aquela observação de O’Brien deveria, era evidente, ser tomada com uma espécie de sinal, de código. Partilhando de um pequeno pensamento-crime, os dois tornavam-se cúmplices. Eles tinham prosseguido pelo corredor, mas de repente O’Brien parou. Com a singular e desarmante cordialidade que sempre conseguia conferir ao gesto, ajeitou os óculos no nariz. Depois continuou:

“O que eu realmente pretendia lhe dizer é que notei que você usou em seu artigo duas palavras que se tornaram obsoletas. Se bem que faz muito pouco tempo que elas foram descartadas. Já viu a décima edição do Dicionário de Novalíngua?”

“Não”, respondeu Winston. “Não sabia que já tinha saído. No Departamento de Registro ainda estamos usando a nona edição.”

“Creio que a décima edição só será publicada daqui a alguns meses. Mas foram liberados alguns exemplares especiais, como amostra. Bem, eu recebi um deles, por acaso gostaria de dar uma lida?”

“Claro que sim”, disse Winston, notando de imediato aonde aquilo iria levar.

“Bem, algumas das novas mudanças são bastante engenhosas. A diminuição do

número de verbos – acho que esse é o aspecto que você vai considerar mais interessante. Mas como podemos fazer – que tal se eu mandar um mensageiro com o dicionário para você? O problema é que eu sempre acabo me esquecendo dessas coisas. E se você asse no meu apartamento dia desses? Espere um minutinho, vou lhe ar meu endereço.”

Ambos estavam parados em frente a uma teletela. Um tanto distraído, O’Brien apalpou dois de seus bolsos e sacou uma caderneta de couro e um lápis-tinta dourado. Bem debaixo da teletela, depois de posicionar-se de modo a que todo aquele que estivesse observando a cena na outra ponta do sistema pudesse ler o que ele escrevia, O’Brien rabiscou um endereço, arrancou a página e entregou-a a Winston.

“Geralmente estou em casa à noite”, disse ele. “Se por acaso não estiver, minha empregada vai lhe entregar o dicionário.”

E foi embora, deixando Winston com a folha na mão. Apesar de não haver nenhuma necessidade de ocultá-lo desta vez, Winston tratou de memorizar cuidadosamente o conteúdo escrito, e algumas horas depois atirou o papel no buraco da memória, junto com um maço de outros papéis. Tinham conversado somente por alguns minutos. O episódio só podia ter um significado: fora arquitetado como um meio de dar a Winston o endereço de O’Brien. Isto era necessário porque, exceto pela pergunta direta, nunca era possível descobrir onde uma pessoa morava. Não havia nenhum tipo de lista de endereços em parte alguma. “Se quer me ver, pode me encontrar aqui”, era este o sentido da mensagem de O’Brien. Talvez até houvesse um recado oculto no dicionário a ser entregue. Seja como for, uma coisa era certa: a conspiração com que Winston sonhara existia de fato, e ele tinha acabado de se aproximar dos seus limites externos. Winston sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria obedecendo ao chamado de O’Brien. Talvez já amanhã, talvez após uma longa espera – quanto a isso não tinha certeza. O que estava ocorrendo era tão somente o desdobramento de um

processo iniciado há muitos anos. O primeiro o tinha sido um pensamento secreto, involuntário; o segundo foi ter iniciado o seu diário. Ele havia ado das ideias às palavras, e agora aria, quem sabe, das palavras aos atos. O último o era algo destinado a se suceder no Ministério do Amor. Ela havia aceitado tal fato: o fim estava contido no começo. Mesmo assim era algo assustador; ou, mais exatamente, era um prenúncio da morte, era como já estar um pouco menos vivo. Quando conversava com O’Brien e as palavras começaram a lhe fazer sentido, uma sucessão de arrepios atravessou seu corpo. Ele teve a sensação de estar pisando na terra úmida de um túmulo, e o fato de sempre ter pressentido que o túmulo estava lá à sua espera não era lá um grande consolo.

7.

Winston acordou com os olhos cheios de lágrimas. Sonolenta, Julia rolou para o seu lado, murmurando algo que poderia ser “Qual o problema?”. “Sonhei...”, ele começou a dizer, mas logo em seguida se calou. Era complexo demais para ser traduzido em palavras. Havia o sonho em si e havia igualmente, conectada a ele, uma lembrança consciente, que aflorou em sua mente alguns segundos depois de ele ter despertado. Sem abrir os olhos, Winston permaneceu deitado, ainda afetado pela atmosfera do sonho. Era um sonho vasto e luminoso, no qual toda a sua vida parecia estender-se diante dele como uma paisagem depois da chuva numa tardinha de verão. Tudo havia ocorrido dentro do peso de papel, mas a superfície do vidro era a própria abóboda celeste, e dentro dela tudo estava inundado de luz clara e suave, através da qual era possível enxergar distâncias intermináveis no horizonte. O sonho também estava embutido num gesto com o braço que foi feito por sua mãe – na realidade, de certa forma o sonho era precisamente aquele gesto –, e repetido trinta anos depois pela mulher judia que ele tinha visto no noticiário tentando proteger o filhinho contra as balas, antes que os helicópteros os atingissem e exterminassem.

“Você sabe”, disse ele, “que até esse momento eu acreditava ter assassinado minha mãe?”

“Por que você a matou?”, perguntou Julia, ainda tentando despertar.

“Não, eu não a matei. Não fisicamente.”

No sonho ele havia se recordado da última visão que teve de sua mãe, e instantes depois de ter acordado o amontoado de pequenos eventos que compunham a coisa toda lhe voltaram à mente. Era uma lembrança que ele devia ter excluído deliberadamente da própria consciência por muitos anos. Não tinha certeza da data, mas não poderia ter menos de dez, doze anos, quando a coisa toda aconteceu. O pai já havia sumido há algum tempo, mas não podia precisar o quanto. Ele se lembrava com mais precisão das circunstâncias sofridas e tumultuadas daquela época: os pânicos periódicos com os ataques aéreos, a corrida para se abrigarem nas estações de metrô, as pilhas de escombros por toda parte, os decretos incompreensíveis afixados nas esquinas, as gangues juvenis, todos usando camisas da mesma cor, as filas intermináveis em frente às padarias, as rajadas intermitentes de metralhadora à distância – e, acima de tudo, o fato de nunca terem o suficiente para comer. Ele se lembrava de ar longas tardes com outros meninos vasculhando latas de lixo e montes de detrito, recolhendo talos de repolho, cascas de batata, por vezes até mesmo nacos de pão azedo, dos quais eles retiravam cuidadosamente as cinzas. E ele também de lembrava de esperar pela agem dos caminhões que viajavam por determinada estrada e, conforme era sabido, transportavam ração para gado: quando eles avam sacolejando pelos trechos esburacados da estrada, por vezes deixavam cair alguns bocados de bolo de linhaça. Quando seu pai desapareceu, sua mãe não demonstrou nenhuma surpresa, nem mesmo alguma mágoa mais violenta, porém ela foi acometida por uma mudança repentina. Parecia ter perdido a vivacidade. Era muito claro, até mesmo para Winston, que ela estava à espera de alguma coisa que sabia que estava na iminência de acontecer. Fazia tudo o que era necessário – cozinhava, lavava, remendava roupas, arrumava a cama, varria e espanava – sempre muito lentamente, com uma curiosa economia de gestos desnecessários, como o manequim de um pintor que se movimentasse por conta própria. O seu corpo grande e harmonioso pareceu recolher-se naturalmente à inação. ava horas a fio sentada quase que imóvel na cama, embalando a irmã caçula de Winston, uma criança pequenina, quase sempre doente, muito silenciosa, de uns dois ou três anos, a quem a magreza conferiu feições esqueléticas. Bem raramente, tomava Winston nos braços e o apertava contra o peito durante um longo tempo, sem jamais dizer nada. E ele percebia, apesar de sua pouca idade e de seu egoísmo, que sua atitude se relacionava de alguma forma àquela coisa nunca mencionada que estava prestes a ocorrer.

Ele se lembrava do quarto onde eles moravam, um aposento escuro, abafado, que uma cama coberta por uma colcha branca ocupava quase por inteiro. Na guarda da lareira havia um fogareiro a gás e uma prateleira onde ficavam os mantimentos, e fora do quarto havia uma pia de louça marrom, que era comum a várias outras famílias que ocupavam outros quartos. Ele se lembrava do corpo majestoso da mãe inclinado sobre o fogareiro enquanto ela mexia alguma coisa numa a. Acima de tudo, ele se lembrava da sensação de fome contínua, e das brigas sórdidas e ferozes que ocorriam na hora das refeições. Ele não cansava de perguntar a sua mãe, irritantemente, por que não havia mais comida; chegava até a gritar e se enfurecer com ela (lembrava até mesmo dos tons de sua voz, que estava começando a mudar prematuramente e às vezes explodia de um modo peculiar). Por vezes decidia tentar abordá-la num tom patético e choroso, para ver se ela lhe dava mais do que a sua cota de comida. E ela estava mesmo disposta a dar-lhe mais do que a cota, sempre que possível. Considerava natural que ele, “o menino”, recebesse a maior porção; ainda assim, quanto mais ela lhe dava, mais ele queria. A cada refeição ela insistia que ele não fosse egoísta, que se lembrasse de que a sua irmãzinha estava adoentada e também precisava ser alimentada, mas era inútil. Ele chorava de raiva quando ela parava de pôr comida em seu prato, tentava arrancar a a e o colherão das mãos dela, e ainda surrupiava parte do que estava no prato da irmã. Sabia que acabava fazendo as duas ar fome, mas não conseguia se comportar de outra forma; achava, inclusive, que tinha o direito de proceder assim. A fome desesperadora que sentia parecia justificar seus atos. Entre as refeições, se a mãe não ficasse de olho, ele constantemente roubava mais comida do escasso estoque de alimentos da prateleira. Um dia distribuíram uma ração de chocolate. Havia semanas, quiçá meses, que não se via chocolate. Winston se lembrava com muita clareza daquele precioso pedacinho de chocolate. Era uma barra de duas onças para os três (naquele tempo ainda se falava em onças) [Nota do Tradutor: uma onça, ou oz, é uma medida de volume comum na Inglaterra e outros países anglo-saxões]. Obviamente, ela deveria ser dividida em três partes iguais. Mas de repente, como se ouvisse outra pessoa, ele se pegou exigindo, com a voz grossa e forte, que lhe dessem a barra inteira. A mãe lhe respondeu que não fosse tão guloso. Seguiu-se uma longa e incômoda discussão, que se alongou por horas, com gritos, gemidos, lágrimas, queixas e acordos. A irmãzinha, agarrada à mãe com as duas

mãos, exatamente como um filhote de macaco, olhava para ele por cima do ombro dela com os olhos grandes e tristes. No fim a mãe separou três quartos do chocolate e deu a Winston, sendo que o resto ficou para à filha. A pequenina agarrou a sua parte e ficou encarando o chocolate sem expressão, talvez por sequer saber o que seria aquilo. Winston a observou por um momento. Depois, com um bote rápido, repentino, arrancou o pedaço de chocolate da mão da irmã e correu para a porta.

“Winston, Winston!”, gritou a mãe. “Volta aqui! Devolva o chocolate da sua irmã!”

Ele chegou a parar, mas não voltou. Os olhos ansiosos de sua mãe o encaravam fixamente. Naquele momento ela estava pensando na coisa que ele não sabia qual era, mas que estava prestes a acontecer. A pequenina, consciente de ter sido roubada, começara a soltar um fiozinho de choro. A mulher a envolveu com os braços e apertou o rostinho da filha contra o peito. Naquele gesto havia qualquer coisa que revelou a Winston: sua irmã estava morrendo. Deu meia-volta e ziniu escada abaixo; em sua mão, o chocolate já começava a derreter. Ele nunca mais viu sua mãe outra vez. Após devorar o chocolate, sentiu muita vergonha de si mesmo e ficou perambulando na rua por várias horas, até que a fome o trouxe de volta para casa. Mas quando chegou lá, a mãe havia desaparecido. Naquele tempo, isso já estava se tornando normal. Nada tinha sido levado do quarto, exceto sua mãe e sua irmãzinha. Não faltava nada, nem mesmo o agasalho da mãe. Até hoje Winston não tinha certeza se a mãe estava morta ou não. Era perfeitamente possível que somente a tivessem enviado para um campo de trabalhos forçados. Quanto à irmã, talvez tivesse sido encaminhada, como o próprio Winston, para uma das colônias de crianças sem lar (Centros de Coleta, era como elas eram chamadas) surgidas como resultado da guerra civil; quiçá ela tivesse sido mandada para o campo de trabalhos junto com a mãe, ou simplesmente deixada em algum lugar para morrer. O sonho ainda estava vívido em sua mente, especialmente o gesto protetor do braço no qual parecia estar contido todo o seu significado. Então sua mente retornou a outro sonho, de dois meses antes. Na posição exata em que sua mãe

um dia sentou-se sobre a cama gasta com sua colcha branca, abraçando a filha que se agarrava a ela, no outro sonho a mãe surgia sentada no interior de um navio que ia naufragando no mar; ela estava muito abaixo de onde ele estava, e afundava cada vez mais, mas insistia em encará-lo fixamente lá debaixo, mesmo através da água que ia ficando turva. Contou a Julia a história do desaparecimento da mãe. Sem abrir os olhos, ela rolou pela cama e se colocou numa posição um pouco mais confortável.

“Estou vendo que você era o capeta em forma de guri”, disse, sem dar importância ao resto. “Todas as crianças são encapetadas.”

“Sim. Mas o que realmente importava na história...”

Pela sua respiração, dava para perceber que Julia ia voltar a adormecer num instante. Ele gostaria de ter continuado a falar sobre a mãe. Não podia supor, pelo que ainda se lembrava dela, que tivesse sido uma mulher fora do comum, e muito menos inteligente; contudo era dona de uma espécie de nobreza, de pureza, simplesmente pelo fato de ter seus próprios padrões de comportamento, que não seguiam os da maioria. Seus sentimentos eram dela mesma, e não pareciam se alterar pelas circunstâncias externas. Jamais ocorreria a sua mãe que, por ser ineficaz, um ato pudesse perder o seu sentido. Quando você ama alguém, simplesmente ama, e ainda que não tenha nada mais a oferecer, continua ofertando o próprio amor. Como não havia mais chocolate, a mãe abraçou a filha com força. Tal abraço não alterava coisa alguma, não fazia aparecer mais chocolate do ar, não poderia evitar a morte da pequenina, nem a dela mesma; mas, para a mãe, era natural agir assim – abraçar a quem ama, com amor. A refugiada do navio também tinha envolvido o menininho em seus braços, o que não era mais defesa contra as balas do que uma folha de papel. O que o Partido fazia de terrível era persuadir os seus membros de que meros impulsos, meras sensações, não tinham importância alguma; assim também os desconectava de toda e qualquer influência sobre o mundo material. Uma vez sob o jugo do Partido, o que a pessoa sentisse ou não, o que fizesse ou deixasse

de fazer, já não fazia nenhuma diferença. Acontecesse o que acontecesse, o indivíduo sumia, e ninguém nunca mais ouvia falar dele nem de seus atos em vida. Ele era banido do curso da história. E no entanto, aos cidadãos de apenas duas gerações atrás, nada disso teria parecido ser algo de tamanha importância, uma vez que ninguém tinha o poder de reescrever a história. Eram pessoas regidas por lealdades particulares, que não chegavam a ser questionadas. O que realmente importava eram as relações individuais, e um gesto completamente irrelevante – um abraço, uma lágrima, uma palavra dita a alguém perto da morte – podia ter o seu próprio valor. Assim, de repente, lhe ocorreu que os proletas haviam permanecido nesse estado. Não eram leais a um partido, país ou ideologia, eram leais aos seus semelhantes. Pela primeira vez em sua vida, Winston não desprezou os proletas, nem os imaginou somente como uma força inerte que um dia despertaria para a vida e regeneraria o mundo. Os proletas tinham continuado a ser humanos. Não tinham se petrificado por dentro. Eles tinham conservado as emoções primitivas que ele mesmo fora obrigado a reaprender por meio de um esforço consciente. E ao pensar em tais coisas lembrou-se de algo sem ligação aparente com elas: da forma com a qual, algumas semanas antes, ele chutou para longe uma mão decepada caída na calçada, como se ela fosse um talo de repolho.

“Os proletas são seres humanos”, disse em voz alta. “Nós não somos humanos.”

“Por que não?”, perguntou Julia, que agora já tinha acordado.

Ele pensou por um momento e disse:

“Já lhe ocorreu que o melhor que temos a fazer é simplesmente ir embora daqui antes que seja tarde demais, e nunca mais nos encontrarmos de novo?”

“Sim, meu querido, isso já me ocorreu muitas vezes. Só que mesmo assim não farei isso, e pronto.”

“A gente tem tido sorte”, disse ele, “mas é impossível que ela dure muito mais tempo. Você é jovem. Parece alguém normal e inocente. Caso fique afastada de gente como eu, é capaz de conseguir viver por mais uns cinquenta anos.”

“Não. Eu já pensei nisso tudo. Tudo o que você fizer, eu farei junto. E não precisa ficar tão pessimista. Sou muito boa nesse lance de sobreviver.”

“Podemos ficar juntos por mais seis meses, um ano... de fato não há como saber. No fim, é certo que seremos separados. Você se dá conta de como nós seremos profundamente solitários lá no fim? Quando nos pegarem não haverá nada, absolutamente nada, que possamos fazer um pelo outro. Se eu confesso, eles te fuzilam; e se me recuso a confessar, fuzilam mesmo assim. Nada que eu possa fazer ou dizer, ou deixar de dizer, adiará a sua morte por cinco minutos que seja. Na verdade nós sequer teremos como saber se o outro está vivo. Nem mesmo isso – não teremos nenhum tipo de poder sobre as coisas. O importante é só isso: que a gente não traia um ao outro – ainda que isso tampouco possa fazer alguma diferença.”

“Se você está se referindo à confissão, ah!, é certo que confessaremos. Todo mundo sempre acaba confessando. Não tem jeito de evitar. Eles torturam a gente.”

“Não, não me refiro à confissão”, explicou Winston. “Confissão não é traição. O que você faz ou diz pouco importa: o que importa é o sentimento. Mas se eles conseguirem me obrigar a deixar de lhe amar... isso sim seria traição.”

Ela refletiu sobre aquilo por um momento, e enfim prosseguiu:

“Isso eles não podem fazer. É a única coisa que não podem. Eles podem te fazer dizer qualquer coisa – QUALQUER COISA –, mas não podem te fazer acreditar nisso. Não podem entrar na gente.”

“Não”, disse ele, um pouco mais otimista. “De fato não podem, é verdade. Eles não têm como entrar em você. Se você consegue SENTIR que vale a pena continuar sendo humano, ainda que isso não leve a nada, ao menos você terá vencido os torturadores.”

Winston pensou na teletela, com seu ouvido que não dorme jamais. Eles podiam espionar o sujeito noite e dia, mas se ele não perdesse a cabeça, ainda seria capaz de á-los para trás. Com toda a sua inteligência, eles ainda não tinham dominado o segredo de descobrir o que outro ser humano está pensando. Talvez isso fosse menos verdade quando você estivesse de fato nas mãos deles. Ninguém sabia ao certo o que se ava dentro do Ministério do Amor, mas não era difícil adivinhar: torturas, drogas, delicados instrumentos que mapeavam suas reações nervosas, o desgaste gradual por conta da falta de sono, da solidão e dos interrogatórios sem fim. Os fatos, pelo menos, não poderiam ser mantidos ocultos. Era possível desvendá-los por meio de interrogatórios específicos, ou simplesmente arrancá-los de você através da tortura. Mas, e se o objetivo não fosse permanecer vivo, mas antes, humano? Que diferença isso faria no fim das contas? Eles não poderiam alterar seus sentimentos: de fato nem você mesmo o conseguiria, ainda que quisesse. Podiam arrancar de você, nos mínimos detalhes, tudo quanto tivesse feito, dito ou pensado; mas aquilo que residia no fundo do coração, um mistério até mesmo para o seu dono, isso continuaria inexpugnável.

8.

Eles enfim tomaram uma decisão, enfim tinham criado coragem! A sala em que estavam era comprida e suavemente iluminada. O som da teletela não era mais do que um murmúrio distante; a qualidade do carpete azul-escuro dava a impressão de que a pessoa caminhava sobre um chão de veludo. No extremo oposto da sala, O’Brien estava sentado a uma mesa sob a luz de uma luminária verde, entre duas enormes pilhas de documentos. Não se dignou a levantar o olhar quando o criado fez com que Julia e Winston entrassem. O coração de Winston saltava com tanta força que ele não sabia se seria capaz de falar. Tinham tomado a decisão, tinham enfim criado coragem, era tudo o que conseguia pensar naquele momento. Fora uma temeridade ir à casa de O’Brien, e pura loucura chegar à sua porta juntamente com Julia; muito embora fosse verdade que eles tomaram caminhos diferentes, tendo se encontrado tão somente quando já estavam diante da porta do apartamento dele. No entanto, já era preciso uma enorme dose de coragem e ousadia para sequer pôr os pés num lugar como aquele. Só em ocasiões muito raras era possível vislumbrar o interior da residência de um membro do Partido Interno. Ora, até mesmo ar pelo bairro em que eles residiam já era algo consideravelmente incomum. A atmosfera do grandioso bloco de apartamentos, a opulência e a vastidão de tudo, os cheiros raros de boa comida e bom fumo, os elevadores silenciosos e incrivelmente rápidos, zunindo para cima e para baixo, os criados de paletó branco andando apressados de um lado para o outro – tudo era intimidador. Embora Winston tivesse um bom pretexto para estar ali, a cada o assombrava-o o medo de que um guarda de uniforme escuro surgisse de repente e exigisse seus documentos e o mandasse para fora dali. O criado de O’Brien, no entanto, não hesitou um segundo em permitir a sua entrada. Era um homenzinho trajando um paletó branco, de cabelo escuro e rosto losangular, inteiramente inexpressivo – de fato um rosto que poderia muito bem ser chinês. Ele os conduziu por um corredor acarpetado, com papel de parede creme e rodapé branco, tudo extremamente limpo. Isso era mais uma fonte de intimidação: Winston não se lembrava de algum dia ter visto corredores cujas paredes não fossem marcadas pelo contato de corpos humanos. Não havia um encardido

sequer. O’Brien tinha um pedaço de papel entre os dedos, parecia estudá-lo com toda a sua atenção. O rosto de feições pesadas, inclinado de modo que revelava a linha do nariz, parecia ao mesmo tempo formidável e inteligente. Durante uns vinte segundos ele permaneceu imóvel. Depois puxou o falaescreve para perto e ditou uma mensagem no jargão híbrido dos ministérios:

Itens um vírgula cinco vírgula sete aprovados inteiramente ponto sugestão contida item seis duplomais ridícula quase crimepensar cancelar ponto improsseguir construtivo anteobter maiscompleto estimativa custo maquinário ponto fim mensagem.

O’Brien ergueu-se deliberadamente da cadeira e aproximou-se deles, atravessando com os silenciosos o tapete espesso. A atmosfera oficial pareceu desvanecer um pouco quando ele deixou de se expressar em Novalíngua, porém sua face estava mais severa do que de costume, como se aquela interrupção o tivesse aborrecido de alguma forma. Ao pavor que Winston já sentia, de repente se misturou um fio de embaraço perfeitamente comum. Pareceu-lhe bem possível ter cometido um equívoco imbecil. Pois que evidência tinha de que O’Brien estava de fato envolvido em algum tipo de conspiração política? Não tinha evidência alguma, além de uma rápida troca de olhares e um comentário ambíguo; fora isso, tudo se resumia ao seu próprio imaginário secreto, sustentado num sonho. Naquela altura, não podia sequer recorrer ao pretexto de que viera pegar o dicionário emprestado, pois nesse caso seria impossível explicar a companhia de Julia. Seja como for, quando ou perto da teletela, O’Brien pareceu se lembrar de alguma coisa. Deteve-se, voltou-se e pressionou um interruptor na parede. Ouviu-se um estalido seco, e a voz parou. Julia soltou uma espécie de grito contido de surpresa, quase um sussurro. Mesmo em pânico, Winston ficou tão irado que não conseguiu segurar a língua:

“Você podem desligá-las!”

“Sim”, disse O’Brien, “nós podemos. Temos esse privilégio.”

Estava bem diante deles. Sua figura sólida dominava o casal, e a expressão em seu rosto permanecia indecifrável. Esperava, com um ar de severidade, que Winston falasse – mas o quê? Mesmo àquela altura, era bem possível que O’Brien não fosse mais do que um homem ocupado que se perguntava, irritado, por que havia sido interrompido por aqueles dois. Ninguém abriu a boca. Depois de a teletela ter sido desligada, a sala ecoava um silêncio sepulcral. Os segundos se arrastavam, imensos. Com certa dificuldade, Winston continuava a fixar seus olhos nos de O’Brien. De repente, a sua expressão carrancuda se desfez, dando lugar a algo que poderia ser o princípio de um sorriso. Com seu gesto característico, O’Brien ajeitou os óculos no nariz; depois disse:

“Falo eu ou falam vocês?”

“Eu falo”, disse Winston de imediato. “Aquela coisa ali está mesmo desligada?”

“Está. Está tudo desligado. Estamos sós.”

“Bem, nós viemos aqui porque...”

Fez uma pausa, pela primeira vez se dando conta de quão vagos eram os seus motivos. Como não sabia que espécie de auxílio O’Brien poderia lhe oferecer,

não era lá muito fácil dizer o que tinha ido fazer ali afinal. Mesmo assim Winston prosseguiu, ciente de que o que estava dizendo parecia inconsistente e pretensioso:

“Acreditamos que existe algum tipo de conspiração, alguma espécie de organização secreta trabalhando contra o Partido, e que você está envolvido nela. Somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do Ingsoc. Somos criminosos do pensamento. Também somos adúlteros. Conto tudo isso porque desejamos nos colocar em suas mãos. Se quiser que nos incriminemos de alguma outra forma, estamos prontos.”

Ele parou e olhou por cima do próprio ombro, com a impressão de que a porta da sala abrira atrás dele. De fato, o criado de semblante oriental havia entrado sem bater. Winston notou que ele trazia uma bandeja com uma garrafa e algumas taças.

“Martin é dos nossos”, disse O’Brien, imível. “Traz a bebida para cá, Martin. Põe essa bandeja na mesa redonda. Temos cadeiras suficientes? Então vamos sentar e conversar com calma. Vai pegar uma cadeira para você, Martin. Vamos falar de negócios. Pode deixar de ser um criado pelos próximos dez minutos.”

O homenzinho sentou-se, completamente à vontade, sem no entanto perder por completo seu ar de serviçal – o ar de um empregado que desfruta momentaneamente de um privilégio. Winston o acompanhava de rabo de olho. Ocorreu-lhe que toda a vida daquele sujeito consistia em representar um papel, de modo que achava perigoso abandonar por completo, ainda que por alguns momentos, a sua personalidade fictícia. O’Brien apanhou a garrafa pelo gargalo e encheu as taças com um líquido vermelho-escuro. Aquilo despertou em Winston vagas memórias de algo que tinha visto num ado remoto, num muro ou num tapume: uma garrafa

enorme, composta de lâmpadas elétricas, que parecia movimentar-se para cima e para baixo, derramando seu conteúdo num copo. Visto de cima, o líquido parecia quase negro, mas na garrafa cintilava como um rubi. Tinha um aroma agridoce. Winston percebeu que Julia havia apanhado sua taça e cheirava o líquido com jovial curiosidade.

“Isso se chama vinho”, disse O’Brien, com um quase sorriso. “Sem dúvida já devem ter lido a respeito em algum livro. Infelizmente, não costumam chegar muitas garrafas ao Partido Externo.” Seu rosto voltou a exprimir um aspecto solene, e ele ergueu a taça: “Creio que devemos começar com um brinde. Ao nosso Líder, Emmanuel Goldstein.”

Winston apanhou sua taça com certa ansiedade. Vinho era algo com que já havia tanto lido quanto sonhado. Como o peso de papel de vidro ou as cantigas semiesquecidas do sr. Charrington, pertencia a um ado extinto e romântico, o tempo de antigamente, como gostava de intitulá-lo secretamente em seus pensamentos. Sem saber por que motivo, sempre havia acreditado que o vinho teria um sabor intensamente doce, como de geleia de amora, e um efeito embriagante imediato. Mas quando atravessou sua garganta, o líquido lhe causou uma profunda decepção. A verdade era que, após anos e anos de gim, ele mal conseguia sentir o gosto daquilo na boca. Deixou a taça vazia em cima da mesa.

“Então existe mesmo um homem chamado Goldstein?”, quis saber.

“Sim, existe, e está vivo. Só não sei onde.”

“E a conspiração – a organização? Ela é mesmo real? Não é só mais uma invenção da Polícia do Pensamento?”

“Não, ela também é real. Nós a chamamos de Irmandade. Vocês nunca irão saber coisa alguma a seu respeito, além do fato de que ela existe e de que pertencem a ela. Volto a esse assunto logo mais.” O’Brien olhou seu relógio de pulso. “É imprudente, mesmo para os membros do Partido Interno, desligar a teletela por mais de meia hora. Vocês não deviam ter vindo aqui juntos, e terão de sair um de cada vez. Você, camarada – virou-se para Julia –, vai sair primeiro. Temos cerca de vinte minutos para nossa conversa. Sei que vão compreender o motivo de eu ter de começar fazendo algumas perguntas. Em termos gerais, o que estão dispostos a fazer?”

“Tudo o que estiver dentro de nossas capacidades”, respondeu Winston.

O’Brien se virou um pouco na cadeira, de modo que estava novamente de frente para Winston. Aliás, ele quase não levava Julia em consideração, parecendo entender que Winston falava pelos dois. Por um instante, fechou parcialmente os olhos. Em seguida, começou a série de perguntas sempre numa voz baixa, inexpressiva, como se aquilo não asse de um procedimento de rotina, uma espécie de catecismo, cujas respostas já eram de alguma forma conhecidas ou previstas:

“Estão dispostos a darem suas vidas?”

“Sim.”

“Estão dispostos a cometer assassinatos?”

“Sim.”

“A cometer atos de sabotagem que podem causar a morte de centenas de inocentes?”

“Sim.”

“A trair seu país em benefício de potências estrangeiras?”

“Sim.”

“Estão dispostos a fraudar, falsificar, chantagear, corromper a mente de crianças, distribuir drogas que causam dependência, incentivar a prostituição, disseminar doenças venéreas – em suma, fazer tudo o que possa de alguma forma causar a desmoralização e o enfraquecimento do poder do Partido?”

“Sim.”

“Acaso, por exemplo, servisse aos nossos interesses jogar ácido sulfúrico no rosto de uma criança, vocês seriam capazes disso?”

“Sim.”

“Estão dispostos a perder a identidade e ar o restante da vida trabalhando como um garçom ou um estivador?”

“Sim.”

“Estão dispostos a cometer suicídio, se e quando surgir uma ordem para tal?”

“Sim.”

“Estão dispostos, os dois, a um dia se separarem para nunca mais verem um ao outro?”

“Não!”, interveio Julia.

A Winston pareceu ter se ado uma longa pausa antes que pudesse responder. Por um momento até lhe pareceu que havia perdido o poder de falar. A língua se movia sem emitir som, formando primeiro a sílaba de uma palavra, depois de outra, inúmeras vezes. Até pronunciá-la, não sabia ao certo o que diria.

“Não”, disse, por fim.

“Foi bom vocês terem esclarecido isso”, disse O’Brien. “É preciso que nós saibamos de tudo.”

Voltou-se para Julia e acrescentou, numa voz ligeiramente mais expressiva do que antes:

“Você compreende que, ainda que ele sobreviva, talvez já não seja a mesma pessoa? Pode ser necessário dar a ele uma nova identidade. Seu rosto, seus movimentos, o formato das mãos, a cor dos cabelos, até mesmo a sua voz pode estar diferente. E você também pode vir a se transformar numa outra pessoa. Nossos cirurgiões são capazes de grandes alterações, por vezes somos obrigados a tornar a pessoa irreconhecível. Há alguns casos em que chegamos a ter de amputar um braço ou uma perna.”

Winston não conseguiu evitar mais uma olhadela de rabo de olho para o rosto mongol de Martin. Não havia cicatrizes visíveis. Julia tinha empalidecido um pouco, deixando suas sardas à mostra, mas continuava encarando O’Brien com audácia. Por fim, ela murmurou algo que se parecia com um “ok”.

“Ótimo. Então está tudo combinado.”

Sobre a mesa havia uma caixa prateada de cigarros. Com um ar incompatível com a importância daquela conversa, O’Brien tirou um cigarro para si e empurrou a caixa na direção deles. Em seguida se levantou e começou a andar devagarinho de um lado para o outro, como se pudesse pensar melhor assim. Eram cigarros de excelente qualidade, grossos e bem embalados, com um papel de uma sedosidade bem acima da média. O’Brien voltou a conferir seu relógio de pulso.

“É melhor voltar para a copa, Martin”, disse. “Vou ligar daqui a quinze minutos. Olha bem para o rosto desses camaradas antes de sair. Você deve vê-los outra vez. Eu talvez não.”

Exatamente como haviam feito à porta do apartamento, os olhos escuros do

homenzinho se iluminaram e fixaram-se nas faces de Winston e Julia. Não havia em sua atitude sequer uma fagulha de cordialidade. Estava decorando as fisionomias, porém decerto não sentia nenhum interesse especial por eles. Winston imaginou que um rosto sintético não tivesse mais a capacidade de mudar de expressão. Sem falar nem fazer qualquer cumprimento, Martin saiu em total silêncio, fechando a porta atrás de si. O’Brien continuava caminhando pela sala, com uma das mãos no bolso do macacão preto, e a outra segurando o cigarro.

“Espero que compreendam”, disse, “que lutarão no escuro. Estarão sempre no escuro. Receberão ordens e as obedecerão sem saber por quê. Mais tarde lhes enviarei um livro onde poderão aprender acerca da verdadeira natureza da sociedade em que vivemos, assim como a estratégia pela qual nós a destruiremos. Quanto terminarem de ler o livro, vocês serão membros integrais da Irmandade. Mas sobre os objetivos gerais pelos quais lutamos, e as tarefas imediatas do momento, nada poderão saber. Assim, eu lhes garanto que a Irmandade existe, mas não posso afirmar se os seus membros contam uma centena ou dez milhões. Pelo seu conhecimento individual, vocês jamais serão capazes de dizer se seus integrantes alcançam até mesmo uma dúzia. Vocês terão três ou quatro contatos, que de vez em quando vão desaparecer, sendo substituídos por outros. Como este foi o seu primeiro contato, ele será preservado. As ordens que vão receber partirão diretamente de mim. Se acharmos necessário nos comunicar mais diretamente com vocês, tudo será feito através do Martin. Quando enfim forem apanhados, vocês irão confessar – isso é inevitável. No entanto terão muito pouco o que confessar para além de suas próprias ações. Não terão condições de incriminar mais que um punhado de gente sem importância. É possível que nem a mim vocês incriminem. Quiçá eu já esteja morto, ou tenha me transformado noutra pessoa, com um novo rosto.”

O’Brien continuou caminhando para lá e para cá, sobre o tapete macio. Apesar de todo o volume do seu corpo, havia uma graciosidade digna de nota em seus movimentos. Isso era evidenciado até mesmo pela maneira como enfiava a mão no bolso ou manipulava um cigarro. Mais do que força, O’Brien transmitia uma sensação de confiança e de compreensão, com um leve toque de ironia. Por mais dedicado que fosse a sua causa, não tinha nada da obstinação característica de

um fanático. Quando se referia a assassinatos, suicídios, doenças venéreas, membros amputados e rostos transplantados, o fazia com um ligeiro ar de galhofa. “Isso é inevitável”, sua voz parecia insinuar, “ isso é o que temos de fazer, sem hesitar. Mas não é o que faremos quando a vida voltar a valer a pena.” Uma onda de iração, quase de adoração, fluiu de Winston para O’Brien. De súbito, esqueceu-se da figura distante de Goldstein. Quando se olhava para os ombros poderosos de O’Brien, e sua face de feições maciças, tão feia e ao mesmo tempo tão civilizada, era impossível crer em derrota. Não havia estratagema que ele não pudesse vencer, nenhum perigo que não pudesse prever. Até mesmo Julia parecia impressionada. Tinha deixado o seu cigarro se apagar, e agora escutava atentamente a tudo o que O’Brien dizia:

“Vocês certamente já ouviram rumores sobre a existência da Irmandade. É bem provável que tenham imaginado um vasto mundo de conspiradores reunindo-se secretamente em porões, rabiscando mensagens pelos muros da cidade, reconhecendo uns aos outros por meio de códigos ou movimentos específicos das mãos e dos dedos. Nada disso existe. Os membros da Irmandade não têm nenhum meio de se reconhecer, e é impossível que qualquer um de nós conheça a identidade de mais do que alguns poucos membros. O próprio Goldstein, se fosse enfim capturado pela Polícia do Pensamento, não teria como fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse que ela chegasse a ser compilada. Não existe tal lista. A Irmandade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido usual do termo. Nada a mantém de pé, exceto por uma ideia, uma ideia indestrutível. Assim, vocês jamais poderão contar com algum outro alento além dessa ideia. Não irão experimentar camaradagem nem encorajamento. Quando enfim forem pegos, não receberão ajuda alguma. Nunca ajudamos nossos membros. No máximo, quando se faz absolutamente necessário que alguém seja permanentemente silenciado, às vezes conseguimos introduzir secretamente uma navalha na cela do prisioneiro. Vocês irão trabalhar por algum tempo, serão presos, confessarão, e daí morrerão. São os únicos resultados que poderão testemunhar. Não há a menor possibilidade de que ocorram mudanças perceptíveis em nosso tempo de vida. Nós somos os mortos. Nossa única vida verdadeira está no futuro. Nela tomaremos parte como pó e fragmentos de ossos. Mas não há como saber a que distância se encontra tal futuro – pode ser daqui a mil anos. No momento, nada é possível, exceto alargar aos poucos a zona de sanidade. Não temos meios de agir

coletivamente. Só podemos disseminar nosso conhecimento de indivíduo a indivíduo, geração após geração. Diante da Polícia do Pensamento, não há outra forma de luta viável.”

O’Brien interrompeu o discurso e, pela terceira vez, consultou seu relógio de pulso. Depois se dirigiu outra vez à Julia:

“Já está quase na hora de você sair, camarada. Espere. A garrafa ainda está pela metade.”

O’Brien encheu as taças e ergueu a sua pela haste.

“A que brindaremos desta vez?”, perguntou, ainda com um leve ar de ironia. “À desorganização da Polícia do Pensamento? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro?”

“Ao ado”, disse Winston.

“Sim, o ado é mais importante”, concordou O’Brien, solenemente.

Esvaziaram suas taças e em seguida Julia se levantou para sair. O’Brien apanhou uma caixinha no alto de um armário e deu a ela uma pastilha lisa e branca, recomendando que a dissolvesse na boca. Era importante, ele explicou, não sair de lá com odor de vinho na boca: os ascensoristas do edifício eram muito observadores. Assim que a porta se fechou atrás dela, O’Brien pareceu ter se esquecido da sua existência. Voltou a caminhar pela sala, mas logo se deteve e

voltou a falar:

“Nós temos de acertar alguns detalhes. Por acaso você tem algum esconderijo?”

Winston mencionou o quarto acima da loja do sr. Charrington.

“Bem, isso deve servir por ora. Mais tarde nós arranjaremos outro lugar para vocês. É importante mudar frequentemente de esconderijo. Enquanto isso, vou lhe mandar um exemplar do LIVRO” – Winston notou que até mesmo O’Brien parecia pronunciar a palavra como se ela estivesse em destaque –, “o livro de Goldstein, claro, o mais breve possível. Talvez se em alguns dias antes de eu conseguir uma cópia. Não há muitos exemplares disponíveis, como deve imaginar. A Polícia do Pensamento os persegue e destrói quase no mesmo ritmo em que conseguimos imprimi-los. No entanto, isso faz pouca diferença. O livro é indestrutível. Mesmo que o seu último exemplar fosse perdido, ainda poderíamos reproduzi-lo praticamente palavra por palavra.” Enfim, acrescentou: “Quando vai trabalhar, você carrega alguma pasta?”

“Geralmente levo sim.”

“Como ela é?”

“É preta, bem surrada. Tem duas alças.”

“Preta, duas alças, surrada... certo. Um dia, num futuro bem próximo – não posso fixar uma data exata –, numa das mensagens que você recebe no trabalho

pela manhã haverá um erro de digitação; daí você deverá solicitar uma retransmissão. No dia seguinte, você deverá ir ao trabalho sem a sua pasta. Em algum momento desse dia, quando estiver pela rua, um homem o tocará no braço e dirá: ‘Acho que o senhor deixou cair sua pasta’. Na pasta que ele vai lhe dar, você vai encontrar um exemplar do livro de Goldstein. Ele deverá ser devolvido dentro de catorze dias.”

Ambos ficaram calados por alguns instantes.

“Antes de ir embora, ainda temos alguns minutinhos”, disse O’Brien. “Provavelmente ainda nos encontraremos de novo... Mas, quando nos encontrarmos...”

Winston o olhou nos olhos e disse, com certa hesitação:

“Lá onde não há trevas?”

O’Brien fez que sim com a cabeça, sem aparentar surpresa.

“Lá onde não há trevas”, repetiu, como se reconhecesse a referência. “E agora, quer dizer mais alguma coisa antes de sair? Dar algum recado? Fazer uma pergunta?”

Winston refletiu. Não parecia haver mais qualquer outra pergunta da qual desejasse resposta; e tinha ainda menos vontade de dizer alguma generalidade presunçosa. Em vez de coisas diretamente conectadas a O’Brien ou à Irmandade,

surgiu-lhe na mente uma espécie de imagem onde se mesclavam o quarto escuro em que sua mãe ou os últimos dias de sua vida, o quartinho sobre a loja do sr. Charrington, o peso de papel de vidro e a gravura em metal com sua moldura de pau-rosa. Quase sem querer, acabou dizendo:

“Por acaso você já ouviu uma velha cantiga que começa com ‘Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente’?”

O’Brien voltou a fazer o mesmo movimento com a cabeça. Então, com uma espécie de cortesia solene, completou os versos:

Laranjas e limões pra gente, dizem os sinos da São Clemente, Você deve três vinténs pra mim, dizem os sinos da São Martim, Quando você vai me pagar?, os sinos de Old Bailey vão perguntar, Quando eu enriquecer, os sinos de Shoreditch vão responder.

“Você sabia o último verso!”, exclamou Winston.

“Sabia sim. E agora, infelizmente, creio que está na hora de você ir. Espere. É melhor dissolver uma dessas pastilhas na boca.”

Assim que Winston se levantou, O’Brien lhe estendeu a mão. Com um vigoroso aperto, quase trincou seus ossos. Quando estava prestes a sair, Winston olhou para trás, mas naquela altura O’Brien aparentemente já estava prestes a bani-lo de sua mente. Aguardava a sua saída, com a mão no interruptor que ligava e desligava a teletela. Atrás dele, Winston ainda pôde observar a escrivaninha com

sua luminária verde, o falaescreve e os cestos de arame entulhados de documentos. O incidente estava devidamente encerrado. Dali a uns trinta segundos, pensou, O’Brien retomaria seu trabalho interrompido, que era de grande importância para o Partido.

9.

Winston sentia-se gelatinoso de tanto cansaço. Sim, “gelatinoso” era a palavra certa. Ela havia surgido espontaneamente em sua mente. Seu corpo parecia ter não somente a debilidade da gelatina, como a sua translucidez. Tinha a impressão de que, caso erguesse sua mão, conseguiria ver a luz do outro lado ando através dela. Todo o sangue e toda a linfa tinham sido sugados de seu corpo por um gigantesco excesso de trabalho, deixando tão somente uma frágil estrutura de nervos, ossos e pele. Todas as sensações pareciam amplificadas. O macacão roçava em seus ombros, a calçada fazia cócegas em seus pés. Até mesmo o esforço de abrir e fechar a mão fazia com que suas juntas estalassem. Ao longo de cinco dias, ele havia trabalhado mais de noventa horas. E o mesmo se ou com todo mundo no Ministério. Agora, estava tudo encerrado e, literalmente, não havia mais nada a fazer, nenhuma tarefa do Partido até a manhã seguinte. Podia ar seis horas no esconderijo e outras nove na própria cama. Lentamente, banhado pelo sol ameno da tardinha, seguiu por uma rua suja na direção da lojinha do sr. Charrington, sempre alerta à possibilidade de aparecer alguma patrulha, porém irracionalmente convencido de que naquele dia não havia perigo capaz de detê-lo. A pasta pesada que carregava consigo batia em seus joelhos a cada o dado, provocando uma sensação de formigamento na perna. Dentro dela estava o livro – de fato o exemplar já estava em sua posse há seis dias, mas ele ainda não tivera tempo de abri-lo, nem sequer para dar uma olhadinha rápida. No sexto dia da Semana do Ódio, após as paradas, os discursos, a gritaria, a cantoria, as bandeiras, os cartazes, os filmes, as figuras de cera, o rufar dos tambores, o toque das cornetas, o som das marchas, das esteiras dos tanques, dos aviões zunindo pelo céu, dos tiros de canhão – após seis dias disso tudo, quando o grande orgasmo avançava trêmulo para o clímax e o ódio geral pela Eurásia fervilhava, formando um delírio de dimensões tais que se a multidão colocasse as mãos nos dois mil criminosos de guerra eurasianos prestes a serem enforcados num ato público no último dia das celebrações, sem dúvida os teriam estraçalhado membro por membro –, justamente nesse momento fora anunciado que a Oceania na realidade não estava em guerra com a Eurásia. A Oceania estava em guerra com a Lestásia. A Eurásia era, portanto, uma aliada.

Evidentemente não houve nenhum reconhecimento de que algo tinha mudado. Apenas foi anunciado, de maneira absolutamente repentina e em toda parte ao mesmo tempo, que naquele momento o inimigo era a Lestásia, e não a Eurásia. Winston estava participando de uma demonstração em uma das praças centrais de Londres quando o fato ocorreu. Era noite, e os rostos brancos e as bandeiras escarlates estavam iluminados pela luz dos refletores. A praça estava tomada por alguns milhares de pessoas, incluindo uma tropa de cerca de mil escolares envergando o uniforme dos Espiões. Num palanque coberto por panos escarlates, discursava um orador do Partido Interno; era um homenzinho esguio de braços demasiadamente longos e um vasto crânio calvo sobre o qual se viam algumas mechas de cabelo. Ele mais parecia uma figura saída de um conto fantástico: contorcido de ódio, agarrava com uma das mãos o microfone e, com a outra, um punho enorme na ponta de um braço ossudo, socava ameaçadoramente o ar a sua volta. Sua voz, tornada metálica pelos amplificadores, preenchia a praça, vomitando um catálogo sem fim de horrores, massacres, deportações, saques, estupros, torturas de prisioneiros, bombardeio de civis, propagandas enganosas, agressões injustas e tratados abandonados. Era praticamente impossível escutá-lo sem se deixar primeiramente convencer, e logo após, enlouquecer. Com intervalo de alguns instantes a fúria da multidão fervilhava e a voz do orador era abafada por um rugido feroz, selvagem, emergindo sem controle de milhares de gargantas. Os gritos mais selvagens vinham dos escolares. Havia uns vinte minutos que ele discursava quando um mensageiro subiu no palanque e lhe ou um pedaço de papel. Ele simplesmente desdobrou o papel e leu o que estava escrito, sem interromper seu discurso. Em nada alterou a voz, nem a atitude, tampouco o teor do que era dito, mas de repente os nomes haviam sido trocados. Sem que fosse necessária uma única palavra de advertência, uma onda de entendimento percorreu a multidão: a Oceania estava em guerra com a Lestásia! No momento seguinte houve uma comoção tremenda. As bandeiras e cartazes que adornavam a praça estavam todos errados! Cerca da metade deles ilustrava rostos errados! Era sabotagem! Os agentes de Goldstein tinham atuado! Houve um interlúdio tumultuado em que os cartazes foram arrancados das paredes e as bandeiras foram derrubadas, rasgadas e pisoteadas. Os Espiões executaram proezas iráveis, escalando os telhados e cortando as bandeirolas que tremulavam presas às chaminés. Porém, dois ou três minutos depois, tudo havia voltado à normalidade.

O orador, ainda agarrado ao microfone, com os ombros arqueados para frente e o punho socando o ar, continuou seu discurso. Dali a pouco mais de um minuto, os urros ferozes da multidão voltaram a ecoar. O Ódio prosseguiu exatamente como antes, apenas o seu alvo havia mudado. Em retrospecto, a coisa que mais impressionou Winston foi o fato do orador haver trocado o sentido de seu discurso bem no meio de uma frase, e não apenas sem pausa, como sem rompimento da sintaxe. Naquele exato momento, entretanto, ele tinha outras coisas com o que se preocupar. Foi durante a desordem, enquanto os cartazes eram arrancados dos muros, que um homem cujo rosto nem teve tempo de ver lhe deu um tapinha no ombro e disse: “Desculpe, acho que você deixou cair a sua pasta”. Assim, Winston apanhou a pasta, distraído, sem nada dizer. Sabia que seria necessário esperar alguns dias para ter a oportunidade de dar uma olhada em seu conteúdo. Assim que a manifestação foi encerrada, dirigiu-se ao Ministério da Verdade, embora já fossem quase onze da noite. Todo o pessoal do Ministério agiu da mesma forma. As teletelas já emitiam ordens convocando todos a ocupar seus postos, mas elas eram inteiramente desnecessárias aquela altura. A Oceania estava em guerra com a Lestásia: a Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia. Grande parte da literatura política dos últimos cinco anos subitamente havia se tornado completamente obsoleta. Relatórios e reportagens de todo tipo – jornais, livros, panfletos, filmes, trilhas sonoras, fotografias – tudo tinha de ser corrigido à velocidade da luz. Embora não tivessem sido emitidas ordens específicas, já se sabia que os chefes do Departamento pretendiam que dali a não mais do que uma semana já não existisse em canto nenhum qualquer referência à guerra com a Eurásia ou à aliança com a Lestásia. O trabalho era devastador, e mais ainda uma vez que todo o processo não podia ser chamado pelo seu nome legítimo. No Departamento de Registro, todos trabalhavam dezoito horas por dia com dois intervalos de três horas para dormir. Vieram colchões do subsolo, que foram devidamente espalhados pelos corredores: as refeições consistiam de sanduíches e Café Vitória levados em carrinhos pelos empregados da cantina. Cada vez que Winston parava o trabalho e ia dormir, procurava deixar sua mesa arrumada, sem trabalho por fazer; mas, sempre que se arrastava de volta para seu lugar, de olhos remelentos, cheio de dores pelo corpo, constatava que uma nova montanha de cilindros de papel recobria sua mesa como uma nevasca, quase escondendo o falaescreve, e escorregando para o chão, de modo que a primeira tarefa do novo turno de serviço consistia em empilhar todos os papéis para abrir algum espaço para poder trabalhar. O pior era que nem

todo trabalho consistia de tarefas puramente mecânicas, uma vez que todo relatório mais detalhado exigia algum cuidado e certa dose de imaginação. Mesmo o conhecimento geográfico necessário para transferir a guerra de uma parte à outra do mundo não era nada trivial. Lá pelo terceiro dia, seus olhos doíam de forma inável, e se fazia necessário limpar as lentes dos óculos a cada poucos minutos. Era como se batalhasse contra uma missão física esmagadora, algo que até poderia se recusar a fazer, mas que ainda assim tinha uma ânsia neurótica por realizar. Tanto quando era capaz de lembrar, não o incomodava o fato de cada palavra murmurada no falaescreve ser uma mentira cínica, assim como cada rabisco de seu lápis-tinta. Estava tão ansioso quanto os demais funcionários do Departamento para que a falsificação ficasse perfeita. Na manhã do sexto dia a chuva de cilindros de papel havia amainado. Durante meia hora, nada saiu do tubo pneumático; então, surgiu um cilindro, e depois mais nada. Ao mesmo tempo, todo o trabalho ia sendo reduzido em toda parte. Embora oculto, um profundo suspiro percorreu todo Departamento. Ali se encerrava uma proeza extraordinária, um feito que jamais poderia ser mencionado. Agora nenhum ser humano poderia comprovar com uma evidência documental que algum dia a Oceania estivera em guerra com a Eurásia. Então, à meia-noite soou um comunicado inesperado: todos os funcionários do Ministério estavam de folga até a manhã seguinte. Winston, ainda carregando consigo a pasta que continha o livro, que esteve sempre entre suas pernas enquanto trabalhava, e debaixo do corpo enquanto dormia, foi para casa, fez a barba e quase dormiu no banho, embora a água estivesse somente um pouco mais do que morna. Com uma espécie de estalo voluptuoso nas juntas, subiu a escada da loja do sr. Charrington. Estava bem cansado, é verdade, mas já não tinha mais sono. Abriu a janela, acendeu o pequeno fogareiro a óleo e pôs uma a com água no fogo, para o café. Julia já estava para chegar: enquanto isso, ele tinha o livro. Acomodou-se na poltrona esfarrapada e abriu a pasta. Era um volume negro e pesado, encadernado de forma um tanto tosca, sem título nem autor na capa. A impressão também parecia ligeiramente irregular. As páginas estavam gastas nas bordas, e se soltavam com facilidade, como se o livro tivesse ado por muitas mãos. Na folha de rosto constavam as seguintes informações:

TEORIA E PRÁTICA DO COLETIVISMO OLIGÁRQUICO por Emmanuel Goldstein

Winston logo começou a ler:

Capítulo I Ignorância é Força

Desde que a história humana começou a ser registrada, e provavelmente desde o fim do Neolítico, podemos distinguir três tipos de pessoas no mundo: as Altas, as Médias e as Baixas. Tais pessoas, por sua vez, se subdividiram de diversas maneiras, responderam por um número incontável de nomes e títulos, e o seu número total relativo, bem como a sua atitude umas para com as outras, variaram de acordo com as eras. Não obstante, a estrutura essencial da sociedade jamais foi alterada. Mesmo após enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo padrão sempre voltou a se firmar, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre retorna ao equilíbrio, por mais que seja empurrado nesta ou naquela direção. Ora, sabe-se que os objetivos desses três grupos são inteiramente irreconciliáveis...

Winston interrompeu a leitura, principalmente para poder apreciar o fato de que estava lendo, em conforto e segurança. Estava inteiramente só: nada de teletela,

nada de ouvido no buraco da fechadura, nada de impulso nervoso de espiar por cima do ombro ou de tapar a página com a mão. O ar doce do verão acariciava suavemente a sua face. De algum canto distante chegavam gritos de crianças meio abafados: no quarto em si não havia ruído algum – além da voz de inseto do relógio. Ele se acomodou ainda mais fundo na poltrona e apoiou os pés na guarda da lareira. Aquilo sim era felicidade, era eternidade. De repente, como às vezes fazemos com um livro que temos certeza de que iremos ler e reler palavra por palavra, abriu-o numa página diferente e percebeu que se encontrava no Capítulo III. Então continuou a ler:

Capítulo III Guerra é Paz

A divisão do mundo em três grandes superestados foi um evento que podia ter sido previsto – e, de fato, o foi – antes de meados do século XX. Com a absorção da Europa pela Rússia e do Império Britânico pelos Estados Unidos, foram constituídas duas das três potências do nosso tempo: a Eurásia e a Oceania. A terceira, a Lestásia, só emergiu como uma unidade distinta após mais de uma década de conflitos armados um tanto caóticos. As fronteiras que demarcam os três superestados são arbitrárias em alguns pontos, enquanto noutros costumam flutuar de acordo com os acasos da guerra, embora de modo geral acabem sempre obedecendo certas características geográficas. A Eurásia compreende toda a parte norte dos continentes europeu e asiático, de Portugal ao estreito de Bering. A Oceania é formada pelas Américas, as ilhas do Atlântico – incluindo as britânicas –, a Austrália e a parte sul da África. A Lestásia, menor que as demais, e com uma fronteira ocidental menos definida, inclui a China e os países ao sul da China, as ilhas do Japão e um extenso território, embora flutuante, da Manchúria, da Mongólia e do Tibete. Por via de alianças variáveis, esses três superestados estão em guerra permanente, ou pelo menos tem sido assim nos últimos vinte e cinco anos. A guerra em si, no entanto, já não é o confronto desesperado, devastador, que era nas primeiras décadas do século XX. É um embate de objetivos limitados entre combatentes que não têm como destruir um ao outro, carecem de motivos reais

para lutar e não estão separados por nenhuma diferença ideológica genuína. Isso não significa que as operações de guerra ou a atitude predominante em relação a ela tenham se tornado mais cordiais, ou menos sanguinárias. Pelo contrário, a histeria de guerra é contínua e universal em todos os países, de modo que atos como estupros, saques, assassinato de crianças, escravização de populações inteiras e represarias contra prisioneiros – que chegam a ser jogados em água fervente, ou enterrados vivos – são considerados normais e, quando cometidos por tropas aliadas, até mesmo meritórios. Materialmente, porém, a guerra envolve um número bem pequeno de cidadãos – em geral especialistas muito bem treinados – e causa relativamente poucas baixas. O combate, quando há combate, é travado em fronteiras imprecisas cuja localização exata o homem comum só pode tentar adivinhar, ou em torno das Fortalezas Flutuantes que guardam pontos estratégicos das rotas marítimas. Nos centros de civilização a guerra não significa nada além da constante escassez de mercadorias para consumo e, por vezes, da explosão de uma bomba-foguete capaz de provocar algumas dezenas de mortes. A realidade é que as características da guerra se modificaram. Para ser mais exato, o que mudou foi a ordem de importância das razões pelas quais se fazem guerras. Motivos que até certo ponto já estavam presentes nas grandes guerras do início do século XX tornaram-se dominantes e hoje são conscientemente reconhecidos e levados em consideração. Para entender a natureza da guerra em nosso tempo – pois, apesar dos reagrupamentos de alianças que ocorrem a cada poucos anos, ainda se trata da mesma guerra – é preciso compreender, antes de mais nada, que é impossível que ela seja decisiva. Nenhum dos três superestados poderia ser vencido em definitivo, nem mesmo pelos dois outros juntos. O equilíbrio de poder é muito grande, e suas defesas naturais são formidáveis. A Eurásia é guardada por suas vastas massas de terra, a Oceania pela imensidão azul do Atlântico e do Pacífico, e a Lestásia, pela fecundidade e capacidade industrial de seus habitantes. Em segundo lugar, já não existe, no sentido material, nada pelo que valha a pena lutar. Com o estabelecimento de economias autossustentáveis, nas quais a produção e o consumo calibram-se reciprocamente, a disputa por novos mercados, um dos principais ingredientes de guerras pregressas, chegou ao fim; a competição desenfreada por matérias-primas simplesmente deixou de ser uma questão de vida ou morte. Cada um dos três superestados é tão vasto que possui em seu próprio território quase todas as matérias-primas de que necessita.

Na medida em que a guerra ainda tem um objetivo econômico direto, trata-se de um embate pela mão de obra. Entre as fronteiras dos superestados, e sem pertencer permanentemente a nenhum dos três, há um tosco quadrilátero cujos ângulos localizam-se em Tânger, Brazzaville, Darwin e Hong Kong, contendo dentro de seus limites cerca de um quinto da população terrestre. É pelo domínio dessas regiões tão densamente povoadas, bem como da calota de gelo do polo Norte, que as três potências guerreiam sem cessar. Na prática, nenhuma delas jamais chegou a controlar a totalidade da área em disputa. Partes de tal área estão constantemente trocando de mãos, e é justamente pela possibilidade de conquistar este ou aquele fragmento de terra através de um ato súbito de traição que as alianças são feitas e desfeitas, incessantemente. Todos os territórios em disputa contêm valiosos minerais, sendo que alguns produzem bens agrícolas importantes, como a borracha – nos climas frios, se faz necessário produzir borracha sinteticamente, por meio de técnicas relativamente caras. Acima de tudo, porém, eles contêm uma reserva infindável de mão de obra barata. Quem tiver o controle da África Equatorial, os dos países do Oriente Médio, ou da Índia Meridional, ou do Arquipélago Indonésio, terá a sua disposição os serviços de dezenas ou centenas de milhões de trabalhadores braçais diligentes e consideravelmente baratos. Os habitantes dessas regiões, reduzidos de forma mais ou menos aberta à condição de escravos, am continuamente de um conquistador ao outro, e são usados – como se fossem nada mais que carvão ou petróleo – na corrida para fabricar mais armamentos e conquistar mais territórios, o que por sua vez irá possibilitar o controle de uma força de trabalho ainda maior, para fabricar ainda mais armamentos e conquistar ainda mais territórios, e assim por diante, em um ciclo sem fim. Vale destacar que as batalhas jamais chegam a ultraar os limites das áreas em disputa. As fronteiras da Eurásia oscilam entre a bacia do Congo e o litoral norte do Mediterrâneo; as ilhas do Oceano Índico e do Pacífico estão constantemente sendo conquistadas e reconquistadas pela Oceania ou pela Lestásia; na Mongólia, a fronteira entre a Eurásia e a Lestásia está em permanente instabilidade; em torno do polo, as três potências afirmam ter direito a imensos territórios que são, em realidade, largamente desabitados e inexplorados: mas o equilíbrio de poder se mantêm sempre mais ou menos na mesma, e os territórios que formam o núcleo de cada superestado permanecem sempre inviolados. Além disso, o trabalho dos povos explorados que vivem nas proximidades da linha do Equador não é realmente essencial para a economia mundial. Pois que eles nada acrescentam à riqueza do mundo, visto que tudo o

que produzem é usado para fins de guerra, e o grande objetivo de uma guerra é sempre estar em uma posição mais vantajosa para travar a próxima guerra. O trabalho das populações escravizadas permite que o ritmo da guerra contínua seja cada vez mais acelerado. Se ele não existisse, não haveria mudanças essenciais na estrutura da sociedade mundial, tampouco no processo pelo qual ela se mantém como está. O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípios do DUPLIPENSAMENTO, essa meta é ao mesmo tempo reconhecida e não reconhecida pelos cérebros que dirigem o Partido Interno) é fazer uso dos produtos da máquina sem com isso elevar o padrão geral de vida. Desde o fim do século XIX, a questão do que fazer com o excedente de produção de bens de consumo tem sido um tema dominante na sociedade industrial. Hoje, no entanto, quando poucos seres humanos dispõem do suficiente até mesmo para alimentação, essa questão perdeu a sua urgência, e talvez isso viesse a ocorrer mesmo sem a intervenção de processos artificiais de destruição. O mundo atual é um lugar desolado, destruído e faminto em comparação ao mundo que existia antes de 1914, e ainda mais se comparado ao futuro utópico para o qual as pessoas daquela época pensavam que estavam se encaminhando. No início do século XX, a visão de uma sociedade futura incrivelmente rica, ociosa, organizada e eficiente – um resplandecente mundo antisséptico de vidro, aço e concreto muito branco – preenchia o imaginário de praticamente toda pessoa culta. A ciência e a tecnologia se desenvolviam numa velocidade sem precedentes, de modo que parecia natural acreditar que continuariam nesse mesmo ritmo. Mas isso não aconteceu, em parte por conta do empobrecimento provocado por uma longa série de guerras e revoluções, em parte porque o avanço científico e tecnológico dependia do hábito empírico do pensamento, que não poderia sobreviver numa sociedade regimentada de maneira estrita. Como um todo, hoje o mundo é mais primitivo do que era há cinquenta anos. Algumas áreas atrasadas progrediram, e diversos dispositivos foram desenvolvidos, sempre relacionados de alguma forma à guerra e à espionagem policial, mas a experimentação e a inventividade praticamente deixaram de existir, e os danos causados pela guerra atômica da década de 1950 nunca chegaram a ser inteiramente reparados. No entanto os perigos inerentes à máquina continuam a existir. Desde o momento em que a máquina surgiu, tornou-se claro para todas as mentes pensantes que os homens já não seriam mais obrigados a trabalhar – e que,

devido a isso, em grande medida a desigualdade entre eles também iria desaparecer. Ora, se a máquina fosse usada deliberadamente para tal finalidade, a fome, o trabalho duro, a sujeira, o analfabetismo e a doença sumiriam do mapa em poucas gerações. E, de fato, mesmo sem ter sido usada para tais objetivos, mas através de uma espécie de processo automático – principalmente pelo fato de produzir riqueza que em certos casos era impossível deixar de distribuir –, a máquina elevou consideravelmente o padrão de vida do ser humano médio num período de cerca de cinquenta anos, entre o fim do século XIX e o princípio do XX. Evidentemente, também ficou claro que o aumento total da riqueza poderia muito bem significar a destruição – de fato, de certo modo era a própria destruição – da sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem o que comer, morassem numa casa com banheiro e geladeira, e possuíssem carro ou até avião, a forma mais óbvia e talvez mais importante de desigualdade já teria desaparecido. De uma forma geral, a riqueza já não conferiria distinção entre as pessoas. Sem dúvida era possível imaginar uma sociedade em que a RIQUEZA, no sentido da posse pessoal de bens e luxos, fosse distribuída igualmente, enquanto o PODER permaneceria nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não teria como permanecer estável por muito tempo. Pois se o lazer e a segurança fossem igualmente desfrutados por todos, a grande massa de seres humanos usualmente mantida na estupidez pela miséria aprenderia a ler e a pensar por si; e, depois disso, mais cedo ou mais tarde tal massa perceberia que a minoria privilegiada não tinha função alguma, e daria conta dela. No longo prazo, uma sociedade hierárquica só é possível alicerçada na pobreza e na ignorância. Regressar ao ado agrícola, como sonhavam alguns pensadores do início do século XX, não era algo viável, pois entrava em conflito com a forte tendência da mecanização, que havia se tornado praticamente instintiva em quase todo o planeta. E mais: todo país que insistisse em permanecer atrasado industrialmente com o tempo se tornaria indefeso no campo militar, e estaria destinado a ser dominado, direta ou indiretamente, por seus rivais mais desenvolvidos. Tampouco era uma solução satisfatória manter as massas em estado de miséria restringindo a produção de bens. Isso ocorreu, em grande medida, durante a fase final do capitalismo, mais ou menos entre 1920 e 1940. Permitiu-se que a economia de diversos países ficasse estagnada, o cultivo das terras foi

largamente abandonado, não houve acréscimo de maquinário industrial e grandes porções da população, impedidas de trabalhar, foram mantidas em estado próximo da inanição pelos serviços de caridade estatal. Mas tudo isso, é claro, também levava à vulnerabilidade militar, e, considerando que as privações impostas eram obviamente desnecessárias, a oposição se tornava algo inevitável. O problema era manter em movimento as rodas da indústria sem aumentar a riqueza real das pessoas. Era preciso produzir mercadorias, mas elas não podiam ser distribuídas. Na prática, a única forma de tornar isso possível foi através da guerra sem fim. O ato essencial da guerra é a destruição, não necessariamente de vidas humanas, mas dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, de lançar na estratosfera ou de afundar nas profundezas do mar materiais que, de outra forma, poderiam ser usados para dar um conforto excessivo às massas; e, com isso, no longo prazo torná-las demasiadamente inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruídas, sua fabricação continua sendo uma forma conveniente de usar uma mão de obra que não produza nada que se possa consumir. A construção de uma Fortaleza Flutuante, por exemplo, mobiliza uma força de trabalho que poderia muito bem estar construindo centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo, ela vem a ser declarada obsoleta para a guerra, sem nunca ter de fato proporcionado algum benefício material a população em geral, e logo depois, com mais um descomunal esforço de trabalho, uma nova Fortaleza Flutuante é construída. Em princípio, o esforço de guerra é sempre planejado de modo a consumir todo o excedente possível, depois de atendidas as necessidades mais básicas da população. Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado disso tudo é a escassez crônica de cerca de metade dos artigos necessários à vida; entretanto, isso é visto como algo vantajoso. É uma política proposital manter até mesmo os grupos favorecidos no limite da escassez, uma vez que o estado geral de miséria reforça a importância de pequenos privilégios, e dessa forma torna mais evidente a distinção entre um grupo e outro. De acordo com os padrões do início do século XX, até mesmo um membro no Partido Interno leva hoje uma vida austera e laboriosa. Ainda assim, os poucos luxos de que usufrui – seu apartamento espaçoso e bem mobiliado, a qualidade superior de seu vestuário, da sua comida, bebida e cigarros, seus dois ou três empregados, seu carro ou helicóptero particular – o situam num mundo bem diverso daquele onde vivem os membros do Partido Externo, sendo que os membros do Partido Externo ostentam uma vantagem parecida em relação às massas indistintas a que

intitulamos “proletas”. A atmosfera social é a de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo denota a diferença entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em uma guerra – em perigo, portanto – faz parecer natural a entrega de todo o poder a uma pequena casta: trata-se de uma condição de sobrevivência, de algo inevitável. A guerra, como veremos, não apenas dá conta da destruição necessária, como o faz de uma maneira psicologicamente aceitável. Em princípio, seria muito simples gastar o excedente de mão de obra construindo templos e pirâmides, cavando buracos e voltando a enchê-los, ou mesmo produzindo grandes quantidades de mercadorias para depois queimá-las. Mas tudo isso daria conta somente da base econômica de uma sociedade hierárquica: ainda faltaria a base emocional. Trata-se aqui não do moral das massas, cuja atitude não tem a menor importância, desde que sejam mantidas no trabalho, mas do moral do Partido em si. Espera-se que até mesmo o militante mais humilde demonstre competência, entusiasmo com o trabalho, e até mesmo inteligência, dentro de certos limites; no entanto também se faz necessário que ele seja um fanático crédulo e ignorante, cujos estados de espírito principais sejam o medo, o ódio, a adulação e, de tempos em tempos, o sentimento orgiástico de triunfo. Em outras palavras, é necessário que o militante tenha a mentalidade apropriada ao estado de guerra permanente. Não interessa se a guerra está de fato sendo travada; e, uma vez que é impossível que ela termine um dia com a vitória de um dos lados, na realidade pouco importa se ela vai bem ou mal. O que importa é que exista o estado de guerra. A cisão da inteligência que o Partido exige de seus membros, e que pode ser mais facilmente obtida numa atmosfera de guerra, é agora quase universal; porém, quanto mais subimos nos quadros hierárquicos, mais ela se acentua. É precisamente no Partido Interno que a histeria de guerra e o ódio ao inimigo são mais intensos. Na sua posição de , muitas vezes é necessário que um membro do Partido Interno saiba se esta ou aquela notícia de guerra é falsa, de modo que muitas vezes ele pode chegar a se dar conta que toda a guerra é espúria e que, ou não está sendo de fato travada, ou está sendo travada por razões bem diferentes das que foram declaradas: mas esse conhecimento é facilmente neutralizado pela técnica do DUPLIPENSAMENTO. Ao mesmo tempo, nenhum membro do Partido Interno hesita por um instante sequer na sua crença mística de que a guerra é real, e de que está destinada a terminar com a vitória da Oceania, que será então a senhora incontestável do

mundo inteiro. Todos os membros do Partido Interno creem nessa vitória futura como o religioso acreditava num artigo de fé. Ela será conquistada de alguma forma, quer pela aquisição gradual de território – tendo por consequência a construção gradual de uma preponderância avassaladora de poder –, quer pela descoberta de alguma nova arma para a qual os inimigos não possuem defesas. A pesquisa por novos armamentos prossegue incessantemente, e é uma das poucas atividades restantes em que as mentes inventivas ou especulativas ainda podem se debruçar. Hoje em dia, na Oceania, a Ciência em seu sentido antigo praticamente já deixou de existir. De fato, não há palavra em Novalíngua para “Ciência”. O método empírico de pensamento, em que todas as realizações científicas do ado se alicerçavam, opõe-se aos princípios mais fundamentais do Ingsoc. E mesmo o progresso tecnológico só ocorre quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar de alguma forma a liberdade humana. Em todas as artes úteis, o mundo ou está parado ou retrocede. Os campos são cultivados com arados puxados a cavalo, enquanto os livros são escritos por aparelhos. Mas em temas de importância vital – ou seja, a guerra e a espionagem policial – a abordagem empírica continua a ser encorajada, ou ao menos tolerada. As duas metas do Partido são conquistar toda a superfície do planeta e extinguir de uma vez por todas qualquer possibilidade de pensamento independente. Dessa forma, há dois grandes problemas que o Partido se ocupa em resolver. Um deles é como descobrir o que pensa outro ser humano, à revelia dele; outro é como matar várias centenas de milhões de pessoas em poucos segundos, sem dar aviso prévio. Tais são os assuntos das pesquisas científicas que ainda subsistem em nosso tempo. O cientista atual pode ter duas facetas: ou é uma mistura de psicólogo e inquisidor, estudando com extraordinário detalhe o significado das expressões faciais, gestos e tons de voz, e testando os efeitos de drogas, choques elétricos, hipnotismo e torturas físicas na produção da verdade; ou é um químico, físico ou biólogo ocupado exclusivamente com as ramificações de suas áreas de estudo que se conectam com a aniquilação da vida. Nos imensos laboratórios do Ministério da Paz, nas estações experimentais ocultadas nas florestas brasileiras e no deserto australiano, ou mesmo nas ilhas perdidas da Antártida, equipes de especialistas seguem pesquisando, sem pausas. Alguns se ocupam unicamente com o planejamento logístico das guerras futuras; outros desenvolvem bombasfoguetes cada vez maiores, explosivos cada vez mais letais e blindagens cada

vez mais impenetráveis; outros pesquisam gases novos e mais mortais, ou venenos solúveis que possam ser fabricados em quantidade suficiente para destruir a vegetação de continentes inteiros, ou linhagens de germes patogênicos imunes a todos os anticorpos possíveis; outros fazem de tudo para elaborar um veículo que possa abrir caminho debaixo da terra da mesma forma que um submarino viaja nas profundezas do mar, ou um aeroplano tão independente de sua base quanto um veleiro; outros exploram possibilidades ainda mais remotas, como focalizar os raios solares usando lentes suspensas a milhares de quilômetros da Terra, ou provocar terremotos e maremotos artificiais, através da manipulação do calor no centro do planeta. Mas nenhum desses projetos jamais se aproxima da realização, e nenhum dos três superestados obtém uma dianteira tecnológica significativa sobre os demais. O que é mais notável é que as três potências já possuem, na bomba atômica, uma arma consideravelmente mais poderosa do que qualquer outra esboçada em suas atuais pesquisas. Apesar de o Partido, conforme sempre faz, ter reivindicado a sua invenção, as bombas atômicas surgiram ainda no início da década de 1940, e só foram usadas em larga escala cerca de dez anos depois. Naquele período, algumas centenas de bombas foram lançadas contra centros industriais, sobretudo na parte europeia da Rússia, na Europa Ocidental e na América do Norte. O resultado de tamanha destruição foi que os grupos governantes de todos os países se convenceram de que bastariam mais algumas bombas atômicas sendo usadas na guerra para a sociedade organizada chegar ao fim, junto com o seu próprio poder estabelecido sobre ela. Dali em diante, embora nenhum acordo formal tivesse sido celebrado ou mesmo debatido, não se lançaram mais bombas. Assim, as três potências limitaram-se a continuar produzindo bombas atômicas e a armazená-las para a oportunidade decisiva que todas acreditam que há de chegar, mais cedo ou mais tarde. Entrementes, a arte da guerra permaneceu quase estática durante três ou quatro décadas. Hoje usam-se mais helicópteros do que antigamente, os aviões de bombardeio foram em larga medida substituídos por projéteis autoimpulsionados, e o frágil e móvel navio de batalha cedeu lugar à Fortaleza Flutuante, que é quase impossível de ser afundada. Fora isso, no entanto, praticamente não houve mais desenvolvimento algum. O tanque, o submarino, o torpedo, a metralhadora, até mesmo o rifle e a granada continuam a ser usados. E, apesar dos massacres sem fim relatados pela imprensa e através das teletelas, nunca mais foram repetidas as batalhas desesperadas de guerras pregressas, em que centenas de milhares ou mesmo milhões de homens eram por vezes mortos em algumas semanas.

Nenhum dos três superestados jamais tenta alguma manobra que possa envolver o risco de uma derrota séria. Quando se lançam a alguma operação de grande envergadura, é em geral um ataque surpresa a um aliado. A estratégia adotada pelas três potências é rigorosamente a mesma – ou ao menos a estratégia que elas fingem seguir. O plano é adquirir, graças a uma combinação de batalhas, barganhas e golpes bem planejados de traição, um círculo de bases que cerquem completamente um ou outro estado rival, e então um pacto de amizade com esse mesmo rival, mantendo uma relação pacífica com ele por um número de anos suficiente para arrefecer toda suspeição. Durante esses anos de espera, foguetes carregados de bombas atômicas podem ser acumulados em todos os pontos estratégicos; por fim, eles serão disparados ao mesmo tempo, com efeitos tão devastadores que será impossível reagir ou retaliar. Então chega o momento de um tratado de amizade com a terceira potência mundial, já preparando a próxima traição. Mas tal plano é, evidentemente, um mero devaneio: é impossível que seja realizado. Além disso, na verdade não há combate algum, exceto nas zonas contestadas, em torno do Equador e do Polo Norte: jamais se arrisca qualquer invasão do território inimigo. Isso explica o fato de que em alguns lugares as fronteiras entre os superestados são arbitrárias. A Eurásia, por exemplo, poderia facilmente conquistar as Ilhas Britânicas, que geograficamente fazem parte da Europa; por outro lado, a Oceania não teria dificuldades em expandir suas fronteiras até o Reno ou o Vístula. Executar tal empreitada, no entanto, seria violar o princípio adotado por todas as partes – embora jamais formulado –, que defende a integração cultural. Acaso a Oceania se prestasse a conquistar os territórios que um dia foram chamados de França e Alemanha, seria preciso ou dizimar seus habitantes – uma tarefa de enorme dificuldade física – ou assimilar uma população de cerca de cem milhões de pessoas que, no que tange o desenvolvimento técnico, encontra-se muito perto do nível dos habitantes da Oceania. Assim, o problema é o mesmo para os três superestados. É absolutamente vital para suas estruturas que não haja nenhum tipo de contato com estrangeiros, exceto, e até certo ponto, com os prisioneiros de guerra e as populações de cor escravizadas. Até mesmo o aliado oficial em dado momento é visto sempre com profundas suspeitas. Fora os prisioneiros de guerra, o cidadão comum da Oceania jamais põe os olhos num cidadão da Eurásia ou da Lestásia, e está inteiramente proibido de conhecer idiomas estrangeiros. Acaso tivesse permissão para manter contato com estrangeiros, descobriria que são criaturas semelhantes a ele, e que quase

tudo o que lhe disseram sobre tais pessoas é mentira. Assim se encerraria o mundo fechado em que vive, e o medo, o ódio e a presunção sobre os quais se apoia sua disposição para a luta poderiam evaporar da noite para o dia. Diante disso, todos os lados compreendem com clareza que por mais que Pérsia, Ceilão, Egito ou Java troquem de mãos, suas fronteiras nunca deverão ser cruzadas por nada além de bombas aéreas. Por trás disso tudo há um fato que jamais é mencionado em voz alta, mas que é compreendido tacitamente e justifica uma série de ações. Eis o fato: as condições de vida nos três superestados são praticamente as mesmas. Na Oceania a filosofia vigente é chamada de Ingsoc; na Eurásia ela é chamada de Neobolchevismo; na Lestásia tem um nome chinês que é usualmente traduzido por Adoração da Morte, mas que talvez fosse mais bem definido por Obliteração de Si Mesmo. O cidadão da Oceania não pode saber coisa alguma a respeito dos fundamentos das outras duas filosofias. No entanto, eles são ensinados a execrálas como ofensas bárbaras à moralidade e ao senso comum. A verdade é que as três filosofias mal se distinguem umas das outras, e os sistemas sociais de que são base não se distinguem de modo algum. Por toda parte encontramos a mesma estrutura piramidal, a mesma adoração de um líder semidivino, a mesma economia focada única e exclusivamente numa atividade de manutenção da guerra contínua. Por conta disso, os três superestados, além de não terem como conquistar uns aos outros, não galgariam nenhuma vantagem se o fizessem. Tanto o oposto disso: enquanto permanecem em conflito, promovem um ao outro, como três feixes do mesmo milho. E, como habitual, os grupos dominantes das três potências sabem e não sabem, ao mesmo tempo, o que estão fazendo. Dedicam a vida à conquista do mundo, mas também sabem que é necessário continuar a guerra – uma guerra sem fim, e sem vitória. Entrementes, o fato de NÃO HAVER perigo de uma conquista definitiva torna possível à negação da realidade, que é a principal característica do Ingsoc e dos outros dois sistemas de raciocínio. Quanto a esse ponto, é necessário repetir o que já dissemos, isto é: pelo fato de ter se tornado contínua, a guerra mudou fundamentalmente de caráter. Nos tempos antigos a guerra era, quase por definição, algo que mais dia menos dia chegava ao fim. Também no ado, a guerra era um dos instrumentos pelo qual as sociedades humanas se mantinham em contato com a realidade física. Todos os governantes de todos os tempos tentaram impor uma falsa visão do mundo aos seus seguidores, contudo sem poder se dar ao luxo de fomentar

ilusões que pudessem significar algum prejuízo à eficiência militar. Considerando que a derrota significava a perda de independência ou qualquer outro resultado geralmente considerado indesejável, era preciso tomar sérias precauções contra tal possibilidade. Afinal, é impossível ignorar fatos físicos. Em filosofia, religião, ética e política talvez o resultado de dois mais dois seja cinco, mas quando se trata de projetar uma arma de fogo ou um avião, o resultado precisa ser quatro. Assim, mais cedo ou mais tarde as nações ineficientes na guerra eram conquistadas, e a busca pela eficiência era inimiga das ilusões. Além disso, para ser eficiente era necessário ser capaz de aprender com o ado, o que significava ter uma ideia bastante abrangente dos fatos do ado. Não que jornais e livros de história não tenham sido parciais e salpicados de ideologia, claro, mas uma falsificação nos moldes atuais seria algo inteiramente impossível. A guerra era uma firme salvaguarda de saúde mental; e, no que se referia aos interesses das classes dominantes, provavelmente a mais importante de todas as salvaguardas. Mas quando a guerra se torna literalmente contínua, também deixa de ser perigosa. Quando ela não tem um fim possível, não existe necessidade militar. O progresso tecnológico pode cessar e os fatos mais palpáveis podem ser negados ou ignorados. Como vimos, ainda se realizam pesquisas que poderiam ser consideradas científicas, sempre atendendo a necessidades da guerra, mas elas são em essência uma espécie de devaneio, de modo que o fato de lhes faltarem resultados reais não tem a menor importância. A eficiência, mesmo a eficiência militar, torna-se desnecessária. Nada é eficiente na Oceania, exceto a Polícia do Pensamento. Já que cada um dos superestados é invencível, cada qual é, da mesma forma, um universo em separado dentro do qual se pode praticar sem risco qualquer tipo de perversão do pensamento. A realidade exerce a sua pressão tão somente através das necessidades do dia a dia – a necessidade de comer e beber, de conseguir abrigo e roupas, de evitar a ingestão de veneno ou a queda de janelas de andares elevados, coisas assim. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e a dor física, ainda há distinção, mas é só. Sem contato com o mundo externo e com o ado, o cidadão de Oceania é como um homem no espaço interestrelar, que não tem como saber qual direção leva para baixo ou para cima. Os governantes desse tipo de estado conseguiram ser ainda mais absolutistas que os faraós e os césares. É verdade que ainda são obrigados a evitar que os seus correligionários morram de fome em números

demasiadamente elevados – algo que poderia prejudicá-los –, e também são forçados a permanecer em pé de igualmente com o baixo nível de tecnologia militar dos rivais; no entanto, uma vez obtido o mínimo, estão livres para torcer a realidade na direção que acharem melhor. A julgar pelos padrões das guerras pregressas, a guerra de hoje é, portanto, nada mais que uma impostura. É como os embates entre certos ruminantes, cujos chifres são dispostos em tal ângulo que não podem realmente ferir um ao outro. Entretanto, apesar de irreal, ela tem sentido. Devora os excedentes de bens e contribui para manter a atmosfera mental que convém a uma sociedade hierárquica. Hoje a guerra é tão somente, como veremos, um assunto interno. No ado, os grupos dominantes de todos os países, mesmo reconhecendo seus interesses comuns (e com isso limitando a força destrutiva da guerra), de fato lutavam uns contra os outros, e ao vencedor cabia saquear o vencido. Mas em nossos dias eles não lutam mais entre si, em absoluto. A guerra é travada entre cada grupo dominante e os seus próprios súditos, e o seu objetivo não é obter ou evitar conquistas de território, mas manter intacta a estrutura da sociedade. Assim, a própria palavra “guerra” tornou-se ambígua. Provavelmente seria correto afirmar que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua. A pressão que exerceu sobre os seres humanos entre o Neolítico e o início do século XX desvaneceu e foi substituída por algo bem diferente. O efeito seria mais ou menos parecido se os três superestados, em vez de lutar um contra o outro, concordassem em viver numa paz perpétua, cada um deles inviolado dentro de suas próprias fronteiras. Porque nesse caso cada um deles continuaria sendo um universo autossuficiente, livre para sempre da influência moderadora do perigo externo. Uma paz verdadeiramente permanente seria, ao mesmo tempo, uma guerra permanente. Aliás, é justamente esse o significado mais profundo do lema do Partido, embora a imensa maioria dos seus membros só o compreenda de forma superficial: GUERRA É PAZ.

Winston parou de ler por um momento. Em algum lugar distante uma bombafoguete estourou. Ainda não havia sumido o sentimento abençoado de estar sozinho com o livro proibido num aposento sem teletela alguma. A solidão e a segurança eram sensações físicas, de certo modo misturadas com o cansaço do corpo, a maciez da cadeira e a brisa suave que acariciava seu rosto, vinda da janela. O livro o fascinava, ou, mais exatamente, o tranquilizava. De certa

maneira, nada trazia de novo, mas isso também fazia parte do seu fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse como organizar seus pensamentos dispersos. Era produto de uma mente semelhante à sua, porém imensamente mais poderosa, mais sistemática, menos amedrontada. Ele percebeu que os melhores livros são os que dizem o que já sabemos. Tinha acabado de voltar ao Capítulo I, quando ouviu os os de Julia na escada e se levantou da poltrona para encontrá-la à porta. Julia largou a bolsa de ferramentas no chão e se atirou em seus braços. Já fazia mais de uma semana que eles não se viam.

“Recebi O LIVRO”, disse ele, quando os dois se soltaram.

“Ah, é mesmo? Que bom”, disse ela, sem demonstrar grande interesse pelo fato, e imediatamente se ajoelhou ao pé do fogareiro a óleo para fazer café.

Não voltaram ao tema senão depois de terem ado meia hora na cama. A noite havia esfriado um pouco, o que os levou a se cobrirem com a colcha. Lá da rua vinham os ruídos familiares de cantorias e botas roçando nas lajes. A mulher corpulenta de braços vermelhos que Winston vira em sua primeira visita parecia fazer parte do pátio. Ao que tudo indica não havia hora do dia em que ela não estivesse caminhando de lá para cá entre o tanque e o varal, ora sufocando a si mesma com prendedores de roupa, ora cantando canções maliciosas a plenos pulmões. Julia havia se deitado ao seu lado e parecia estar prestes a adormecer. Ele pegou de volta o livro do chão ao lado da cama e se acomodou, com as costas apoiadas na cabeceira.

“Nós temos de ler isso”, disse. “Inclusive você. Todos os membros da Irmandade precisam ler esse livro.”

“Por que você não lê?”, ela indagou, de olhos fechados. “Leia alto. É a melhor forma, e você pode ir me explicando tudo enquanto lê.”

Os ponteiros do relógio marcavam seis, indicando ser dezoito horas. Eles tinham três ou quatro horas pela frente. Assim, ele apoiou o livro sobre os joelhos e começou a ler:

Capítulo I Ignorância é Força

Desde que a história humana começou a ser registrada, e provavelmente desde o fim do Neolítico, podemos distinguir três tipos de pessoas no mundo: as Altas, as Médias e as Baixas. Tais pessoas, por sua vez, se subdividiram de diversas maneiras, responderam por um número incontável de nomes e títulos, e o seu número total relativo, bem como a sua atitude umas para com as outras, variaram de acordo com as eras. Não obstante, a estrutura essencial da sociedade jamais foi alterada. Mesmo após enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo padrão sempre voltou a se firmar, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre retorna ao equilíbrio, por mais que seja empurrado nesta ou naquela direção.

“Julia, ainda está acordada?”, perguntou Winston.

“Estou sim, meu amor. Estou ouvindo. Vai lendo. É maravilhoso.”

Ele continuou a leitura:

Ora, sabe-se que os objetivos desses três grupos são inteiramente

irreconciliáveis. O objetivo das Altas é continuar onde já estão. O das Médias é trocar de lugar com as Altas. E o objetivo das Baixas, quando de fato têm algum – pois que uma das características marcantes das Baixas é o de estarem tão oprimidas pela quantidade de trabalho que só durante alguns intervalos conseguem ter alguma consciência de toda e qualquer coisa externa ao seu dia a dia –, é abolir todas as diferenças e criar uma sociedade na qual todas as pessoas sejam iguais. Assim, através de toda a história humana, um conflito cujas características básicas permanecem as mesmas se repete, de novo e de novo. Por longos períodos as Altas parecem estar bem firmes no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perdem a fé em si mesmas, ou a sua capacidade de governar com eficiência – ou ambas. Então, elas são derrubadas pelas Médias, que conquistam o apoio das Baixas fingindo lutar por liberdade e justiça. Assim que atingem seu objetivo, as Médias empurram as Baixas de volta para sua posição subalterna, no intuito de se tornarem, elas próprias, as Altas. Nesse momento um novo grupo de Médias se desprende de um dos outros dois grupos, ou de ambos, e tudo recomeça – um novo conflito se repete. Dos três grupos, apenas as Baixas jamais conseguem, sequer temporariamente, sucesso na conquista de seus objetivos. Seria um exagero afirmar que ao longo da história nunca houve progresso material. Mesmo hoje, nesse período de declínio, o ser humano comum está fisicamente em melhor condição do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhum refinamento da educação, nenhuma reforma ou revolução jamais serviram para que a igualdade entre os seres humanos avançasse sequer um milímetro. Do ponto de vista das Baixas, nenhuma mudança histórica chegou a significar muito mais que uma mudança no nome de seus senhores. Por volta do fim do século XIX a recorrência desse modelo tinha ficado óbvia para muitos observadores. Então surgiram algumas escolas filosóficas que interpretavam a história como um processo cíclico e pretendiam demonstrar que a desigualdade era a lei inalterável da vida humana. Essa doutrina, é claro, sempre teve seus adeptos, mas na maneira pela qual foi então exposta havia uma mudança significativa. No ado, a necessidade de haver uma forma hierárquica de sociedade fazia parte da doutrina específica das Altas. Ela era pregada por reis e aristocratas, assim como sacerdotes, advogados e outros parasitas das Altas, que amenizavam essa doutrina com promessas de recompensa num mundo imaginário no pós-morte. As Médias, enquanto lutaram

pelo poder, sempre se valeram de termos como liberdade, justiça e fraternidade. Hoje, no entanto, o conceito de fraternidade humana começou a ser atacado pelos que não se encontravam em posições de comando, mas que alimentavam a esperança de ocupá-las em breve. No ado as Médias haviam feito revoluções sob a bandeira da igualdade, para logo após instalar uma nova tirania sobre os escombros da anterior. Na verdade os novos grupos de Médias proclamavam sua tirania com certa antecedência. O Socialismo, teoria surgida no início do século XIX, era o último elo em uma cadeia de pensamento que havia se iniciado nas rebeliões dos escravos da Antiguidade, e ainda continuava profundamente impregnado pelas ideias de Utopia das eras pregressas. Mas em cada variante do Socialismo que surgiu de 1900 para cá, a ideia de estabelecer a liberdade e a igualdade ia sendo abandonada cada vez de forma mais aberta. Os novos movimentos surgidos no meio do século – Ingsoc na Oceania, Neobolchevismo na Eurásia e Adoração da Morte (como costuma ser chamado) na Lestásia – tinham o objetivo declarado de perpetuar a DESliberdade e a DESigualdade. É claro que esses novos movimentos emergiram dos velhos, e tendiam a conservar seus nomes, pagando uma espécie de falso tributo a sua ideologia. Mas o real objetivo de todos eles era deter o progresso e manter a história como que congelada em uma só época. O movimento tão familiar do pêndulo deveria ocorrer mais uma única vez, e então parar para sempre. Como de hábito, as Altas deveriam ser derrubadas pelas Médias, que então se tornariam as Altas; desta vez, no entanto, por meio de uma estratégia consciente, as novas Altas teriam as condições de manter sua posição indefinidamente. As novas doutrinas nasceram em parte por conta do acúmulo de conhecimento histórico e do desenvolvimento do sentido histórico, que era quase inexistente antes do século XIX. O movimento cíclico da história era agora inteligível, ou ao menos dava impressão de ser; e, em sendo inteligível, também era alterável. Mas a causa principal, subjacente, era que já pelo início do século XX a igualdade humana havia se tornado algo tecnicamente possível. Além disso, continuava sendo verdade que os homens não eram iguais no que tangia os seus talentos inatos, e era necessário especializar as funções de maneira a favorecer este indivíduo em detrimento daquele; mas já não havia nenhuma necessidade real de existirem distinções de classe ou grandes diferenças de riqueza. Em eras pregressas, as distinções de classe tinham sido não somente inevitáveis como desejáveis. A desigualdade era o preço da civilização. Com o desenvolvimento da produção pela via das máquinas, no entanto, toda a situação se modificou.

Embora ainda fosse necessário que os seres humanos realizassem diversos tipos de tarefas, já não era necessário que vivessem em diferentes níveis sociais ou econômicos. Portanto, do ponto de vista dos novos grupos que estavam prestes a tomar o poder, a igualdade humana já não era mais um ideal a ser atingido, mas um perigo a ser evitado. Em épocas mais primitivas, quando de fato não era possível a existência de uma sociedade justa e pacífica, fora bem fácil acreditar em tal ideia. Ora, a ideia de um paraíso terrestre em que os homens vivessem juntos num estado de fraternidade, sem leis nem trabalho brutal, havia incendiado a imaginação humana por milhares de anos. E tal ideia tinha certo fascínio mesmo sobre os grupos que realmente se beneficiavam de cada mudança histórica. Os herdeiros das revoluções sa, inglesa e americana haviam em parte acreditado em seus próprios chavões sobre direitos humanos, liberdade de expressão, igualdade perante a lei e assim por diante; inclusive permitindo, dentro de certos limites, que sua conduta fosse influenciada por eles. Só que aproximadamente nos anos 1940 todas as principais correntes de pensamento político eram autoritárias. O paraíso terrestre caiu em descrédito justamente no momento em que ou a ser algo possível. Cada nova teoria política, fosse qual fosse o seu rótulo, conduzia todos de volta à hierarquia e à regimentação. E no endurecimento geral de atitudes que eclodiu por volta de 1930, certas práticas há muito abandonadas, em alguns casos por séculos – prisões sem julgamento, escravização de prisioneiros de guerra, execuções públicas, tortura para extrair confissões, uso de reféns e deportações de populações inteiras –, não somente voltaram a ser comuns como eram toleradas e até defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas. Somente após uma década de guerras nacionais, guerras civis, revoluções e contrarrevoluções em todos os cantos do mundo é que o Ingsoc e seus rivais emergiram como teorias políticas integralmente formuladas. Só que elas tinham sido antecipadas pelos diversos sistemas, em geral chamados totalitários, surgidos no início do século, e as principais características do mundo que emergiria de todo aquele caos estavam óbvias já há um bom tempo. Era igualmente evidente que tipo de gente estaria no controle desse novo mundo. A nova aristocracia era composta, em sua maioria, por burocratas, cientistas, técnicos, representantes de sindicatos, especialistas em publicidade, sociólogos, professores, jornalistas e políticos profissionais. Tais pessoas, cuja origem estava na classe média assalariada e nas camadas superiores da classe operária, foram moldadas e criadas pelo mundo estéril da indústria monopolista e do governo

centralizado. Comparadas com os seus antecessores, eram menos avarentas, menos seduzidas pelo luxo, mais famintas pelo poder em sua forma pura e, acima de tudo, mais conscientes do que faziam e mais decididas a esmagar toda espécie de oposição. Esta última diferença era fundamental. Comparadas com as tiranias atuais, todas as tiranias do ado foram vacilantes e ineficazes. Os grupos que governavam foram sempre infestados, até certa medida, de ideias liberais, e se contentavam em deixar pontas soltas por toda parte, considerando somente os atos explícitos de tirania; dessa forma, não tinham nenhum interesse, em absoluto, no que os seus súditos pensavam ou deixavam de pensar. Ora, até mesmo a Igreja Católica da Idade Média era tolerante se comparada aos parâmetros atuais. A razão disso, em parte, era que no ado nenhum governo conseguiu de fato manter seus cidadãos completamente sob controle. A invenção da imprensa, no entanto, facilitou a tarefa de manipular a opinião pública, e o rádio e o cinema aprofundaram o processo. Com o surgimento da televisão e o avanço tecnológico que possibilitou a recepção e a transmissão simultâneas por via do mesmo aparelho, a vida privada chegou ao fim. Cada cidadão, ou ao menos cada cidadão suficientemente importante para merecer ser alvo de espionagem, ou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial, com os demais canais de comunicação vedados. Existia pela primeira vez a possibilidade de impor a todos os cidadãos a completa obediência às determinações do Estado, assim como a completa uniformidade de opinião em todas as partes. ado o período revolucionário de 1950 a 1970, a sociedade se reagrupou, como sempre, entre os três tipos de pessoas: Altas, Médias e Baixas. Mas as novas Altas, ao contrário das antecessoras, já não agiam por instinto: sabiam muito bem o que era preciso para garantir sua posição. Há um bom tempo sabiase que a única base segura para a oligarquia é o coletivismo. Riqueza e privilégio são defendidos com grande eficácia quando possuídos conjuntamente. A assim chamada “abolição da propriedade privada”, ocorrida no meio do século, na verdade veio a significar a concentração da propriedade em um número muito menor de pessoas: com a diferença de que os novos proprietários eram um grupo, e não mera massa de indivíduos. Ora, se é verdade que individualmente nenhum membro do Partido possui coisa alguma, exceto alguns bens pessoais de pouca importância, coletivamente, por sua vez, o Partido é dono de tudo na Oceania, uma vez que a tudo controla, e

dispõe dos seus produtos como bem entende. Nos anos que se seguiram à Revolução, ele teve a oportunidade de ocupar essa posição de comando praticamente sem oposição, uma vez que o processo como um todo era representado como um ato de coletivização. Sempre se acreditou que, caso a expropriação da classe capitalista ocorresse, o Socialismo cresceria dali: e, inquestionavelmente, os capitalistas haviam sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transporte – tudo lhes foi confiscado. E considerando que essas coisas haviam deixado de ser propriedade privada, a conclusão era que agora elas certamente eram propriedade pública. O Ingsoc, que brotou do movimento socialista anterior e dele herdou toda fraseologia, na verdade tinham conseguido concretizar o que havia de mais importante no programa socialista; e o resultado disso, antecipadamente previsto e galgado, foi tornar permanente a desigualdade econômica. Mas o problema de tornar permanente uma sociedade hierárquica vai bem mais fundo do que isso. Só há quatro maneiras de um grupo governante abandonar o poder: ou ele é vencido de fora, ou governa tão mal que as massas são levadas à revolta, ou permite que surja um grupo forte e descontente de Médias, ou perde a confiança e a disposição para governar. Mas essas causas não atuam em separado; quase sempre todas elas estão juntas em alguma medida. Uma classe dominante capaz de proteger-se de todas elas ficaria indefinidamente no poder. Assim, no fim das contas, o fator preponderante é a atitude mental da própria classe dominante. Depois de meados deste século, desapareceu o primeiro perigo. As três potências em que o mundo se dividiu são efetivamente invencíveis, e só poderiam se tornar vulneráveis por meio de lentas mutações demográficas que um governo com amplos poderes consegue evitar facilmente. O segundo perigo é hoje tão somente teórico. As massas nunca irão se revoltar espontaneamente, e tampouco irão se revoltar somente por ser oprimidas. De fato, se não lhes é permitido ter padrões de comparação, elas nem ao menos se darão contra de que são oprimidas. As crises econômicas recorrentes de eras pregressas foram totalmente desnecessárias e hoje em dia não se permite que ocorram, mas podem ocorrer – e ocorrem – outros deslocamentos igualmente grandes sem que se verifiquem resultados políticos, pois a insatisfação não consegue se tornar minimamente articulada. No que tange ao problema do excedente de produção, latente em nossa sociedade desde o desenvolvimento do aparato tecnológico, esse se soluciona

através do mecanismo da guerra contínua (ver Capítulo III), que também é útil para ajustar o moral público aos níveis adequados. Do ponto de vista dos nossos atuais governantes, portanto, os únicos perigos genuínos são o surgimento de um novo grupo de pessoas capazes, subempregadas e com fome de poder, e o crescimento do liberalismo e do ceticismo em suas fileiras. Isso significa que o problema é educacional. É uma questão de moldar continuamente a consciência tanto do grupo dirigente como do grupo executivo situado logo abaixo dele. Quanto à consciência das massas, só se faz necessário influenciá-la de modo negativo. Uma vez tudo isso considerado, seria possível deduzir (caso ela já não fosse conhecida) a estrutura geral da sociedade oceânica: No alto da pirâmide se encontra o Grande Irmão. O Grande Irmão é infalível e todo-poderoso. Cada sucesso, realização, vitória ou descobrimento científico, assim como toda sabedoria, felicidade e virtude, tudo isso é atribuído diretamente à sua liderança e inspiração. Ninguém jamais viu o Grande Irmão. Ele é um rosto nos cartazes, uma voz nas teletelas. Podemos ter razoável certeza de que ele nunca morrerá, e, da mesma forma, há uma considerável incerteza da data em que ele nasceu. O Grande Irmão é a forma pela qual o Partido decidiu se mostrar ao resto do mundo. Sua função é ser um ponto focal de amor, medo e reverência, emoções mais facilmente sentidas em relação a um único indivíduo do que a toda uma organização. Abaixo do Grande Irmão vem o Partido Interno, com membros limitados a seis milhões, o que equivale a pouco menos de dois por cento da população da Oceania. Abaixo do Partido Interno vem o Partido Externo, que também pode ser chamado de mãos do Estado, enquanto o anterior seria o seu cérebro. Abaixo deles vêm as massas sem voz a qual nos referimos usualmente por “proletas”, que totalizam em torno de oitenta e cinco por cento da população. Nos termos da nossa classificação anterior, os proletas equivalem as Baixas, uma vez que a população escravizada das terras equatoriais, que troca de mãos constantemente, não é bem uma parte permanente nem tampouco necessária dessa estrutura. Em princípio, ser parte de um destes três grupos não é algo ligado a uma hereditariedade. O filho de pais que pertencem ao Partido Interno não será, em teoria, automaticamente mais um filiado dele no futuro. A issão em qualquer

das esferas do Partido é feita via exame, prestado aos dezesseis anos. Não há nenhum tipo de discriminação racial, nem qualquer favorecimento de uma província sobre outra. Nos postos mais elevados do Partido, encontram-se judeus, negros e sul-americanos de origem indígena, sendo que os es regionais são sempre convocados dentre os habitantes daquela área específica. Assim, em nenhuma parte da Oceania os habitantes têm a impressão de pertencer a uma colônia istrada a partir de alguma capital distante. De fato, a Oceania não tem capital, e o seu chefe titular é uma pessoa cujo real paradeiro todos ignoram. Afora o fato de o inglês ser sua principal língua franca e a Novalíngua sua língua oficial, nada na Oceania é centralizado. Seus governantes não são ligados por laços de sangue, mas pela obediência à doutrina comum. É verdade que a nossa sociedade é estratificada – aliás, muito rigidamente estratificada – de um modo que à primeira vista parece refletir linhagens hereditárias. Verifica-se um trânsito muito menor entre os diferentes grupos do que o que era visto durante o capitalismo, ou mesmo durante a era pré-industrial. Há certa dose de intercâmbio entre os dois ramos do Partido, mas apenas o suficiente para garantir que os fracos sejam excluídos do Partido Interno, e os membros mais ambiciosos do Partido Externo deixem de ser um perigo ao serem atendidos em seus anseios, sendo elevados a uma esfera mais elevada. Na prática, os proletas não têm autorização para entrar no Partido. Os mais inteligentes, que talvez pudessem formar núcleos de descontentamento, são simplesmente identificados pela Polícia do Pensamento e em seguida eliminados. Mas tal estado de coisas não é necessariamente permanente, nem mesmo uma questão de princípio. O Partido não é uma classe no antigo sentido do termo. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se já não houvesse um meio de preservar os mais capacitados nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar toda uma nova geração diretamente das massas proletas. Nos anos decisivos, muito contribuiu para neutralizar a oposição o fato de o Partido não ser um organismo hereditário. O tipo antigo de socialista, treinado para lutar contra o que por vezes era chamado de “privilégio de classe”, supunha que tudo aquilo que não fosse hereditário tampouco poderia ser permanente. Não se dava conta de que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem parava para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram uma vida curta, enquanto que organizações que se renovavam a si mesmas, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas ou até mesmo milhares de anos.

A essência da regra oligárquica não é a hereditariedade de pai para filho, mas a persistência de determinada visão de mundo, e de certo estilo de vida imposto pelos mortos sobre os vivos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear seus sucessores. O Partido não se interesse pela perpetuação do seu sangue, mas antes pela perpetuação da sua própria entidade. Não importa QUEM exerce o poder, contanto que a estrutura hierárquica permaneça imutável. Todas as crenças, hábitos, gostos, emoções e atitudes mentais que caracterizam a nossa época são de fato destinados a sustentar a mística do Partido e impedir que a verdadeira natureza da sociedade atual possa ser percebida. A rebelião física não é viável no momento, nem mesmo qualquer preliminar de rebelião. Dos proletas não há nada a se temer. Entregues a si mesmos, vão prosseguir, de geração em geração e de século em século, trabalhando, procriando e morrendo; não somente sem qualquer impulso de rebeldia, como sem a mínima capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é. Eles só poderiam tornar-se perigosos caso o progresso da tecnologia industrial exigisse que recebessem melhor educação; entretanto, visto que a rivalidade entre os militares e os comerciantes deixou de ser importante, o nível da educação popular na verdade se encontra em declínio. Assim, seja qual for a opinião que as massas proletas adotam ou deixem de adotar, essa opinião só merece indiferença. Tais massas só podem desfrutar de liberdade intelectual porque de fato carecem de intelecto. Já para um membro do Partido, o menor desvio de opinião sobre o mais insignificante dos assuntos é intolerável. O membro do partido vive, do berço até a morte, sob os olhos da Polícia do Pensamento. Mesmo quando está só, jamais pode ter absoluta certeza do seu isolamento. Onde quer que esteja, dormindo ou acordado, trabalhando ou descansando, no banho ou na cama, pode ser examinado sem aviso, e sem sequer saber que foi examinado. Assim, nada do que ele faz é indiferente. Suas amizades, seus divertimentos, sua conduta em relação à esposa (ou esposo) e aos filhos, a expressão de sua face quando está só, as palavras que murmura enquanto sonha, até mesmo os movimentos característicos do seu corpo: tudo é minuciosamente analisado. Não apenas seus delitos efetivos, mas toda e qualquer excentricidade, por menor que seja, toda mudança de hábitos, todo maneirismo nervoso que indique a possibilidade de ser o sintoma de um conflito interno: nada a sem ser detectado. Ele não tem real liberdade de escolha sobre coisa alguma. Por outro lado, seus

atos não são regulamentados por lei nem por qualquer outro código de conduta claramente formulado. Na Oceania não existe lei. Pensamentos e atos que, caso descobertos, resultariam em morte certa, não são formalmente proibidos, e os infindáveis expurgos, prisões, torturas, detenções e vaporizações não são infligidos como castigo por crimes realmente cometidos, eles são tão somente a aniquilação de pessoas que poderiam, quem sabe, chegar a cometer um crime no futuro. O membro do Partido não só deve ter as opiniões certas, como os instintos certos. Muitas das crenças e atitudes dele exigidas não são nunca declaradas abertamente, e não poderiam ser analisadas com clareza sem desnudar as contradições inerentes ao Ingsoc. Se esse membro do Partido for uma pessoa naturalmente ortodoxa (BENEPENSANTE, em Novalíngua), em toda e qualquer circunstância saberá, sem precisar raciocinar, qual é a crença verdadeira e a emoção desejável. Em todo caso, um elaborado treinamento mental aplicado na infância, relacionado às palavras CRIMEPARAR, PRETOBRANCO e DUPLIPENSAMENTO em Novalíngua, o deixa sem desejo nem capacidade de pensar muito profundamente sobre qualquer assunto. Espera-se que um membro do Partido não tenha emoções pessoais nem lapsos de entusiasmo. Supõe-se que viva num frenesi ininterrupto de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de júbilo diante das vitórias e de autodepreciação diante do poder e da sabedoria do Partido. Os descontentamentos produzidos por sua vida despojada e sem grandes atrativos são deliberadamente voltados para o exterior e dissipados por artifícios como os Dois Minutos de Ódio, e as especulações que talvez pudessem induzir nele uma atitude cética ou rebelde são aniquiladas antes de vir à tona graças a sua disciplina interna, adquirida ainda na infância. O primeiro e mais simples estágio dessa disciplina, e pelo qual am até as crianças de tenra idade, chama-se CRIMEPARAR em Novalíngua. CRIMEPARAR é a faculdade de deter, de paralisar, como que por instinto, no limiar, todo e qualquer pensamento perigoso. Inclui a capacidade de não perceber analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao Ingsoc, e de se aborrecer ou enojar por qualquer encadeamento de pensamentos que possa tomar o caminho da heresia. CRIMEPARAR, em suma, significa cultivar uma estupidez protetora. Mas só a estupidez não basta. Pelo contrário, a ortodoxia, em seu sentido pleno, exige um controle tão completo do próprio processo mental quanto o do contorcionista sobre o próprio corpo. Em última instância, a sociedade oceânica está alicerçada na crença de que o Grande Irmão é onipotente

e o Partido infalível. Mas como na realidade nem o Grande Irmão é onipotente nem o Partido infalível, é preciso existir uma flexibilidade infatigável, todo o tempo, no tratamento dos fatos. A palavra-chave, no caso, é PRETOBRANCO. Ora, como tantas outras palavras em Novalíngua, ela possui dois sentidos mutuamente contraditórios. Quando aplicada a um adversário, refere-se ao hábito que tal adversário tem de afirmar desavergonhadamente que o preto é branco, mesmo estando em contradição com a obviedade dos fatos. Quando aplicada a um membro do Partido, refere-se a leal disposição de afirmar que o preto é branco sempre que a disciplina do Partido assim exigir. Mas, ao mesmo tempo, refere-se à capacidade de CRER que o preto é branco e, ainda mais, de SABER que o preto é branco, e de esquecer por completo que algum dia julgou o contrário. Isso exige uma alteração contínua do ado, possibilitada pelo sistema de pensamento que em realidade abrange tudo o mais, e que em Novalíngua é chamado de DUPLIPENSAMENTO. A alteração do ado é necessária por duas razões, uma das quais secundária e, por assim dizer, preventiva. A razão secundária é que o membro do Partido, tal como o proletário, tolera as condições atuais em parte por não possuir padrões de comparação. Ele deve ser isolado do ado, da mesma forma que deve ser isolado do estrangeiro, porque é necessário que creia que vive melhor que seus anteados, e que o nível médio de conforto material aumenta incessantemente. Entretanto, a razão mais importante para que se reajuste o ado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não significa apenas que sejam modificados discursos, estatísticas e registros de todo tipo para demonstrar que as previsões do Partido foram confirmadas em todos os casos. É que não se pode itir, jamais, nenhuma alteração na doutrina ou no alinhamento político. Porque mudar de opinião, ou mesmo de espectro político, é uma confissão de fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (de acordo com o caso) for o inimigo da vez, então é necessário que esse país sempre tenha sido o inimigo. E se os fatos dizem coisas diferentes, então se faz necessário alterá-los. Assim a história é continuamente reescrita. Essa falsificação cotidiana do ado, realizada pelo Ministério da Verdade, é tão necessária à estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor. A mutabilidade do ado é o princípio central da doutrina do Ingsoc. Afirmase que os fatos ados não têm existência objetiva, e sobrevivem tão somente em registros escritos e nas memórias humanas. O ado é tudo aquilo a

respeito do que há coincidência entre registros e memórias. E considerando que o Partido tem pleno controle de todos os registros e, da mesma forma, da mente de seus membros, conclui-se que o ado é aquilo que o Partido deseja que ele seja. Conclui-se também que embora o ado seja alterável, jamais foi alterado em um caso específico. Pois quando ele é reescrito na forma conveniente, a nova versão a a SER o ado, e nada diferente disso pode algum dia ter existido. Isso se aplica mesmo quando, como é frequente, o mesmo fato precisa ser profundamente alterado diversas vezes no mesmo ano. Em todas as ocasiões, o Partido detém a verdade absoluta, e fica evidente que o ado jamais poderia ter sido diferente do que aquilo que ou a ser. Veremos que o controle do ado depende acima de tudo do treino da memória. Não a de um ato mecânico garantir que todos os registros escritos estão de acordo com a ortodoxia atual. Mas também é necessário LEMBRAR que os fatos ocorreram da maneira desejada. E caso seja preciso reorganizar nossas memórias ou registros escritos, também será necessário ESQUECER que tudo isso foi feito. O modo como tal fenômeno se produz pode ser aprendido, como qualquer outra técnica mental. E, de fato, ele é aprendido pela maioria dos membros do Partido: certamente por todos aqueles que são, ao mesmo tempo, inteligentes e ortodoxos. Em Velhalíngua isso era chamado, com toda a franqueza, de “controle da realidade”. Em Novalíngua, chama-se DUPLIPENSAMENTO, embora o termo DUPLIPENSAMENTO também abarque muitas outras coisas. O DUPLIPENSAMENTO é a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e acreditar em ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; por conta disso, sabe que está manipulando a realidade; mas, graças ao exercício do DUPLIPENSAMENTO, ele também se convence de que a realidade não está sendo violada. Todo o processo precisa ser consciente, do contrário não seria conduzido com a precisão adequada, mas também precisa ser inconsciente, senão ele traria consigo um sentimento de falsidade e, dessa forma, de culpa. O DUPLIPENSAMENTO situa-se no coração do Ingsoc, uma vez que a ação essencial do Partido é se valer da fraude consciente ao mesmo tempo em que conserva a firmeza de propósito que anda lado a lado com a completa honestidade. Dizer mentiras deliberadamente, e nelas crer piamente; esquecer qualquer fato que tenha se tornado inconveniente, e depois, quando ele se tornar novamente necessário, retirá-lo do esquecimento somente pelo período exigido pelas circunstâncias; negar a existência da realidade objetiva e, ao mesmo

tempo, tomar conhecimento da realidade que foi negada – tudo isso é muito necessário, tudo isso é indispensável. Mesmo no uso da palavra DUPLIPENSAMENTO já é preciso praticar o DUPLIPENSAMENTO. Pois, ao usarmos a palavra, itimos que estamos manipulando a realidade; então, com uma nova ação de DUPLIPENSAR, apagamos esse conhecimento; e assim por diante, indefinidamente, com a mentira sempre um o à frente da verdade. Em última instância, foi por meio do DUPLIPENSAMENTO que o Partido foi capaz – e, até onde sabemos, continuará sendo por milhares de anos – de deter o curso da história. No ado, as oligarquias caíram do poder porque se fossilizaram ou amoleceram. Ou se tornaram estúpidas e arrogantes, deixando de se ajustar às novas circunstâncias, e foram derrubadas; ou se tornaram liberais e covardes, fazendo concessões quando deviam ter se valido apenas da força, e por isso acabaram sendo igualmente derrubadas. Em outras palavras, caíram por causa da consciência ou por causa da inconsciência. A grande obra do Partido é ter produzido um sistema de pensamento no qual ambas as condições podem coexistir. Sob nenhuma outra base intelectual o seu domínio poderia ser permanente. Para se governar, e continuar governando, é preciso ser capaz de deslocar o sentido da realidade. Porque o segredo da governança é mesclar a crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros ados. Nem é preciso dizer que os praticantes mais sutis do DUPLIPENSAMENTO são aqueles que inventaram o DUPLIPENSAMENTO, e como seus criadores, sabem que ele é um vasto sistema de trapaça mental. Em nossa sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que ocorre são também os que estão mais distantes de ver o mundo como ele realmente é. Em geral, quanto maior a compreensão, maior a ilusão; quanto maior a inteligência, menor a saúde mental. Uma clara ilustração disso é o fato da histeria de guerra aumentar de intensidade à medida que se sobe na escala social. Aqueles cuja atitude em relação à guerra é preponderantemente racional são os povos dominados dos territórios em disputa. Para eles a guerra não a de uma calamidade contínua que joga seus corpos de um lado para outro, como a água das marés. Para eles, não há a menor importância saber qual dos lados está vencendo. Percebem que uma alteração no poder significa tão somente que continuarão a desempenhar as mesmas tarefas de antes para novos senhores, que vão tratá-los exatamente como faziam os anteriores.

Os trabalhadores ligeiramente mais favorecidos, a quem chamamos “proletas”, só têm consciência da guerra de forma intermitente. Quando se faz necessário, são instigados e levados a frenesis de ódio e medo; no entanto, quando entregues a si mesmos, são capazes de esquecer, até mesmo por longos períodos, que a guerra ainda está sendo travada. É nas fileiras do Partido, e acima de tudo do Partido Interno, que se encontra o autêntico entusiasmo bélico. Ora, aqueles que sabem que é impossível conquistar o mundo são justamente os que creem mais firmemente em tal projeto. Esse amálgama de opostos tão particular – conhecimento com ignorância, cinismo com fanatismo – é um dos traços principais da sociedade oceânica. A ideologia oficial está impregnada de contradições, mesmo quando não há nenhuma justificativa prática para elas. Assim, o Partido rejeita e difama qualquer princípio originalmente defendido pelo movimento secularista, e no entanto o faz em nome do Socialismo. Prega um desdém pela classe trabalhadora de que não se viu exemplo nos últimos séculos, e todavia veste seus militantes com um uniforme que foi símbolo dos trabalhadores manuais – e que foi adotado precisamente por essa razão. Corrói sistematicamente a solidariedade da família, ao o que dá ao seu líder um nome que é um apelo direto ao sentimento de lealdade familiar. Mesmo os nomes dos quatro ministérios que nos governam trazem em si uma espécie de descaramento na inversão proposital dos fatos. O Ministério da Paz cuida das coisas da guerra; o Ministério da Verdade se ocupa da disseminação de mentiras; o Ministério do Amor pratica a tortura; e o Ministério da Fartura lida com a escassez de alimentos. Tais contradições não são acidentais, tampouco são resultado da mera hipocrisia: são exercícios deliberados de DUPLIPENSAMENTO. Pois é somente reconciliando contradições que se pode reter o poder indefinidamente. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso evitar para sempre o advento da igualdade humana – se quisermos que as Altas, como as chamamos, mantenham para sempre suas posições –, o estado mental predominante deve ser, necessariamente, o da insanidade controlada. Mas há outra questão que, até o momento, ainda não consideramos. Eis a questão: POR QUE se deve impedir o advento da igualdade humana? Suponhamos que os mecanismos do processo tenham sido descritos corretamente, por que realizar esse esforço monumental, tão minuciosamente calculado e planejado, para congelar a história num determinado ponto do tempo?

Aqui chegamos ao segredo central. Como vimos, a mística do Partido, e sobretudo do Partido Interno, depende do DUPLIPENSAMENTO. Mais fundo do que isso, porém, está o motivo original, o instinto jamais posto em dúvida, que primeiro levou à conquista do poder e ocasionou o DUPLIPENSAMENTO, a Polícia das Ideias, a guerra contínua e todo o restante da parafernália necessária. Essa razão na realidade consiste em...

Subitamente, Winston se deu conta do silêncio, assim como percebemos um novo ruído. Teve a impressão de que Julia já estava um tanto quieta há algum tempo. Estava deitada de lado, nua da cintura para cima, com o rosto apoiado na mão e uma mecha de cabelo castanho caído sobre os olhos. Seu peito subia e descia devagar e com regularidade.

“Julia!”

Nenhuma resposta.

“Julia, você está acordada?”

Nenhuma resposta. Julia dormia. Ele fechou o livro, colocou-o no chão com cuidado, deitou-se e puxou a colcha sobre os dois. Então, refletiu que ainda não tinha lido sobre o segredo final. Compreendia o COMO, mas ainda não sabia o POR QUÊ. O Capítulo I, assim como o Capítulo III, não lhe dissera nada que ele já não soubesse; havia apenas sistematizado o conhecimento que ele já possuía. Mas depois de ler aquilo tudo, tinha uma maior convicção de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era um sintoma de loucura. Havia a verdade, e também havia a mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade, mesmo contra o mundo todo.

Um raio amarelo de sol poente entrou em diagonal pela janela e veio pousar no travesseiro. Winston fechou os olhos. O sol no rosto e o corpo macio da garota, encostado ao seu, faziam surgir nele um sentimento intenso, sonolento e confiante. Estava em segurança, e tudo corria bem. Adormeceu murmurando “Sanidade mental não é uma questão de estatística”, com o sentimento de que tais palavras continham uma profunda sabedoria.

10.

Quando ele acordou, foi com a sensação de ter dormido por um longo tempo, no entanto uma olhadela para o antigo relógio lhe mostrou que eram apenas oito e meia da noite.

Foi somente uma fantasia sem esperança. Ela ou como um dia de abril, Mas bastou um olhar e uma palavra, e os sonhos se agitaram! Ah! Eles roubaram meu coração gentil!

Ao que parece a canção cafona continuava fazendo sucesso. Ainda era ouvida em toda parte. Sobrevivera à Canção do Ódio. Julia acordou com o barulho, espreguiçou-se deleitosamente e pulou da cama.

“Estou com fome”, disse. “Vamos fazer um pouco mais de café. Que bosta! O fogareiro apagou e a água está fria.” Apanhou o fogareiro e o chacoalhou. “Está sem querosene.”

“O velho Charrington deve ter um pouco para nos emprestar.”

“O engraçado é que eu tinha certeza que estava cheio. Bem, vou me vestir”, acrescentou ela. “Parece que o tempo esfriou.”

Winston também se levantou e foi se vestir. A voz lá fora continuava cantando, incansável:

Eles dizem que o tempo tudo cura, Dizem que sempre podemos esquecer; Mas os risos e lágrimas ao longo dos anos Ainda fazem meu coração doer!

Afivelando o cinto do macacão, ele foi até à janela. O sol aparentemente havia se escondido atrás das casas; seus raios já não alcançavam o quintal. Os paralelepípedos estavam molhados, como se tivessem sido lavados, e ele teve a impressão de que o céu também tinha sido lavado, tão fresco e claro era o azul entre as coifas das chaminés. Incansável, a mulher marchava de um lado para o outro, entupindo e desentupindo a boca com os pregadores, cantando e silenciando, pendurando fraldas e mais fraldas. Ele se perguntou se a mulher era lavadeira profissional ou apenas a escrava de vinte ou trinta netos. Julia veio ao seu encontro. Juntos, ambos contemplavam, com um certo fascínio, a figura robusta lá embaixo. Ao observá-la em sua pose característica, com os braços grossos erguidos para alcançar o varal, as nádegas protuberantes lembrando as ancas de uma égua, Winston pela primeira vez se deu conta de que a mulher era bonita. Até então, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o corpo de uma mulher de seus cinquenta anos, esticado a monstruosas dimensões pelos partos sucessivos, e depois enrijecida e calejada pelo trabalho, até ficar grosseira tal qual um nabo já bem maduro. Mas era belo, de fato era belo, pensou ele, e por que não haveria de ser? O corpo sólido, sem contornos, como um bloco de granito, com sua pele vermelha e áspera, estava para o corpo de Julia como os frutos das roseiras bravas estavam para as rosas. Mas por que a fruta deveria ser considerada inferior à flor?

“Ela é bonita”, ele murmurou.

“Tem no mínimo um metro de quadril”, disse Julia.

“É o seu estilo de beleza”, respondeu Winston.

Ele ou o braço em torno da cintura esguia de Julia, enlaçando-a sem dificuldade. Do quadril ao joelho, o corpo dela estava recostado no seu. Seus corpos não iriam gerar nenhuma criança. Era algo que eles jamais poderiam fazer. Só poderiam transmitir o segredo de boca em boca, de mente para mente. A mulher lá embaixo não tinha mente, tinha somente dois braços fortes, um coração amoroso e um ventre fértil. Quantos filhos teria gerado? Uns quinze, tranquilamente. Ela teve o seu tempo de florescimento, quiçá um ano, em que desabrochou como uma rosa selvagem, depois inchou de repente, como uma fruta fertilizada, e tornou-se compacta, vermelha e áspera; daí em diante sua vida ou a ser lavar, esfregar, remendar, cozinhar, varrer, lustrar, remendar, esfregar, lavar – primeiro para os filhos, depois para os netos, por trinta anos, sem interrupção. E no fim, ainda cantava. A reverência mística que Winston sentia por ela se mesclava, de certo modo, com o aspecto do céu claro e sem nuvens, dilatando-se por trás das chaminés, alcançando distâncias intermináveis. Era curioso pensar que aquele céu era o mesmo para todos, tanto na Eurásia como na Lestásia e ali, na Oceania. E o povo que vivia sob aquele céu também era muito parecido – por toda parte, em todo o mundo, centenas de milhares de milhões de pessoas exatamente como aquela mulher, pessoas que ignoravam a existência umas das outras, isoladas por muros de ódio e mentiras, e ainda assim, praticamente iguais – pessoas que não tinham aprendido a pensar, mas que traziam no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia faria o mundo virar de cabeça para baixo. Se há alguma esperança, ela está nos proletas! Mesmo sem ter lido O LIVRO até o fim, Winston sabia que aquela devia ser a mensagem definitiva de Goldstein. O futuro pertencia aos proletas. E por acaso ele poderia ter certeza de que, quando chegasse o momento deles, o mundo erguido pelos proletas não seria para ele, Winston Smith, algo tão hostil quanto o mundo do Partido? Sim, poderia, pois tal mundo seria, no mínimo, um lugar

mentalmente são. Onde há igualdade, pode haver sanidade. Mais cedo ou mais tarde aconteceria: a força se transformaria em consciência. Os proletas eram imortais; não havia como duvidar disso diante daquela figura destemida no quintal. Por fim seu despertar chegaria. E até lá, nem que levasse mil anos, eles sobreviveriam a todas as adversidades, como arinhos, transmitindo de corpo para corpo a vitalidade que o Partido não compartilhava, tampouco era capaz de aniquilar.

“Você se lembra”, disse ele, “do tordo que cantou para nós naquele primeiro dia, na beirada do bosque?”

“Não estava cantando para nós”, disse Julia. “Estava cantando para se alegrar. Não, nem isso. Estava apenas cantando.”

Os arinhos cantavam, os proletas cantavam, o Partido não cantava. No mundo todo, em Londres e em Nova York, na África e no Brasil e nas regiões misteriosas e proibidas que residiam além das fronteiras, nas ruas de Paris e Berlim, nas aldeias da interminável planície russa, nos bazares da China e do Japão – em toda parte a mesma figura sólida e indomável podia ser vista, que o trabalho e os partos sucessivos haviam tornado monstruosa; sempre na labuta, do berço até a morte, e mesmo assim, sempre cantando. Daqueles corpos robustos viria algum dia uma raça de seres conscientes. O futuro pertencia a eles. Mas era possível participar desse futuro mantendo vivo o espírito, assim como eles mantinham vivo o corpo, e ando adiante a doutrina secreta de que dois mais dois são quatro.

“Nós somos os mortos”, disse ele.

“Nós somos os mortos”, repetiu Julia, obedientemente.

“Vocês são os mortos”, disse uma voz de ferro, atrás deles.

Eles saltaram, cada um para um lado. As estranhas de Winston pareciam ter congelado. Percebia o branco se espalhando em torno da íris dos olhos de Julia, cuja face assumira um tom amarelo leitoso. As manchas de ruge, ainda visíveis no rosto, destacavam-se vividamente, como se já não estivessem em contato com a pele que havia por debaixo.

“Vocês são os mortos”, repetiu a voz de ferro.

“Veio detrás do quadro”, sussurrou Julia.

“Viemos detrás do quadro”, disse a voz. “Fiquem exatamente onde estão. Não façam nenhum movimento enquanto não forem ordenados.”

Estava começando, enfim estava começando! Não podiam fazer nada além de fitar os olhos um do outro. Correr, fugir dali antes que fosse tarde demais – tal tipo de pensamento sequer lhes ou pela mente. Era impensável desobedecer à voz de ferro que emergia da parede. Ouviram um estalido, como se uma lingueta tivesse sido destravada, e na sequência um tilintar de vidro se despedaçando. O quadro caíra ao chão, revelando a teletela atrás dele.

“Agora eles podem nos ver”, disse Julia.

“Agora podemos vê-los”, disse a voz. “Fiquem no meio do quarto, de costas um

para o outro. Coloquem as mãos atrás da cabeça. Não se toquem.”

Eles não se tocavam, e no entanto Winston teve a impressão de sentir o tremor no corpo de Julia. Ou talvez fosse no seu próprio corpo. Mal conseguia evitar que os dentes batessem, mas seus joelhos estavam fora de controle. Ouviram o som de botas marchando no andar de baixo, dentro e fora da casa. O pátio parecia estar lotado de homens. Alguma coisa estava sendo arrastada pelas lajes. O canto da mulher havia encerrado abruptamente. Seguiu-se um estrondo metálico prolongado, como se a tina de roupa tivesse sido arremessada ao outro canto do pátio. Depois, uma algazarra de gritos furiosos, que cessaram com um berro de dor.

“A casa está cercada”, disse Winston.

“A casa está cercada”, disse a voz.

Winston ainda pôde ouvir Julia trincando os dentes.

“Acho que é melhor a gente se despedir”, disse ela.

“É melhor se despedirem”, disse a voz. E em seguida outra voz, completamente diferente, fina, educada, que Winston teve a impressão de já ter ouvido antes, interveio: “E por falar nisso, já que tratamos deste assunto: ‘Aí vem a luz da vela, vá para cama com ela. Aí vem um machado, cuidado para não perder a cabeça com um corte bem dado!’”

Algo caiu ruidosamente sobre a cama, atrás de Winston. A ponta de uma escada foi metida pela janela e havia destroçado a esquadria. Alguém vinha entrando por ali. Um tropel de botas subia a escada. Logo o quarto estava repleto de homens maciços, de uniforme preto, com botas ferradas nos pés e cassetete na mão. O tremelique de Winston já havia cessado. Ele mal mexia os olhos. Somente uma coisa lhe importava naquele momento: ficar muito quieto, de preferência imóvel, para não lhes dar nenhum pretexto para ser espancado! Um homem com mandíbula lisa, estilo pugilista, e uma boca que não ava de um traço, parou na sua frente, balançando o cassetete entre o polegar e o indicador, pensativo. Winston o fitou nos olhos. Era quase inável a sensação de nudez, as mãos na nuca, o rosto e o corpo inteiramente expostos. O homem mostrou a ponta de sua língua branca, umedeceu o lugar onde deveriam estar os lábios, e depois seguiu em frente. Houve mais um estalido. Alguém pegara o peso de papel de vidro que estava sobre a mesa e o arremessara na lareira de pedra – estilhaçou-se inteiro. O fragmento de coral, uma partícula rosa e ondulada que lembrava um confeito de bolo, rolou pelo tapete. Que pequenino, pensou Winston, como sempre fora tão pequenino! Um suspiro e um baque soaram às suas costas, e ele recebeu um chute violento no tornozelo, de modo que quase perdeu o equilíbrio. Um dos homens deu um murro na altura do plexo solar de Julia, fazendo-a dobrar-se ao meio como uma daquelas réguas de bolso. Ela rolava pelo chão, buscando o ar. Winston não se arriscava a virar a cabeça sequer um milímetro, porém por vezes o rosto lívido e ofegante da garota entrava em seu campo de visão. Mesmo apavorado, tinha a impressão de poder sentir a dor no seu próprio corpo, a dor terrível que, apesar de tudo, era menos intensa que a luta de Julia para recuperar o fôlego. Ele sabia como era: a dor atroz, agoniante, que estava lá o tempo todo, mas que ainda não podia ser sentida plenamente porque antes de tudo era preciso voltar a respirar. Nesse instante dois dos homens a ergueram pelos joelhos e pelos ombros e a levaram para fora do quarto, como se fosse um saco. Winston ainda viu de relance o rosto de Julia, voltado para baixo, amarelo e contorcido, com os olhos fechados e ainda com as manchas de ruge em cada bochecha; e aquilo foi a última coisa que ele viu dela. Continuou totalmente imóvel. Até aquele momento, não tinha levado nenhum soco. Então, pensamentos que surgiram por si mesmos, mas que pareciam inteiramente desinteressantes, começaram a transitar em sua mente. Eles também

teriam apanhado o sr. Charrington? Que teria sido da lavadeira no pátio lá embaixo? Percebeu que necessitava urinar com urgência, e com isso ficou ligeiramente surpreso, uma vez que já tinha ido ao banheiro há apenas duas ou três horas. Observou que o velho relógio da lareira marcava nove horas. Mas estava tão claro. Ora, a luz já não devia ter declinado, às vinte e uma horas de uma noite de agosto? Seria possível que ele e Julia tivessem se enganado sobre a hora? Que tivessem dormido pela noite afora e imaginado que eram vinte e trinta quando na realidade já eram oito e meia da manhã seguinte? Mas decidiu abandonar aquele raciocínio: simplesmente não era algo interessante. Novos os, mais ligeiros, foram ouvidos na entrada. O sr. Charrington entrou no quarto. De súbito, o comportamento dos homens de uniforme preto tornou-se mais cortês. Algo também tinha se modificado na aparência do sr. Charrington. Seu olhar se voltou para os fragmentos do peso de papel.

“Recolham esses estilhaços”, disse, num tom ríspido.

Um dos homens se abaixou e começou a catar os pedacinhos de vidro. O sotaque londrino tinha desvanecido por inteiro; Winston de repente se deu conta que aquela era a mesma voz que ouvira, há poucos minutos, pela teletela. O sr. Charrington ainda usava o paletó de veludo velho, mas o cabelo, antes inteiramente grisalho, tinha se tornado preto. Além disso, já não usava mais óculos. Dirigiu a Winston uma olhar rápido e severo, como que verificando sua identidade, e depois não voltou a lhe dedicar nenhuma atenção. Ainda era reconhecível, mas já não era a mesma pessoa. O corpo tinha se endireitado, de modo que agora ele parecia mais alto. A face tinha ado por minúsculas modificações que, no entanto, haviam operado uma transformação completa. As sobrancelhas pretas estavam menos bastas, as rugas tinham desaparecido; todas as linhas do rosto pareciam ter-se alterado; até seu nariz parecia agora mais curto. Era a face alerta e fria de um homem de seus trinta e cinco anos. E assim, ocorreu a Winston que pela primeira vez em sua vida ele tinha a consciência de estar frente a frente com um membro da Polícia do Pensamento.

Parte 3

1.

Ele não sabia onde estava. Era de se presumir que fosse o Ministério de Amor, mas não dava para ter certeza. Estava numa cela de teto alto, sem janelas, com paredes de porcelana branca e reluzente. Lâmpadas ocultas inundavam o ambiente de luz fria, e havia um zumbido baixinho e constante, que ele achava que tinha alguma coisa a ver com o sistema de ar. Um banco, ou prateleira, de largura apenas suficiente para uma pessoa se sentar, corria ao longo da parede, tendo a porta como única interrupção num dos lados e, na parede oposta, um vaso sanitário de madeira sem assento. Havia quatro teletelas, uma em cada parede. Winston sentia uma dor surda na barriga. Sofria com ela desde que o haviam jogado no caminhão fechado e levado embora. Mas também sentia fome, uma fome horrenda, que o atormentava. Talvez já tivessem se ado vinte e quatro horas desde que tinha se alimentado pela última vez, quiçá trinta e seis. Ainda não sabia, provavelmente jamais saberia, se tinha sido preso pela manhã ou a noite. Em todo caso, desde que fora preso, ainda não havia sido alimentado. Estava sentado, tão imóvel quanto possível, na bancada estreita, com as mãos sobre os joelhos. Já tinha aprendido a se sentar quieto e imóvel. Se fizesse movimentos inesperados, gritavam pelas teletelas. Mas a fome crescia. Sua maior ambição naquele momento era um pedaço de pão. Surgiu em sua mente uma vaga esperança de que restavam algumas migalhas no bolso de seu macacão. Era até possível – tinha essa sensação porque sentia de vez em quando que alguma coisa fazia cócegas em sua perna – que tivesse um bom pedaço de casca. Enfim, a tentação venceu o medo, e ele enfiou a mão no bolso.

“Smith!”, gritou uma voz pela teletela. “6079 Smith W.! Mãos fora dos bolsos dentro da cela!”

Voltou a ficar imóvel, com as mãos novamente acomodadas sobre os joelhos.

Antes de ter sido levado até ali, haviam-no conduzido a outro lugar, que devia ser uma espécie de prisão comum, ou um depósito temporário usado pelas patrulhas. Não sabia quanto tempo ficou nesse outro ambiente; pelo menos algumas horas, mas sem relógio e sem luz do sol era bem difícil calcular a agem do tempo. Era um lugar barulhento e fedido. Tinham-no jogado numa cela semelhante à que estava agora, mas imunda, e por vezes lotada, com até dez ou quinze pessoas de uma vez. A maioria era de criminosos comuns, no entanto também havia alguns presos políticos. Ele havia se sentado em silêncio junto à parede, espremido por corpos sujos, demasiadamente afetado pelo medo e pela dor no estômago para sentir maior curiosidade pelo que o cercava, mas ainda assim percebendo a espantosa diferença entre a atitude dos prisioneiros do Partido e os demais. Os do Partido estavam sempre em silêncio a aterrorizados, ao o que os criminosos comuns pareciam não dar a mínima para ninguém. Xingavam os guardas aos berros, resistiam ferozmente quando seus pertences eram confiscados, escreviam palavras obscenas pelo chão, comiam alimentos que retiravam de esconderijos misteriosos na roupa e inclusive gritavam mais alto que a teletela quando ela tentava restabelecer a ordem. Por outro lado, alguns pareciam ter boas relações com os guardas, a quem chamavam por apelidos, e tentavam subornar ando cigarros pela pequena abertura da porta. Os guardas, por sua vez, também tratavam os criminosos comuns com certo respeito, mesmo quando eram obrigados a se valer da brutalidade. Falava-se muito dos campos de trabalhos forçados, para os quais a maioria dos prisioneiros esperava ser enviada. Pelo que Winston pôde entender, os campos “não eram problema”, desde que você tivesse bons contatos e conhecesse as manhas. Neles havia suborno, favoritismo e extorsão de todo tipo, assim como homossexualidade e prostituição – havia até mesmo álcool clandestino, destilado de batatas. Os cargos de confiança eram dados apenas aos criminosos comuns, em especial os líderes de gangue e assassinos, que formavam uma espécie de aristocracia. Todo o trabalho sujo era feito pelos presos políticos. Havia um contínuo entra e sai de prisioneiros de todo tipo: traficantes de droga, ladrões, bandidos, contrabandistas, bêbados, prostitutas etc. Alguns bêbados eram tão violentos que os companheiros de cela tinham de se juntar para dominá-los. Uma mulher imensa e decrépita, de seus sessenta anos, com enormes peitos caídos e cachos espessos de cabelo branco desfeitos ao longo das brigas em que se metia, foi trazida, aos berros e distribuindo pontapés, por quatro guardas que a seguravam pelos braços e pernas. Arrancaram as botas com que ela tentava atingi-los e jogaram-na bem no colo de Winston, quase

quebrando os ossos da sua perna. A mulher se endireitou, chamando-os aos berros de “filhos da puta!”. Depois, percebendo que estava sentada em alguma coisa incômoda, escorregou das pernas de Winston para o banco.

“Desculpa mesmo, querido”, ela disse. “Eu nunca teria sentado assim em cima de você, mas aqueles sacanas me empurraram. Eles não sabem como tratar uma dama, sabem?” Fez uma pausa, deu umas batidas no peito e soltou um arroto. “Desculpa”, voltou a dizer. “É que não estou me sentindo bem.”

Em seguida, se inclinou para frente e vomitou com tudo no chão.

“Já estou melhorando”, disse, voltando a se endireitar, com os olhos fechados. “Nunca segure a vontade, é o que eu digo. Melhor soltar tudo pra fora enquanto está fresco no estômago.”

Ela se acalmou e, ao olhar novamente para Winston, deu a impressão de ter simpatizado com ele imediatamente. ou um braço enorme em volta dos seus ombros e o puxou para bem junto dela, fungando em seu rosto com um bafo que era uma mistura de vômito e cerveja.

“Qual é o seu nome, querido?”

“Smith”, disse Winston.

“Smith?”, disse a mulher. “Que engraçado, meu nome também tem Smith. Puxa vida”, acrescentou, sentimental, “eu podia ser sua mãe!”

Ela podia mesmo ser sua mãe, ele pensou. Tinha mais ou menos a idade e o corpo condizentes com o papel, e era provável que as pessoas mudassem um tanto depois de ar vinte anos num campo de trabalhos forçados. Ninguém mais lhe dirigiu a palavra. Surpreendentemente, os criminosos comuns nem tomavam conhecimento dos políticos, a quem chamavam de “politiqueiros”, com uma espécie de desdém inteiramente desinteressado. Os prisioneiros do Partido pareciam atemorizados demais para dirigirem a palavra a quem quer que fosse, sobretudo aos próprios companheiros. Só uma vez, quando duas mulheres pertencentes ao Partido estavam sentadas no banco apertadas uma contra a outra, ele pôde ouvir no meio da barulheira geral umas palavras sussurradas com pressa; e em particular uma referência, que não compreendeu, a algo chamado “sala um zero um”. Havia talvez duas ou três horas que o tinham jogado ali. A dor surda na barriga não ia embora, mas às vezes melhorava ou então piorava, e seus pensamentos se expandiam ou encolhiam no mesmo ritmo. Quando a dor piorava, ele pensava exclusivamente nela, e na vontade de comer. Quando melhorava, ele era tomado pelo pânico. Havia momentos em que era capaz de prever o que lhe aconteceria com tamanha nitidez que seu coração disparava e sua respiração praticamente parava. Era capaz de sentir as pancadas dos cassetetes nos cotovelos e as botas ferradas nas canelas. Imaginava-se rastejando pelo chão, implorando piedade com os dentes quebrados. Mal pensava em Julia. Não podia fixar a mente nela. Amava-a e não a trairia; mas isso era tão somente um fato de que tinha ciência, da mesma forma que estava ciente das leis da matemática. Já não se permitia sentir amor por ela, e quase não tinha vontade de saber o que lhe estava acontecendo. Pensava mais frequentemente em O’Brien, com uma centelha de esperança. O’Brien talvez já soubesse que ele tinha sido preso. A Irmandade, ele tinha dito, jamais tentava salvar seus membros da prisão. Mas havia a questão de gilete. Se pudessem, lhe enviariam a gilete. Talvez se assem uns cinco segundos antes que o guarda tivesse tempo de entrar correndo na cela. A gilete morderia sua carne com uma espécie de frieza ardente, e os dedos que a segurassem seriam cortados até o osso. Ora, era o seu corpo doente, que se encolhia trêmulo ante a menor dor, que evocava aquilo tudo. Na verdade ele não estava seguro de que conseguiria usar a gilete, ainda que surgisse tal oportunidade. Era mais natural simplesmente

existir, de um momento para o outro, aceitando mais dez minutos de vida, mesmo estando certo de que ao final daquilo tudo haveria tortura. Às vezes, tentava calcular o número de blocos de porcelana nas paredes da cela. Deveria ser fácil, mas sempre perdia a conta num ou noutro ponto. Na maior parte das vezes perguntava a si mesmo onde estaria, e que horas seriam. Em dado momento teve certeza de que era pleno dia lá fora, e no momento seguinte uma certeza equivalente de que reinava a noite mais escura. Sabia, como que por instinto, que naquele lugar as luzes jamais se apagavam. Era o lugar onde não havia trevas: agora compreendia por que O’Brien parecia reconhecer a referência. No Ministério do Amor não havia janelas. Sua cela podia estar bem no meio do edifício, ou junto a uma parede externa; podia ser dez andares abaixo do solo, ou trinta acima dele. Viajava mentalmente de um lugar para outro, tentando determinar a partir da sensação de seu corpo se estava num andar alto ou enterrado no subsolo. Ouviu-se um ruído de botas marchando do lado de fora. A porta de aço se abriu com um estrondo. Um jovem oficial, uma figura impecável de uniforme preto que cintilava por inteiro em seus couros polidos, e cujo rosto magro mais parecia uma máscara de cera, entrou porta adentro. Fez um gesto aos guardas, ordenando que trouxessem o preso. Então, o poeta Ampleforth foi jogado dentro da cela, e a porta se fechou com novo estrondo. Ampleforth fez um ou dois movimentos incertos, de um lado para outro, como se pensasse haver outra porta de saída; depois começou a perambular pela cela. Ainda não tinha percebido a presença de Winston. Seu olhar perturbado examinava a parede, mais ou menos um metro acima da cabeça de Winston. Não tinha sapatos, e dedos grandes e sujos escapavam pelos buracos das meias. Também devia fazer vários dias que não fazia a barba. Uma barba rala cobria seu rosto, dando-lhe um ar de rufião que não combinava em nada com seu físico balofo e seus movimentos nervosos. Winston se permitiu abandonar sua letargia. Precisava falar com Ampleforth, mesmo correndo o risco de ouvir mais um berro da teletela. Era até mesmo possível que Ampleforth fosse o portador da gilete.

“Ampleforth”, ele chamou.

Não houve nenhuma manifestação vinda de teletela. Ampleforth parou onde estava, um tanto assustado. Aos poucos, seus olhos conseguiram focalizar Winston.

“Ah, Smith!”, disse. “Você também!”

“Por que você veio parar aqui?”

“Bem, para te dizer a verdade...” Ampleforth sentou-se desajeitadamente no banco bem à frente de Winston. “Só há um delito, não é mesmo?”

“E você o cometeu?”

“Aparentemente sim, cometi.”

Levou a mão à testa e apertou as têmporas por um momento, como se tentasse se lembrar de algo.

“Essas coisas acontecem”, começou a falar, de forma vaga. “Consegui me lembrar de uma ocasião... um caso possível. Foi, sem dúvida, uma indiscrição. Estávamos preparando uma edição definitiva dos poemas de Kipling. Deixei que a palavra ‘Deus’ ficasse no final de um verso. Não pude evitar!”, acrescentou, quase indignado, erguendo o olhar para Winston. “Era impossível mudar aquele verso. A questão toda estava na rima: só existem umas doze palavras em todo o nosso idioma que casariam com aquela rima. Eu ei dias quebrando a cabeça

para tentar encontrar, mas simplesmente NÃO HAVIA outra palavra que servisse.” [Nota do Tradutor: no original a rima seria entre God (Deus) e rod (vara, bastão); de fato há poucas palavras terminadas em “od” no idioma inglês]

Então, a expressão em sua face se alterou. Sumiu todo o desgosto, e por um momento ele pareceu quase satisfeito. Uma espécie de calor intelectual, a alegria do pedante que fez um achado inútil brilhou através de seu cabelo sujo e ralo.

“Por acaso já lhe ocorreu que toda a história da poesia inglesa foi determinada pelo fato do nosso idioma carecer de rimas?”

De fato, não, aquele pensamento específico jamais tinha ado pela mente de Winston. Aliás, diante das circunstâncias, ele tampouco lhe pareceu algo lá muito importante ou interessante. Resolveu mudar de assunto:

“Você sabe que horas são?”

Ampleforth voltou a encarar Winston com ar de espanto. “Ora, eu nem tinha pensando nisso. Eles me prenderam... talvez há uns dois dias, quem sabe três.” Seus olhos rondaram as paredes, como se ainda tivesse a esperança de encontrar uma janela em algum canto. “Não há diferença entre o dia e a noite nesse lugar. Não sei como poderíamos calcular o tempo.”

Eles prosseguiram numa conversa sem propósito definido por mais alguns minutos e então, sem razão aparente, um grito da teletela mandou que ficassem calados. Ampleforth, que era grande demais para sentar-se com algum conforto naquele banco estreito, a todo momento mudava de posição, segurando com as mãos ossudas ora um joelho, ora outro. A teletela berrou novamente, ordenando

que ele ficasse quieto no lugar. Então, algum tempo se ou. Vinte minutos, uma hora – era difícil saber. Outra vez ouviu-se o som de botas lá fora. As entranhas de Winston se contraíram. Logo, muito em breve, quiçá dentro de cinco minutos, quiçá naquele exato instante, um ruído de botas traria a notícia de que a sua hora havia chegado. A porta se abriu. O jovem de expressão fria adentrou a cela. Com um breve aceno, apontou para Ampleforth.

“Sala 101”, disse.

Ampleforth saiu marchando desajeitado entre os guardas, com a fisionomia vagamente perturbada, mas sem entender o que se ava. Então transcorreu um tempo que pareceu bem longo. A dor de estômago de Winston resolveu voltar. Sua mente insistia em dar voltas em torno do mesmo lugar, como uma bola que cai sempre nos mesmos buracos. Ele pensava tão somente em seis coisas: na dor de estômago, num pedaço de pão, no sengue e nos gritos, em O’Brien, em Julia e, por fim, na gilete. Sentiu um novo espasmo nas entranhas. As botas ferradas se aproximavam novamente. Quando a porta se abriu, a onda de ar que ela criou fez um cheiro forte de suor frio invadir a cela. Parsons entrou. Vestia uma bermuda cáqui e uma camisa esporte. Desta vez Winston ficou tão assombrado que se esqueceu brevemente das suas próprias mazelas.

“VOCÊ aqui?!”, exclamou.

Parsons lançou a Winston um olhar onde não havia nem interesse nem surpresa, somente aflição. Começou a andar nervosamente de um lado para o outro, evidenciando que era incapaz de permanecer imóvel. Cada vez que estendia os joelhos rechonchudos, dava para ver que eles tremiam. Seus olhos esbugalhados,

fixos, mostravam que não conseguia deixar de fitar algo a média distância.

“Por que está aqui?”, quis saber Winston.

“Pensamento-crime!”, disse Parsons, quase soluçando. O tom de sua voz implicava ao mesmo tempo a completa issão de culpa e uma espécie de horror incrédulo de que tal palavra pudesse mesmo ser aplicada a ele. Parou na frente de Winston e começou a dirigir-lhe apelos ansiosos: “Você não acha que vão me fuzilar, certo meu velho? Não devem fuzilar você se na realidade não fez nada, apenas teve lá seus pensamentos, que são impossíveis de controlar! Sei que eles são justos. Ah sim, tenho certeza disso! Conhecem minha ficha, ou não conhecem? Ora, VOCÊ sabe que tipo de sujeito eu era. Um cara legal, ao meu estilo. Não muito inteligente, por certo, mas sempre tive boa vontade. Fazia tudo o que podia pelo Partido, não fazia? Será que me livro com uns cinco anos de pena? Ou uns dez? Um cara como eu poderia ser muito útil num campo de trabalhos forçados. Será mesmo que vão me matar por ter saído da linha uma vez só?”

“Você é culpado?”

“Sou, claro que sou!”, gritou Parsons, dirigindo um olhar servil em direção à teletela. “Você acha que o Partido prenderia um inocente?” A cara de sapo se aquietou, até adquiriu um leve ar de hipocrisia. “Pensamento-crime é uma coisa horrível, meu velho”, afirmou, como se sentenciasse a si mesmo. “É um inferno, pode te dominar sem você se dar conta. Sabe como ele me pegou? Enquanto eu dormia! É verdade: estava lá trabalhando duro, tentando fazer a minha parte – nunca imaginei que pudesse haver alguma coisa negativa em minha mente. E aí comecei a falar dormindo. Você sabe o que eles me ouviram dizer?”

Ele começou a falar baixinho, como alguém que se vê obrigado por ordens

médicas a pronunciar uma obscenidade:

“‘Abaixo o Grande Irmão!’ Sim, foi o que eu disse! E disse muitas vezes, ao que parece. Cá entre nós, meu velho, ainda bem que eles me pegaram antes que a coisa ficasse feia. Sabe o que eu vou dizer a eles quando estiver no tribunal? ‘Obrigado’, eu direi, ‘obrigado por me salvarem antes que fosse tarde demais.’”

“Quem te denunciou?”, Winston ficou curioso.

“Foi minha filhinha”, respondeu Parsons, com uma mescla de orgulho e melancolia. “Ela escutou pelo buraco da fechadura. Ouviu tudo o que eu estava dizendo e no dia seguinte contou à patrulha. Muito sabida para uma guria de sete anos, hein? Não me queixo dela. Na verdade tenho orgulho. No fim das contas, ela mostrou que teve uma boa educação em casa.”

Em seguida, deu mais alguns os para um lado e para outro, olhando ansiosamente para o vaso sanitário. De súbito, arriou a bermuda.

“Desculpe, meu velho”, ele disse. “Não aguento mais. É por conta dessa espera toda.”

Encaixou o traseiro volumoso na privada. Winston cobriu o rosto com as mãos.

“Smith!”, gritou a voz da teletela. “6079 Smith W.! Descubra o rosto. Sem rostos cobertos dentro da cela.”

Winston descobriu o rosto. Parsons usou a privada de forma ruidosa e abundante. Em seguida descobriram que a descarga estava com defeito, e um fedor abominável preencheu a cela por longas horas. Parsons foi removido. Muitos presos chegaram e partiram, misteriosamente. Uma presa soube que seria encaminhada à “Sala 101”; Winston percebeu que ela encolheu o corpo e mudou de cor quando tomou conhecimento da notícia. Chegou um momento em que, se ele tivesse sido levado para aquela cela pela manhã, já seria tardinha; ou, se tivesse sido levado à tarde, então seria meianoite. Havia seis presos na cela, dentre homens e mulheres. Todos estavam sentados, calados e imóveis. Na frente de Winston estava um homem sem queixo e dentuço que mais parecia um grande e inofensivo roedor. Suas bochechas gordas e flácidas pareciam guardar comida, e os olhos cinza-claros se aventuravam, timidamente, de rosto em rosto, e logo se desviavam ao cruzar os olhos de outra pessoa. A porta se abriu e surgiu outro prisioneiro cujo aspecto deixou Winston arrepiado. Era um homem comum, de aparência ordinária, que poderia muito bem ser um engenheiro ou algum tipo de técnico. Mas o que de fato causava espanto era a magreza de seu rosto. Chegava a lembrar uma caveira ambulante. Devido à magreza, sua boca e seus olhos pareciam desproporcionalmente grandes, sendo que seu olhar parecia estar preenchido de um ódio assassino, implacável, de alguém ou de alguma coisa. O homem se sentou no banco, não muito longe de Winston. Winston não voltou a lhe dirigir o olhar, mas aquele rosto atormentado, morto-vivo, permaneceu muito nítido em sua mente, como se estivesse bem na sua frente. De repente se deu conta de qual era o problema. O homem simplesmente estava morrendo de fome. Aquela mesma ideia deve ter ocorrido quase simultaneamente a todos que já se encontravam na cela. Houve uma leve agitação ao longo do banco. O olhar do homem sem queixo se fixava com certa frequência naquela face esquelética, mas ele logo desviava os olhos, envergonhado – no entanto, em seguida eles focavam novamente a mesma figura, como se ela fosse irresistível. Em dado momento, ele começou a se agitar no acento. Por fim se levantou, atravessou a cela vacilante, enfiou a mão no bolso do macacão e, com ar constrangido, estendeu um naco de pão sujo à caveira ambulante.

“Bumstead!”, rugiu a voz da teletela. “2713 Bumstead J.! Solte no chão esse pedaço de pão!”

O homem sem queixo largou o pão.

“Fique de pé onde está”, ordenou a voz. “Virado para a porta. Sem qualquer movimento.”

O homem sem queixo obedeceu. As grandes bochechas flácidas tremiam descontroladamente. A porta se abriu com um estrondo. O jovem oficial entrou e deu um o para o lado, dando espaço para a entrada de outro guarda, baixo a atarracado, com braços e ombros imensos. Posicionou-se à frente do homem sem queixo e, ao sinal do jovem oficial, acertou um baita de um soco, se valendo de toda a sua força, bem em cheio na boca do coitado. A força foi tamanha que o sujeito pareceu ter voado do chão. De fato, seu corpo foi arremessado para o outro lado da cela, indo despencar junto à base do vaso sanitário. Por um momento ficou lá caído, atordoado, com um sangue escuro escorrendo da boca e do nariz. Ouviu-se um gemido muito débil, praticamente inconsciente. Em seguida ele rolou e ficou de quatro, se apoiando como podia nas mãos e nos joelhos. Então, numa torrente de sangue e saliva, as duas metades de uma dentadura despencaram da sua boca. Os presos permaneceram todos sentados, tão imóveis quanto possível, com as mãos sobre os joelhos. Eventualmente o homem sem queixo retornou ao seu lugar. De um dos lados do seu rosto, na parte inferior, a pele já começava a escurecer. A boca inteira havia inchado, se transformando numa massa informe, cor de cereja, com um buraco escuro no meio. De vez em quando mais um bocado de sangue pingava no peito do macacão. Os olhos cinzentos ainda saltavam de rosto em rosto, mais envergonhados do que nunca, como se o homem estivesse tentando descobrir até que ponto os demais o desprezavam por conta de sua humilhação. A porta se abriu. Com um breve gesto o oficial apontou o homem com cara de caveira.

“Sala 101”, disse.

Ao lado de Winston houve uma exclamação e um movimento brusco. O homem havia se colocado de joelhos no chão, erguendo as mãos postas, em súplica.

“Camarada! Oficial!”, implorou. “Não tem mais que me levar àquele lugar! Eu já não lhe disse tudo? O que mais quer saber? Confesso tudo o que quiser, tudo! É só me dizer o que é, eu confesso na hora. Escreve num papel que eu assino... qualquer coisa! Mas não a sala 101!”

“Sala 101”, repetiu o jovem oficial.

A face do sujeito, já muito empalidecida, ficou de uma cor que Winston não acreditava ser possível. Era definitivamente, inquestionavelmente, um tom de verde.

“Faça o que quiser comigo!”, gritou. “Há semanas estou ando fome. Deixa eu morrer de fome. Me dê um tiro. Me enforque. Me condene a vinte e cinco anos de prisão. Tem alguém mais que quer que eu denuncie? Diga o nome da pessoa, e eu confesso na hora. Não me importa quem é, nem o que vai acontecer com ela. Tenho mulher e três filhos. O mais velho ainda não fez seis anos. Pode degolar todos eles na minha frente, que eu garanto que não desviarei o olhar. Mas não me leve outra vez à sala 101!”

“Sala 101.”

O sujeito olhou para os demais prisioneiros com um ar que beirava o frenesi histérico. Era como se acreditasse que poderia oferecer outra vítima para o seu lugar. Enfim seus olhos pararam na face amassada do homem sem queixo. Apontou na sua direção com o braço esquelético e berrou:

“É aquele ali que você devia levar, não eu! Você não ouviu o que ele falou depois que foi esmurrado. Me dê uma oportunidade que eu posso contar tudo, palavra por palavra. É ELE que atua contra o Partido, não eu.” Os guardas avançaram cela adentro. A voz do homem tornou-se quase animalesca. “Você não ouviu o que ele disse!”, repetia. “A teletela não estava funcionando direito. É ELE que você quer. Leva ele, não eu!”

Os dois guardas robustos estavam prestes a agarrá-lo pelos braços, mas nesse exato instante ele se atirou no chão e se agarrou com a força que lhe restava a uma das pernas de ferro que sustentavam o banco. Então começou a uivar, e finalmente sua voz se assemelhava a de um animal. Os guardas o seguraram e puxaram, mas ele tinha se prendido à perna do banco com uma força assombrosa. Durante uns vinte segundos os guardas insistiram. Os presos permaneceram sentados, imóveis, olhando para frente. Os uivos eventualmente cessaram, o homem já não tinha mais forças para nada além de se manter agarrado onde estava. Nisso ouviu-se um outro tipo de grito. O pontapé desferido por um dos guardas havia quebrado alguns dedos da sua mão. Enfim, pam o sujeito de pé.

“Sala 101”, repetiu o jovem oficial.

O homem foi levado embora, cambaleante e cabisbaixo, protegendo à mão quebrada, inteiramente esgotado e incapaz de resistir. Em seguida se ou um longo tempo. Se o homem com cara de caveira tivesse

sido levado à meia-noite, então já era manhã. Se tivesse sido levado pela manhã, então já era tardinha. Winston estava só, e assim havia permanecido por algumas horas. A dor e o incômodo de sentar-se naquele banco estreito eram tais que por fim ele se levantou e caminhou um pouco, sem que houvesse censura da teletela. O naco de pão ainda se encontrava onde o homem sem queixo o largou. De início foi necessário um grande esforço para evitar olhar diretamente para o pão, mas logo a fome deu lugar à sede. A saliva em sua boca já estava viscosa, e com um gosto ruim. O zumbido constante e a luz branca produziam nele uma espécie de tontura, uma sensação de vazio na cabeça. Ele tinha se levantado porque não podia mais aguentar a dor nos ossos, mas logo voltou a se sentar, uma vez que estava tonto demais para ficar de pé. Isso se repetiu algumas vezes. Sempre que suas sensações físicas ficavam mais controladas, o terror retornava. Às vezes, com o pouco que lhe sobrava de esperança, pensava em O’Brien e na gilete. Era possível que a lâmina chegasse escondida na comida, se algum dia por acaso lhe dessem comida. De forma mais vaga, também pensava em Julia. Em algum canto daquele edifício ela estaria sofrendo, quiçá muito mais do que ele. Talvez naquele exato momento ela estivesse berrando de dor. Winston pensou consigo mesmo: “Se eu pudesse salvar Julia sofrendo o dobro do que sofro agora, será que a salvaria? Sim, certamente que sim.” Mas aquela era uma mera decisão intelectual, tomada porque sabia que era o certo. Não estava relacionada a algum sentimento. Naquele lugar era impossível sentir algo além de dor, e do medo de ainda mais dor. Além disso, por acaso seria possível que, no momento em que se sofre, por alguma razão se pudesse desejar que a dor aumentasse? Era uma questão que ele ainda não podia resolver. Uma vez mais o ruído de botas foi ouvido, cada vez mais próximo, até que a porta da cela se abriu. O’Brien entrou. Winston levantou-se num pulo. O choque de ver aquela cena tinha eliminado todas as suas precauções. Pela primeira vez em muitos anos, esqueceu-se da presença de uma teletela no ambiente.

“Também te pegaram!”, exclamou.

“Me pagaram há muito tempo”, disse O’Brien, com leve ironia, quase pesarosa.

Em seguida deu um o para o lado, e por trás dele surgiu um guarda de peito largo, com um longo bastão preto na mão.

“Você sabia disso, Winston”, disse O’Brien. “Não se iluda. Você sabia – sempre soube.”

Era a mais pura verdade: agora ele via o que de alguma forma sempre soubera. Mas não havia tempo para raciocinar. Winston só tinha olhos para o bastão do guarda. Ele podia lhe acertar em qualquer parte – no alto da cabeça, na ponta da orelha, no antebraço, no cotovelo... O cotovelo! Caiu de joelhos, quase paralisado, protegendo com uma das mãos o cotovelo atingido. O mundo explodia em luz amarelada. Inconcebível, de fato inconcebível que um único golpe fosse capaz de causar aquela espécie de dor! Enfim o amarelo desvaneceu, e ele pôde ver os dois olhando de volta para ele. O guarda ria do seu malabarismo. Ao menos uma das suas questões estava resolvida. Nunca, por nenhuma razão, seria possível desejar um acréscimo de dor. Quanto à dor, só era possível desejar uma coisa: que acabasse. Nada no mundo era tão horrível quanto à dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou mais de uma vez, enquanto se contorcia no chão, segurando inutilmente o braço esquerdo inutilizado.

2.

Winston estava deitado em alguma coisa que parecia uma cama de campanha, porém bem mais elevada em relação ao solo. Ele estava atado a ela de tal forma que praticamente não conseguia se mover. Incidia sobre seu rosto uma luz que parecia ser mais forte que a habitual. O’Brien estava logo ao seu lado, e o observava atentamente. Do outro lado havia um homem de jaleco branco, ele segurava uma seringa hipodérmica. Mesmo após ter aberto completamente os olhos, só aos pouquinhos foi compreendendo a forma das coisas à volta. Tinha a impressão de ter chegado ali nadando, vindo de um mundo bem diferente, um distante mundo subaquático. Não fazia ideia de quanto tempo esteve lá. Desde o momento em que foi preso, não voltou a ver nem o escuro da noite nem a luz do dia. Além disso, as lembranças restantes de lá para cá não seguiam um fluxo contínuo. Houve momentos em que sua consciência – mesmo o tipo de consciência que se tem durante o sono – ficou ausente, para voltar somente após um período inteiramente em branco. E não havia como saber ao certo se tais intervalos eram de dias, semanas ou apenas alguns segundos. O pesadelo tinha se iniciado com aquele primeiro golpe no cotovelo. Mais tarde, veio a se dar conta de que aquilo não ava de um interrogatório preliminar, rotineiro, a que quase todos os presos eram submetidos. Havia uma longa série de crimes – espionagem, sabotagem etc. – que todos eram obrigados a confessar. A confissão era uma formalidade, muito embora a tortura fosse bem real. Quantas vezes ele foi espancado, e por quanto tempo, já não conseguia mais se lembrar. Havia sempre cinco ou seis homens de uniforme preto ocupados em lhe bater, ao mesmo tempo. Às vezes usavam os punhos, às vezes cassetetes, às vezes varas de aço, às vezes botas. Havia ocasiões em que ele rolava desavergonhadamente pelo chão, feito um animal, revirando o corpo para um lado e para o outro, num esforço incessante e desesperado de se desviar dos chutes, mas com isso apenas incitando mais e mais chutes nas costelas, na barriga, nos cotovelos, nas canelas, na virilha, nos testículos, na base da coluna. Havia ocasiões em que a tortura prosseguia por um longo período, até que o cruel, o perverso, o imperdoável, não era mais a brutalidade dos guardas, mas o fato de não conseguir se obrigar a perder a própria consciência.

Havia ocasiões em que a coragem o abandonava de tal maneira que ele começava a implorar por misericórdia antes mesmo de a tortura ter se iniciado; ocasiões em que a simples visão de um punho se preparando para desferir um soco era o bastante para fazê-lo confessar uma profusão de crimes reais e imaginários. Também havia ocasiões em que começava decidido a não confessar nada, quando cada palavra tinha de ser arrancada dele, entre um e outro gemido de dor. Noutras ocasiões, entretanto, ele buscava debilmente resistir um pouco mais, dizendo para si mesmo: “Vou confessar, mas só daqui a pouco. Preciso aguentar até a dor ficar inável. Mais três chutes, mais dois, e então direi o que eles querem”. Às vezes, ele era espancado até o ponto de mal conseguir se sustentar em pé, sendo então atirado feito um saco de batatas no chão de pedras de uma cela; lá eles permitiam que ele ficasse algumas horas, até estar suficientemente recuperado para uma nova rodada de tortura. É verdade que também havia períodos mais longos de repouso. Winston lembrava-se vagamente deles, porque os atravessava ou dormindo ou num estado de letargia. Lembrava-se de uma cela com uma cama de tábuas, uma espécie de prateleira presa à parede, uma pia de latão e refeições compostas de sopa quente, pão e, por vezes, café. Lembrava-se de um barbeiro carrancudo que vinha fazer sua barba e cortar seu cabelo, e de homens de jaleco branco, sempre muito sérios e antipáticos, que vinham examiná-lo: tomavam seu pulso, verificavam seus reflexos, levantavam suas pálpebras, o apalpavam com mãos brutas em busca de ossos quebrados, e espetavam agulhas em seu braço para fazê-lo dormir. Enfim as sessões de espancamento tornaram-se menos frequentes e aram a ser essencialmente uma ameaça, um horror ao qual a qualquer momento ele poderia voltar a ser submetido caso suas respostas não fossem satisfatórias. Agora seus torturadores e interrogadores já não eram os monstros de uniforme preto, mas intelectuais do Partido, homenzinhos rechonchudos de movimentos rápidos e óculos brilhantes, que se ocupavam dele em um rodízio de períodos que duravam – ele calculou, sem ter certeza – umas dez a doze horas, sem interrupção. Esses novos interrogadores se esmeravam em submetê-lo a uma dor constante, embora leve. Mas a dor não era a sua maior arma. Davam-lhe tapas no rosto, torciam-lhe as orelhas, puxavam-lhe o cabelo, obrigavam-no a ficar de pé numa perna só, recusavam-se a conceder licença para urinar, focavam lâmpadas potentes nos seus olhos até lacrimejarem; no entanto, o propósito disso tudo era apenas humilhá-lo e destruir o seu poder de raciocínio e argumentação. Sua verdadeira arma era o interrogatório impiedoso que prosseguia, hora após hora,

arquitetando armadilhas, fazendo-o tropeçar aqui e ali, distorcendo tudo o que era dito, incriminando-o a cada o com mentiras e contradições, até o ponto em que Winston começava a chorar não só de vergonha, mas também de exaustão nervosa. Às vezes ele caía em prantos meia dúzia de vezes numa só sessão. Na maior parte do tempo eles o insultavam aos berros e, a cada momento de hesitação, ameaçavam entregá-lo novamente aos guardas. Havia também momentos em que eles subitamente mudavam de tom, chamando-o de camarada e dirigindo apelos em nome do Ingsoc e do Grande Irmão; em tais momentos eles lhe perguntavam com pesar se depois de tudo o que havia ado ainda não lhe restaria uma dose mínima de lealdade ao Partido que o fizesse desejar desfazer todo o mal que ele havia causado. Quando seus nervos já estavam em frangalhos, depois de horas e mais horas de interrogatório, até esse tipo de apelo era capaz de reduzi-lo a um chorinho lamuriado. Por fim, as vozes insistentes o venciam mais completamente do que as botas e os punhos dos torturadores. Ele tornou-se tão somente uma boca que confessava e uma mão que assinava tudo o quanto lhes fosse exigido. Sua única preocupação era descobrir o mais rápido possível o que eles desejavam que ele confessasse, para poder confessar depressa, antes de ter que se ver com alguma nova tortura. Confessou o assassinato de membros eminentes do Partido, a distribuição de panfletos apócrifos, o desvio de recursos públicos, a venda de segredos militares e todo tipo de sabotagem. Confessou ter sido um espião atuando em favor do governo lesteasiático desde 1968. Confessou ser crente religioso, grande irador do capitalismo e pervertido sexual. Confessou ter assassinado sua esposa, muito embora ele soubesse, como por certo sabiam seus interrogadores, que ela ainda estava viva. Confessou ter encontrado pessoalmente com Goldstein, mais de uma vez, há muitos anos, e ter feito parte de uma organização clandestina que incluía quase todos os seres humanos que ele tinha conhecido em vida. Era mais fácil confessar tudo e comprometer a todos. Além do mais, em certo sentido, era tudo verdade. Era verdade que ele havia sido um inimigo do Partido e, aos olhos do Partido, não havia diferença alguma entre pensamento e ação efetiva. Winston também tinha recordações de outro tipo. Elas se destacavam de maneira desconexa em sua mente, como quadros rodeados pela escuridão. Estava numa cela que não sabia definir se estava às escuras ou iluminada, pois

não podia ver nada além de um par de olhos. Próximo dele, um instrumento qualquer tiquetaqueava vagarosa e regularmente. Os olhos aumentavam em tamanho e luminosidade. De repente, ele se erguia da cadeira e começava a flutuar, mergulhando em direção aos olhos e sendo engolido por eles. Estava atado a uma cadeira, cercado de mostradores, sob luzes ofuscantes. Um homem com um jaleco branco lia os mostradores. Lá fora ouvia-se um ruído de botas marchando. A porta se abria com um estrondo. O oficial com rosto de máscara de cera entrava, sendo acompanhado por dois guardas. Ele dizia:

“Sala 101.”

O homem de jaleco não se virava nem para eles nem para Winston, estava interessado somente nos mostradores. Deslizava por um corredor imenso, com um quilômetro de largura, inundado de gloriosa luz dourada, rindo às gargalhadas e fazendo confissões a plenos pulmões. Confessava tudo, até mesmo o que tinha conseguido esconder durante a tortura. Estava relatando toda a sua história de vida a uma audiência que já a conhecia. Com ele estavam os guardas, os demais interrogadores, os homens de jaleco branco, O’Brien, Julia e o sr. Charrington; todos deslizando juntos pelo corredor, todos gargalhando. Alguma coisa horrenda, que se ocultava no futuro, de alguma forma havia sido evitada, e não teria se concretizado. Estava tudo uma maravilha, não havia mais dor, e o último detalhe de sua vida fora desnudado, compreendido e perdoado. Estava se levantando da cama de tábuas, quase certo de ter escutado a voz de O’Brien. Durante todo o interrogatório, embora não pudesse vê-lo, teve a impressão de que O’Brien estava logo ao lado. Era O’Brien quem comandava tudo. Era ele que enviava os guardas contra Winston e também quem impedia que o matassem. Era ele que decidia quando Winston devia gritar de dor, quando devia descansar, quando devia se alimentar, quando devia dormir, quando as drogas deviam ser injetadas em seu braço. Era ele que fazia as perguntas e sugeria as respostas. Era o algoz, o protetor, o inquisidor, o amigo. E uma vez – Winston não conseguia recordar se ocorreu num período induzido por drogas, num período de sono natural, ou mesmo num momento desperto e lúcido – uma

voz sussurrou em seu ouvido: “Não se preocupe, Winston, você está sob meus cuidados. Tenho lhe vigiado por sete anos, e agora chegou o momento decisivo. Eu vou salvá-lo, vou torná-lo perfeito.” Não estava totalmente seguro de ter sido a voz de O’Brien; mas era a mesma voz que lhe dissera: “Ainda nos encontraremos lá onde não há trevas”, naquele outro sonho, sete anos atrás. Não se lembrava do fim daquele interrogatório. Houve um período de escuridão e depois a cela (ou a sala) onde ele estava agora foi se materializando em seu entorno, bem lentamente. Tinha o corpo atado em todos os pontos essenciais. Até mesmo a nuca estava presa. O’Brien o observava com uma expressão grave e algo melancólica. Visto de baixo, seu rosto parecia rude e abatido, com olheiras e rugas que atravessavam do nariz ao queixo. Era mais velho do que Winston tinha imaginado; devia ter uns quarenta e oito, quiçá cinquenta anos. Tinha na mão um mostrador com uma alavanca, e alguns números ocupando sua circunferência.

“Eu te disse que se voltássemos a nos encontrar, seria aqui.”

“Sim”, Winston concordou.

Sem qualquer aviso, exceto por um pequeno movimento da mão de O’Brien, uma onda de dor percorreu seu corpo. Era uma dor assustadora, porque não podia sequer ver o que acontecia, e tinha a nítida sensação de que estavam lhe infligindo um ferimento mortal. Não sabia se isso acontecia de fato, ou se todo o efeito era produzido de forma elétrica; seja como for, ele sentia seu corpo sendo deformado, com suas juntas sendo gradualmente deslocadas. Embora a dor tivesse encharcado sua testa de suor, o pior de tudo era o temor de que sua coluna vertebral estivesse a ponto de ser rompida. Trincou os dentes e respirou fundo pelo nariz, buscando manter-se em silêncio pelo maior tempo possível.

“Você está com medo”, disse O’Brien, encarando seu rosto, “de que em breve algo se parta. Seu maior medo é que seja a coluna. Tem na mente uma imagem

nítida das vértebras sendo rompidas, e do fluido espinhal escorrendo delas. Não é nisso que está pensando, Winston?”

Winston não respondeu. O’Brien voltou a alavanca do mostrador para sua posição original. A onda de dor desvaneceu quase tão repentinamente quanto surgiu.

“Isso foi no quarenta”, explicou O’Brien. “Como vê, os números neste mostrador vão até cem. Peço-lhe que tenha em mente ao longo de nossa conversa que eu posso muito bem, a qualquer instante, e em qualquer nível que deseje, lhe infligir mais dor. Se me disser mentiras ou tentar qualquer tipo de fuga do tema em questão, ou ainda decair abaixo do seu grau usual de inteligência, no mesmo instante irá gritar de dor. Você compreendeu?”

“Sim”, disse Winston.

A expressão de O’Brien subitamente se tornou mais branda e amigável. Ajeitou os óculos, pensativo, e deu alguns os para lá e para cá. Quando voltou a falar, seu tom de voz era gentil e paciente. Tinha o ar de um médico, de um professor, até mesmo de um sacerdote, preocupado mais em explicar e persuadir do que em punir.

“Perco esse tanto de tempo contigo, Winston, porque você é um caso que vale a pena. Você sabe perfeitamente qual é o seu problema. E já o sabe há anos, embora tenha buscado negá-lo. Você é mentalmente desequilibrado. Tem problemas de memória. Não consegue se lembrar de eventos reais e convence a si mesmo de que se recorda de coisas que jamais ocorreram. A boa notícia é que isso tem cura. Se até agora não buscou a cura, foi porque não quis. Havia um pequeno esforço de vontade que não estava disposto a fazer. Mesmo agora eu sei que você ainda se agarra à sua doença, porque a considera uma virtude. Vamos

considerar um exemplo: neste momento, com que potência a Oceania está em guerra?”

“Quando fui preso, a Oceania estava em guerra com a Lestásia.”

“Com a Lestásia. Ótimo. E a Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia, certo?”

Winston respirou profundamente. Quando ia abrir a boca para falar, acabou ficando mudo. Não conseguia desviar os olhos do mostrador que O’Brien tinha em mãos.

“A verdade, Winston, por favor. A SUA verdade. Conte-me o que você acha que se lembra.”

“Lembro-me que até por volta de uma semana antes de ser preso, nós não estávamos em guerra com a Lestásia. Nós éramos seus aliados. A guerra era contra a Eurásia, e já durava uns quatro anos. Antes disso...”

O’Brien o interrompeu com um gesto.

“Vejamos outro exemplo”, disse. “Há alguns anos você ou por um momento de alucinação muito sério. Acreditou então que três homens, três ex-membros do Partido chamados Jones, Aaronson e Rutherford – que foram executados por traição e espionagem após uma confissão integral – não eram culpados dos crimes pelos quais tinham sido denunciados. Imaginou ter visto uma prova

documental inconfundível de que as três confissões eram falsas. Havia uma foto em específico sobre a qual você teve um episódio de alucinação. Chegou a crer que realmente a teve nas mãos. A foto era mais ou menos como esta.”

Um recorte de jornal retangular apareceu entre os dedos de O’Brien, e foi mantido ao alcance da visão de Winston por uns cinco segundos. No recorte havia uma foto, e não havia dúvidas quanto à sua identidade. Era A FOTO: uma cópia da foto em que Jones, Aaronson e Rutherford apareciam na cerimônia do Partido em Nova York; a mesma que chegou por acaso às mãos de Winston, onze anos antes, e fora destruída quase que imediatamente. Por um instante apenas a teve bem diante dos olhos, mas logo O’Brien voltou a ocultá-la. Mas a tinha visto, disso não havia qualquer dúvida! Fez um esforço desesperado, agonizante, para desatar a parte superior do seu corpo. Mas era impossível se mexer em qualquer direção, um centímetro que fosse. Na hora, esqueceu-se até mesmo do mostrador. Tudo o que desejava era segurar de novo aquela foto, ou ao menos olhar outra vez para ela.

“Ela existe!”, exclamou.

“Não”, disse O’Brien.

Então ele atravessou a sala. Na parede oposta havia um buraco da memória. Levantou a grade e a atirou. Sem que ninguém pudesse vê-la, a frágil tira de papel foi sugada pela corrente de ar quente; logo desapareceria da existência numa labareda de fogo. O’Brien retornou de onde estava.

“Cinzas”, disse. “Nem mesmo cinzas identificáveis. Pó. A foto não existe. Nunca existiu.”

“Mas ela existiu de fato! Ainda existe! Ela existe na memória. Eu me lembro. Você se lembra.”

“Não me lembro de foto alguma”, disse O’Brien.

O coração de Winston apertou-se. Era o duplipensamento. Ele teve uma sensação esmagadora de impotência. Se ao menos pudesse ter certeza de que O’Brien estava mentindo, não teria tamanha importância. Mas era perfeitamente possível que O’Brien tivesse realmente se esquecido da foto. E se fosse assim, certamente já teria se esquecido de que chegou a dizer que não se lembrava dela, isto é: teria se esquecido do próprio esquecimento. Mas como era possível estar certo de que aquilo tudo não ava de um embuste? Por outro lado, talvez aquele deslocamento lunático da mente pudesse de fato ser executado: foi esse o pensamento que selou sua derrota. O’Brien o observava com um olhar curioso. Mais do que nunca tinha o ar de um professor, dedicado ao seu aluno peralta mais promissor.

“Há um lema do Partido que faz referência ao controle do ado”, disse. “Repita-o para mim, por favor.”

“Quem controla o ado controla o futuro: quem controla o presente controla o ado”, Winston repetiu, com obediência.

“Quem controla o presente controla o ado”, disse O’Brien, balançando levemente a cabeça para demonstrar sua aprovação. “Na sua opinião, Winston, o ado tem uma existência real?”

A sensação de impotência voltou a dominar Winston. Seus olhos logo se fixaram no mostrador. Não apenas não sabia se a resposta que o salvaria da dor era “sim” ou “não”, como estava inseguro acerca de qual delas ele próprio acreditava ser a verdade.

O’Brien esboçou um sorriso na face.

“A metafísica não é o seu forte, Winston”, disse ele. “Até este momento, você sequer havia considerado o que significa exatamente isso que chamamos de existência. Vou formular uma questão mais precisa. Por acaso o ado tem existência concreta no espaço? Há em algum canto um lugar, um mundo de objetos sólidos, onde o ado ainda acontece?”

“Não.”

“Então onde existe o ado, se é que existe?”

“Nos registros. Está documentado.”

“Nos registros. E também...?”

“Na mente. Nas memórias humanas.”

“Nas memórias humanas. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os registros e todas as memórias. Assim, nós controlamos o ado, não é

verdade?”

“Mas como podem impedir que as pessoas se lembrem das coisas?”, Winston se exaltou, novamente se esquecendo completamente do mostrador. “É algo involuntário. É algo que foge ao nosso controle. Como podem controlar a memória? A minha vocês não controlaram!”

A expressão de O’Brien voltou a se tornar severa. Levou a mão até a alavanca do mostrador.

“Pelo contrário”, disse ele. “foi VOCÊ que não a controlou. Por isso está aqui. Está aqui porque fracassou em humildade e em disciplina. Não realizou o ato de submissão que é o preço a ser pago pela sanidade. Preferiu ser um lunático, uma minoria de um. Somente a mente disciplinada é capaz de enxergar a realidade, Winston. Você crê que a realidade é uma coisa objetiva, externa, algo que existe por sua própria conta. Também crê que a natureza da realidade é autoevidente. Quando se ilude, e pensa estar vendo algo, julga que todos veem a mesma coisa. Mas eu lhe garanto, Winston, que a realidade não é externa. A realidade existe tão somente na mente humana, e em nenhum outro lugar. Não na mente do indivíduo, que pode se equivocar e que, em todo caso, logo estará fadada à morte. A realidade existe apenas na mente do Partido, que é coletivo e imortal. O que quer que o Partido afirme ser a verdade é a verdade. É impossível ver a realidade senão pelos olhos do Partido. É precisamente esse o fato que você precisa reaprender, Winston. E isso vai lhe exigir um ato de autodestruição, um esforço da vontade. Você precisa se humilhar antes que possa recobrar a sanidade.”

Então O’Brien fez uma breve pausa, como que para permitir que suas palavras fossem devidamente entendidas. Em seguida, prosseguiu:

“Você se lembra de ter escrito em seu diário: ‘Liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro’?”

“Lembro.”

O’Brien mostrou as costas de sua mão esquerda para Winston, com o polegar oculto e os demais dedos estendidos.

“Quantos dedos tenho aqui, Winston?”

“Quatro.”

“E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco – então quantos dedos serão?”

“Quatro.”

A palavra se encerrou com um grito de dor. O ponteiro do mostrador saltou até cinquenta e cinco. O suor brotou de todas as partes do corpo de Winston. O ar que adentrou seus pulmões foi expirado sob a forma de grunhidos profundos, que nem com os dentes trincados ele pôde calar. O’Brien o observava com os quatro dedos da mão esquerda ainda estendidos. Com a direita, puxou a alavanca de volta. Dessa vez, entretanto, a dor diminuiu somente um pouco.

“Quantos dedos, Winston?”

“Quatro.”

O ponteiro subiu até sessenta.

“Quantos dedos, Winston?”

“Quatro! Quatro! O que mais posso dizer? Quatro!”

O ponteiro deve ter subido ainda mais, porém ele não olhou para o mostrador. O rosto de expressão severa e carregada, juntamente com os quatro dedos, preenchia todo o seu campo de visão. Os dedos estavam bem na sua frente, assemelhando-se a colunas imensas e desfocadas, que pareciam vibrar – mas não havia dúvida de que eram quatro.

“Quantos dedos, Winston?”

“Quatro! Pare, pare! Como pode continuar? Quatro! Quatro!”

“Quantos dedos, Winston?”

“Cinco! Cinco! Cinco!”

“Ora, assim não adianta Winston. Você está mentindo. Ainda acha que são quatro. Quantos dedos, por favor?”

“Quatro! Cinco! Quatro! O que quiser. Mas pare com isso, pare com a dor!”

De repente, achou-se sentado na cama, com o braço de O’Brien em torno de seus ombros. É provável que ele tivesse perdido os sentidos por alguns segundos. As tiras que o atavam à cama foram afrouxadas. Sentia muito frio, tremia descontroladamente. Seus dentes batiam e as lágrimas corriam soltas pelo rosto. Por um momento, permaneceu agarrado a O’Brien como um bebê, curiosamente consolado pelo braço pesado em torno dos ombros. Tinha a sensação de que O’Brien era o seu protetor, que a dor era algo que vinha de outra fonte externa, e que era O’Brien quem o salvava dela.

“Bem, você aprende devagar, não é, Winston?”, constatou O’Brien de maneira gentil.

“Mas o que eu posso fazer?”, respondeu Winston às lágrimas. “Como posso deixar de ver o que está bem diante dos meus olhos? Dois mais dois são quatro.”

“Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes são três. Às vezes são todas essas coisas ao mesmo tempo. Precisa se esforçar com mais afinco. Não é fácil recobrar a sanidade.”

Então, voltou a deitar Winston na cama. Seus membros foram novamente atados, no entanto a dor tinha abrandado, e o tremor desapareceu, restando somente a sensação de fraqueza e frio. O’Brien fez um aceno com a cabeça, dirigindo-se ao homem de jaleco branco, que durante toda aquela cena havia permanecido

imóvel. O homem inclinou-se e examinou de perto os olhos de Winston, verificou seu pulso, encostou uma das orelhas em seu peito, deu umas batidinhas aqui e ali; depois respondeu com um aceno positivo da cabeça para O’Brien.

“De novo”, disse O’Brien.

A dor voltou a percorrer o corpo de Winston. O ponteiro do mostrador possivelmente atingiu os setenta, quiçá setenta e cinco. Dessa vez ele fechou os olhos. Sabia que os dedos ainda estavam lá, e que ainda eram quatro. A única coisa que importava era achar um meio de sobreviver até o espasmo chegar ao fim. Já não sabia se estava gritando ou não. A dor voltou a arrefecer. Abriu os olhos. O’Brien tinha retornado a alavanca para a posição original.

“Quantos dedos, Winston?”

“Quatro. Imagino que sejam quatro. Se pudesse, certamente veria cinco. Estou tentando fazer isso.”

“Fazer o quê? Me convencer de que vê cinco dedos, os vê-los de fato?”

“Vê-los de fato.”

“De novo”, disse O’Brien.

O ponteiro deve ter saltado até oitenta – noventa, quem sabe. Winston só

conseguia se lembrar do motivo de toda aquela dor de tempos em tempos. Atrás das pálpebras firmemente fechadas, uma floresta de dedos parecia se mover numa espécie de dança, se embaralhando e desembaralhando, desaparecendo uns atrás dos outros e reaparecendo novamente. Tentava contá-los, mas já não sabia por quê. Só sabia que era possível contá-los de fato, e que isto se devia à misteriosa identidade entre o quatro e o cinco. A dor voltou a ceder. Foi quando abriu os olhos que ele percebeu que prosseguia vendo o mesmo cenário: infindáveis dedos, movendo-se como árvores, corriam em todas as direções, cruzando e recruzando seu campo de visão. Voltou a fechar os olhos.

“Quantos dedos estou lhe mostrando agora, Winston?”

“Não sei, não sei mesmo. Você vai acabar me matando se começar com isso outra vez. Quatro, cinco, seis – sendo realmente sincero contigo, eu não sei.”

“Está melhor”, disse O’Brien.

Uma agulha espetou o braço de Winston. Quase no mesmo instante, um delicioso calor curativo se espalhou pelo seu corpo inteiro. A dor já tinha sido praticamente esquecida. Abriu os olhos e viu O’Brien com uma expressão de gratidão. Tendo à vista aquele rosto rude e enrugado, tão feio quanto inteligente, seu coração parecia renovar-se. Caso pudesse se desatar dali, teria esticado a mão e tocado o braço de O’Brien. Nunca o amara tão profundamente quanto naquele momento, e não somente por tê-lo salvado da dor. Um sentimento íntimo e antigo havia voltado à tona: de que no fundo não importava se O’Brien era amigo ou inimigo. O’Brien era alguém com quem se podia dialogar. Talvez fosse mais vital ser compreendido do que amado. O’Brien o tinha torturado até levá-lo à beira da demência; e, dali a pouco, certamente o mandaria para a morte. Isso não tinha a menor importância. Num sentido mais profundo que a mera amizade, eles eram íntimos; em alguma parte, muito embora as palavras jamais fossem ditas, havia um lugar onde eles ainda poderiam se encontrar e conversar. Nesse momento, O’Brien o fitava com uma expressão que sugeria que

possivelmente um pensamento idêntico tivesse atravessado sua mente. Quando falou, sua voz assumiu um tom afável e amistoso:

“Você sabe onde está, Winston?”

“Não. Mas imagino que seja no Ministério do Amor.”

“Sabe há quanto tempo está aqui?”

“Não. Dias, semanas, meses... Creio que já há alguns meses.”

“E por que você acha que nós trazemos pessoas como você até aqui?”

“Para fazê-las confessar.”

“Não, não é por essa razão. Tente outra.”

“Para castigá-las.”

“Não!”, exclamou O’Brien, cuja voz havia se modificado de maneira extraordinária. Já o seu rosto tinha assumido um aspecto ao mesmo tempo severo e entusiasmado. “Não! Não é somente para extrair uma confissão, nem para lhe punir ou castigar. Quer que eu diga por que o trouxemos aqui? Para

curá-lo! Para salvá-lo da loucura! Compreenda, Winston, que ninguém sai desse lugar sem estar devidamente curado. Não estamos preocupados com aqueles crimes idiotas que você cometeu. Ao Partido pouco interessa o ato em si: é só o pensamento que nos preocupa. Não nos limitamos a simplesmente destruir nossos inimigos; nós os modificamos. Entende o que estou querendo dizer?”

O’Brien estava inclinado sobre Winston. Seu rosto parecia enorme devido à proximidade, e ainda mais feio por ser visto de baixo para cima. Além disso, estava preenchido por uma espécie de exaltação, uma demência em estado latente. O coração de Winston voltou a encolher-se no peito. Se fosse possível, ele se enterraria ainda mais naquela cama. Estava certo de que ele estava prestes a acionar novamente o mostrador, por pura maldade. Nesse momento, entretanto, O’Brien afastou-se da cama. Deu uns os para lá e para cá, e depois continuou, com menos veemência:

“A primeira coisa que você deve entender é que neste lugar não há martírios. Certamente já leu sobre as perseguições religiosas do ado. Na Idade Média ocorreu a Inquisição. Bem, ela foi um fracasso. Sua intenção era erradicar a heresia, e ela conseguiu tão somente perpetuá-la. Para cada herege queimado na fogueira, surgiram milhares de outros. Por quê? Porque a inquisição matava seus inimigos abertamente, e o fazia antes mesmo deles terem se arrependido; de fato, matava-os porque não se arrependiam. Os homens morriam por se recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Dessa forma, toda a glória ficava com a vítima, e toda a vergonha era voltada para o inquisidor que a martirizou na fogueira. Mais tarde, no século XX, surgiram os chamados totalitários. Os nazistas alemães e os comunistas russos. Ora, a perseguição que os russos faziam às heresias era ainda mais cruel que a Inquisição. Eles imaginavam que tinha aprendido com os erros do ado. Bem, ao menos sabiam que não podiam produzir mártires. Antes de expor as vítimas a julgamentos públicos, tratavam de destruir deliberadamente sua dignidade. Eles arrasavam seus espíritos através da tortura e da solidão, até que fossem transformadas em lamentáveis criaturas, confessando tudo o que lhes fosse posto nos lábios, cobrindo-se de infâmias, fazendo delações e se ocultando atrás dos demais acusados; e, por fim, suplicando misericórdia.

Não obstante tudo isso, alguns anos se avam e ocorria a mesma coisa: os mortos se tornavam novos mártires, e sua degradação era solenemente esquecida. Ora, mais uma vez, por que isso acontecia? Em primeiro lugar, porque as confissões obtidas eram obviamente falsas e fruto de extorsão. Nós não cometemos esse tipo de erro. Todas as confissões realizadas aqui são verdadeiras. Nós as tornamos verdadeiras. E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós. Você deve abandonar a ideia de que a posteridade o absolverá, Winston. A posteridade nunca sequer ouvirá falar de você. Você será devidamente excluído do fluxo da história. Transformaremos você em gás e o enviaremos para a estratosfera. Não vai sobrar absolutamente nada de você por aqui: nem seu nome no livro de registros, nem sua memória na mente de algum ente vivo. Você será aniquilado, tanto no ado quanto no futuro. Você nunca terá existido.”

Então por que diabos perdem tempo me torturando?, pensou Winston, num breve momento de amargura. O’Brien se deteve em meio a uma ada, como se Winston tivesse pensado em voz alta. Seu rosto grande e feio se aproximou, com os olhos ligeiramente cerrados.

“Você deve estar pensando: já que nós pretendemos destruí-lo tão completamente, de modo que tudo o que disser ou fazer aqui não terá a menor importância – nesse caso, por que nos damos ao trabalho de interrogá-lo antes disso? Era o que estava pensando, não era?”

“Era”, confessou Winston.

O’Brien esboçou outro sorriso, então prosseguiu:

“Você é uma peça com defeito, Winston. Uma mancha que precisa ser devidamente limpa. Ora, eu não acabei de dizer que nós somos diferentes dos

inquisidores do ado? Não nos damos por satisfeitos com a obediência negativa, tampouco com a submissão mais abjeta. Quando enfim for se render a nós, deverá ser por sua livre e espontânea vontade. Não iremos aniquilar o herege porque ele se mostra resistente; enquanto ele for resistente, nós jamais o destruiremos. Nós vamos convertê-lo, vamos capturar o âmago de sua mente, vamos remodelá-lo. Exorcizaremos dele todo o mal e toda a ilusão. Então, o traremos para o nosso lado, não de maneira superficial, mas genuinamente, de corpo e alma. Antes de matá-lo, faremos com que se torne um dos nossos. Para nós é intolerável que exista em qualquer canto do mundo um pensamento incorreto, por mais secreto e inofensivo que seja. Nem no momento da morte podemos permitir o mínimo desvio. No ado, o herege caminhava para a fogueira ainda um herege, ainda proclamando sua heresia, e nela se glorificando. Até à vítima dos expurgos russos era permitido carregar sua revolta armazenada na mente, enquanto avançava pelo corredor, à espera de ser fuzilada. Nós não, conosco não é assim: nós tornamos a mente perfeita antes de aniquilá-la. A ordem dos déspotas antigos era: ‘Tu não farás’. A ordem dos totalitários era: ‘Tu farás’. Nossa ordem é: ‘TU ÉS’. Ninguém, absolutamente ninguém daqueles que trazemos a este lugar se volta contra nós. Todos am por uma lavagem completa. Até mesmo aqueles três traidores miseráveis, que você acreditava serem inocentes – Jones, Aaronson e Rutherford – no fim acabaram se dobrando. Eu mesmo participei do interrogatório deles. Vi como foram se consumindo aos poucos; como se lamentavam, como rastejavam, como choravam – e, no fim, não foi nem por dor nem por medo, mas por pura penitência. Quando encerramos com eles, estavam reduzidos a uma casca. Não havia neles mais nada senão o arrependimento pelo que tinham feito e o amor pelo Grande Irmão. Era realmente tocante ver como eles o amavam. Eles imploraram para que o fuzilamento viesse rápido, enquanto ainda tinham o pensamento limpo.”

A voz de O’Brien tinha assumido um tom próprio de quem está sonhando. Em seu rosto ainda era possível notar o arrebatamento, o entusiasmo delirante. Ele não está fingindo, pensou Winston. Não é um hipócrita: acredita de fato em tudo o que diz. O que mais o oprimia naquele momento era ter plena consciência da sua própria inferioridade intelectual. Observou novamente seu vulto corpulento, forte porém gracioso, deslocar-se de um lado para o outro, fugindo do seu campo

de visão. Em todos os sentidos, O’Brien era um ser maior que ele. Não havia pensamento que tivesse ado pela mente de Winston, ou que pudesse ar um dia, que O’Brien não conhecesse há tempos, e que já não tivesse examinado e descartado. Sua mente CONTINHA a de Winston. E, nesse caso, como poderia ser verdade que O’Brien fosse louco? Ora, o louco devia ser ele próprio, Winston. O’Brien parou de novo e olhou em sua direção. Sua voz retornou ao tom mais severo:

“Não pense que irá se salvar, Winston, por mais absoluta que seja a sua rendição. Quem se desvia uma vez jamais é poupado. E ainda que resolvêssemos permitir que você viva até o fim de seus dias, mesmo assim você não seria capaz de escapar de nós. O que acontece aqui é para sempre. Compreenda logo isso. Nós iremos esmagá-lo, deixá-lo num estado de onde não há retorno. Vão lhe acontecer coisas das quais você não poderia se recuperar nem que vivesse mil anos. Nunca mais conseguirá ter sentimentos humanos comuns. Tudo em seu interior estará morto. Seu espírito nunca mais será capaz de amar ou fazer nova amizade. Já não existirão mais a alegria de viver, o riso, a curiosidade, a coragem ou a integridade: você será oco, como uma casca. Pois vamos espremê-lo até que fique inteiramente vazio, e depois disso o preencheremos com o nosso próprio pensamento.”

O’Brien fez uma pausa e indicou alguma coisa para o homem de jaleco branco. Winston percebeu que algum aparelho pesado estava sendo acoplado atrás de sua cabeça. O’Brien sentou-se ao lado da cama, de modo que seu rosto ficou praticamente no mesmo nível do de Winston.

“Três mil”, disse ele para o homem de jaleco branco.

Então, duas almofadas macias, até mesmo ligeiramente úmidas, foram fixadas às têmporas de Winston. Ele se estremeceu todo. Havia dor por vir, uma nova espécie de dor. O’Brien pôs uma das mãos sobre a sua, num gesto tranquilizador, quase afetuoso, e disse:

“Dessa vez não vai doer. Apenas fixa seus olhos nos meus.”

Naquele momento houve uma explosão devastadora, ou ao menos o que pareceu ter sido uma explosão, já que Winston não tinha certeza de ter ouvido algum barulho. Sem dúvida, porém, houve uma espécie de clarão ofuscante. Winston não se sentiu ferido, apenas extenuado. Embora já estivesse deitado de costas quando a coisa ocorreu, ficou com a curiosa sensação de ter sido a explosão que o arremessou naquela posição. Então um golpe impressionante e totalmente indolor o deixou ainda mais estatelado na cama, se é que era possível. Além disso, algo também havia transcorrido dentro da sua cabeça. Conforme seus olhos foram recuperando o foco, começou a recordar quem era e onde estava, e logo em seguida também reconheceu o rosto que o encarava; entretanto, em algum lugar persistia uma vasta área de puro vazio, como se tivessem arrancado um pedaço do seu cérebro.

“Logo isso vai ar”, disse O’Brien. “Olhe nos meus olhos. Com que país a Oceania está em guerra?”

Winston refletiu. Sabia o que Oceania queria dizer, e que ele mesmo era um cidadão da Oceania. Também se lembrava da Lestásia e da Eurásia, mas não sabia quem estava em guerra com quem. De fato, não sabia sequer que havia uma guerra sendo travada.

“Não me lembro.”

“A Oceania está em guerra com a Lestásia. Você se lembra disso agora?”

“Sim, lembro.”

“A Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia. Desde que você nasceu, desde a fundação do Partido, desde o princípio da nossa história, tal guerra prossegue sem interrupções, sempre a mesma guerra. Você se lembra disso?”

“Sim.”

“Há onze anos você criou uma lenda em torno de três homens que foram condenados à morte por traição. Imaginava ter visto um pedaço de papel que provaria a inocência deles. Mas esse pedaço de papel nunca existiu. Foi uma invenção sua, e mais tarde você ou a acreditar nela piamente. Agora você se recorda do exato momento em que inventou tal história. Você se lembra disso?”

“Sim.”

“Agora há pouco eu lhe mostrei os dedos da minha mão. Você viu que eram cinco dedos. Você se lembra disso?”

“Sim.”

O’Brien mostrou os dedos de sua mão esquerda, escondendo o polegar.

“Tenho aqui cinco dedos. Está vendo os cinco?”

“Sim.”

E os viu realmente, por um instante muito breve, antes que o cenário de sua mente se alterasse. Viu cinco dedos, sem nenhuma deformidade. Depois tudo voltou ao normal e retornaram o velho medo, o ódio e a perplexidade. Mas houve um momento – não se lembrava da duração exata, talvez uns trinta segundos – de convicção luminosa, onde cada nova sugestão de O’Brien enchia uma área de vazio e se tornava verdade absoluta, e onde dois mais dois teriam resultado em três com a mesma facilidade que em cinco, se isto fosse necessário. Tal convicção desvaneceu antes de O’Brien recolher sua mão; mas embora Winston já não fosse capaz de recapturá-la, lembrava-se dela como alguém que se recorda de um episódio marcante, que se ou num período remoto da vida, quando era de fato uma outra pessoa.

“Vê agora”, disse O’Brien, “como é perfeitamente possível?”

“Sim, vejo.”

Com ar de satisfação, O’Brien se levantou. À sua esquerda, Winston viu o homem de jaleco branco quebrar a tampa de uma ampola e puxar o êmbolo de uma seringa. O’Brien se virou para Winston com um sorriso nos lábios. Com seu gesto familiar, ajeitou os óculos no nariz e disse:

“Lembra-se de ter escrito em seu diário que não importava se eu era amigo ou inimigo, pois ao menos era alguém que lhe compreendia, uma pessoa com quem podia conversar? Você tinha toda razão. Eu gosto de conversar contigo. Sua mente me atrai. Ela até se parece um pouco com a minha, com a diferença de que você é louco. Antes de encerrarmos a sessão, pode me fazer algumas

perguntas, se desejar.”

“Qualquer pergunta?”

“Qualquer coisa.” O’Brien percebeu que Winston olhava para o mostrador. “Está desligado. Qual é a sua primeira pergunta?”

“O que vocês fizeram com a Julia?”, Winston quis saber.

O’Brien sorriu de novo. “Ela o traiu, Winston. Imediatamente... sem ressalvas. Raras vezes vi alguém ar para o nosso lado tão depressa. Você mal a reconheceria se a visse. Toda a sua rebeldia, seu fingimento, sua loucura, sua mente suja – foi tudo extirpado. Foi uma conversão perfeita, um caso digno de figurar em nossas cartilhas.”

“Você a torturaram?”

O’Brien deixou esta pergunta sem resposta. “Próxima pergunta”, disse.

“O Grande Irmão existe?”

“Ora, é claro que existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a personificação do Partido.”

“Mas ele existe da mesma forma que eu existo?”

“Você não existe”, disse O’Brien.

Novamente a sensação de impotência o assaltou. Sabia, ou podia intuir, dos argumentos que demonstrariam sua inexistência; no entanto, todos eles eram argumentos absurdos, meros jogos de palavras. Por acaso a afirmação “Você não existe” já não carrega consigo um absurdo lógico? Mas de que valeria alegar isso? Sua mente se encolhia em si mesma à medida que pensava nos argumentos insanos, sem resposta possível, com que O’Brien o demoliria.

“Eu creio que existo”, respondeu penosamente. “Tenho consciência de minha própria identidade. Eu nasci, e ainda vou morrer. Tenho braços e pernas. Ocupo um determinado ponto no espaço. Ao mesmo tempo, nenhum outro sólido pode ocupar este mesmo ponto. É dessa forma que o Grande Irmão existe?”

“Isso é irrelevante. Ele existe.”

“O Grande Irmão vai morrer algum dia?”

“Obviamente que não. Como ele poderia morrer? Próxima pergunta.”

“A Irmandade existe?”

“Isso você jamais vai saber, Winston. Ainda que decidamos soltá-lo após

terminarmos contigo, ainda que você viva até seus noventa anos, nunca saberá se a resposta a tal pergunta é Sim ou Não. Enquanto viver, esse enigma permanecerá sem solução em sua mente.”

Winston ficou em silêncio. Seu peito ofegou um pouco mais depressa. Ainda não tinha arriscado fazer a pergunta que surgiu primeiro em sua mente. Tinha de fazê-la, mas era como se sua língua se recusasse a mover. Via-se uma sombra de divertimento na face de O’Brien. Até os seus óculos pareciam irradiar um brilho irônico. Ele sabe, pensou Winston de repente, ele sabe o que vou perguntar! Com tal reflexão, as palavras finalmente brotaram dos seus lábios:

“O que tem na Sala 101?”

A expressão de O’Brien não se alterou em nada. Ele respondeu de maneira seca:

“Você sabe o que tem na Sala 101, Winston. Todo mundo sabe o que tem na Sala 101.”

Levantou o dedo para o homem de jaleco branco. Evidentemente a sessão tinha chegado ao fim. A agulha perfurou o braço de Winston, e ele logo mergulhou em um sono profundo.

3.

“Há três estágios na sua reintegração”, disse O’Brien. “Primeiro o aprendizado, depois a compreensão, e por fim a aceitação. Chegou a hora de você iniciar o segundo estágio.”

Como de costume, Winston estava deitado de costas. Mas já não sentia as amarras tão apertadas quanto antes. Ainda estava preso à cama, é claro, mas agora podia mexer um pouco os joelhos, virar a cabeça e levantar os braços a partir do cotovelo. O mostrador agora também havia deixado de aterrorizá-lo tanto. Ele era capaz de evitar as ondas de dor sempre que mantinha sua mente alerta: em geral, era somente quando demonstrava alguma estupidez que O’Brien acionava a alavanca. Às vezes uma sessão inteira se ava sem que O’Brien sequer recorresse ao mostrador. Ele não se lembrava quantas sessões já haviam ocorrido. Todo o processo parecia se estender por um período imenso, indefinido – possivelmente semanas –; além disso, o intervalo entre as sessões era às vezes de alguns dias, e outras de apenas uma ou duas horas.

“Enquanto esteve aí deitado”, disse O’Brien, “muitas vezes você se perguntou – perguntou até para mim – por que é que o Ministério do Amor dispende tanto tempo e esforço contigo. E quando era livre, também lhe assombrava essencialmente o mesmo tipo de pergunta. Você conseguia perceber os mecanismos da sociedade em que vivia, mas não suas motivações subjacentes. Lembra-se de ter escrito em seu diário, ‘Eu compreendo COMO: não entendo POR QUÊ’? Ora, foi pensando no ‘por quê’ que você começou a duvidar da sua sanidade. Você leu O LIVRO, o livro de Goldstein, ou ao menos alguns trechos dele. Aprendeu algo que ainda não soubesse?”

“Você também o leu?”, quis saber Winston.

“Bem, eu o escrevi. Isto é, fiz parte do grupo de escritores. Nenhum livro é escrito por uma pessoa só, como deve saber.”

“E é verdade o que é dito nele?”

“Como descrição, sim. Mas o programa que ele propõe é fruto de pura insensatez. A acumulação secreta de conhecimentos – uma expansão gradual da compreensão –, e por fim uma rebelião do proletariado – a derrubada do Partido. Você mesmo pôde prever que ele diria isso. Mas é tudo uma bobagem. Os proletários nunca vão se revoltar, nem em mil anos, nem em um milhão. Não podem. E não preciso nem lhe explicar a razão: você já sabe bem qual é. Se um dia já teve alguma esperança de uma insurreição violenta derrubar o Partido, terá de abandoná-la. Não há como derrubá-lo. O domínio do Partido é eterno. Isso deve ser o ponto de partida dos seus pensamentos.”

O’Brien se aproximou um pouco mais da cama:

“Eterno!”, repetiu. “E agora, voltemos à questão do ‘como’ e do ‘por quê’. Você sabe muito bem COMO o Partido se mantém no poder. Agora me diga, POR QUE nos agarramos ao poder? Qual é a nossa real motivação? Por que devemos querer o poder? Vamos, responda”, insistiu, diante do silêncio de Winston.

Mesmo assim, Winston arriscou manter-se mais alguns instantes calado. A verdade é que ele estava dominado por um sentimento de exaustão. Aquele breve lampejo de insanidade entusiasmada tinha voltado à expressão de O’Brien. Ele já sabia o que ele ia dizer. Que o Partido não almejava o poder em benefício próprio, mas para o bem da maioria. Que buscava o poder porque as massas eram feitas de pessoas frágeis e covardes, que não podiam ar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deveriam ser dominadas e sistematicamente iludidas por outras pessoas mais fortes do que elas. Que à humanidade cabe

optar entre a liberdade e a felicidade; e que, para a imensa maioria do povo, a felicidade era a melhor opção. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma facção dedicada que realizava o mal para que o bem pudesse prevalecer, que sacrificava a própria felicidade em benefício da felicidade alheia. O terrível da coisa, refletiu Winston, era que quando O’Brien dizia aquelas coisas, ele realmente acreditava nelas. Dava para ver na sua face. O’Brien sabia tudo. Sabia mil vezes mais que Winston: sabia como o mundo era de fato, conhecia a degradação em que vivia a maior parte da humanidade, assim como as mentiras e barbaridades por meio das quais o Partido a mantinha assim. Ele compreendia tudo isso, colocava tudo na balança, e não fazia diferença: tudo era justificado em função do propósito maior. O que diabos se pode fazer, pensou Winston, contra um lunático que é bem mais inteligente que você? O que se pode fazer contra alguém que presta toda a atenção nos seus argumentos, mas que no fim simplesmente persiste em sua loucura?

“Vocês nos dominam para o nosso próprio bem”, respondeu enfim, com a voz baixinha. “Creem que os seres humanos não têm capacidade para governar a si mesmos, e por isso...”

Mal havia começado a falar, quase soltou um berro. Uma onda de dor percorreu todo o seu corpo. O’Brien tinha movido a alavanca do mostrador para o nível trinta e cinco.

“Isso foi estúpido, Winston, estúpido!”, disse. “Você sabe que já não deveria estar dizendo esse tipo de coisa.”

Voltou a alavanca para a posição inicial e prosseguiu:

“Eu mesmo responderei minha pergunta. O Partido deseja o Poder

exclusivamente para o seu próprio benefício. Não nos interessa o bem-estar dos demais; só nos interessa o poder em si. Nem a riqueza, nem o luxo, nem uma longa vida, nem a felicidade: só o poder pelo poder, o puro poder. O que isso significa você já vai descobrir daqui a pouco. Nós somos diferentes de todas as oligarquias do ado, justamente porque sabemos muito bem o que estamos fazendo. Todas as outras, até mesmo aquelas que mais se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Se os nazistas alemães e os comunistas russos se pareciam conosco em seus métodos, jamais tiveram a coragem de reconhecer a própria motivação. Eles fingiam – talvez até acreditassem nisso – ter tomado o poder sem querer, por um tempo limitado, e que bastaria dobrar a esquina para adentrarem num paraíso em que todos os seres humanos seriam livres e iguais. Nós não somos assim. Sabemos muito bem que ninguém jamais toma o poder com a intenção de um dia largá-lo. O poder não é um meio, é um fim em si mesmo. Não se instaura uma ditadura com o intuito de salvaguardar uma revolução. Faz-se a revolução para instaurar a ditadura. O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora está começando a me entender?”

Winston ficou irado, como já havia ocorrido antes, com o cansaço estampado na face de O’Brien. Seu rosto era forte, encorpado e brutal, cheio de inteligência e de uma espécie de paixão controlada diante da qual ele se sentia impotente; mesmo assim, estava cansado. Tinha olheiras profundas, e as bochechas estavam flácidas e caídas. O’Brien ainda se inclinou sobre ele, aproximando propositalmente seu rosto cansado.

“Você está pensando”, disse, “que o meu rosto está velho e cansado. Está imaginando que falo tanto do poder, mas não tenho o poder para deter o declínio do meu próprio corpo. Ora, será que não compreende, Winston, que o indivíduo é somente uma célula? Que a perda de vigor da célula é justamente o que confere vigor ao organismo como um todo? Por acaso você morre quando corta as unhas?”

O’Brien se afastou da cama e voltou a andar de um lado para o outro, com uma

das mãos enfiada no bolso.

“Nós somos os sacerdotes do poder”, prosseguiu. “Deus é poder. Mas no momento, para você, poder não é nada mais que uma palavra. Portanto, já é tempo de ter uma ideia melhor do que significa poder. A primeira coisa que precisa compreender é que o poder é coletivo. O indivíduo só detém poder na medida em que cessa de ser indivíduo. Você sabe o lema do Partido: ‘Liberdade é Escravidão’. Já lhe ocorreu que a frase é reversível? Escravidão é liberdade. Sozinho, livre, o ser humano é sempre derrotado. Assim deve ser, pois todo ser humano está condenado à morte, que é o maior dos fracassos. Mas se ele for capaz de atingir a submissão total e completa, se conseguir abandonar sua própria identidade, se conseguir se fundir com o Partido a ponto de SER o Partido, então ele será todo-poderoso, será imortal. A segunda coisa que você deve entender é que poder significa o poder sobre todos os seres humanos. Sobre os corpos – mas, acima de tudo, sobre as mentes; já que o poder sobre a matéria – a realidade externa, objetiva, como você a chama – não é importante. Nosso controle sobre a matéria já é absoluto.”

Por um momento Winston voltou a ignorar o mostrador. Fez um esforço violento para tentar se sentar, porém conseguiu tão somente retorcer-se em dores.

“Mas como podem controlar a matéria?”, as palavras surgiram vigorosamente nos lábios. “Vocês não controlam nem o clima, muito menos a lei da gravidade... Isso sem falar nas doenças, na dor, na morte...”

O’Brien o calou com um gesto das mãos. Depois disse:

“Nós controlamos a matéria porque controlamos a mente. A realidade reside dentro da cabeça. Aos poucos você vai aprender, Winston. Não há nada que não possamos fazer. Invisibilidade, levitação – qualquer coisa. Se eu quisesse,

poderia flutuar no ar como uma bolha de sabão. Mas não quero, porque o Partido não quer. Você precisa se livrar dessas ideias do século XIX sobre as leis da Natureza. Nós fazemos as leis da Natureza.”

“Não fazem nada! Vocês não dominam nem mesmo este planeta. E a Eurásia e a Lestásia? Vocês ainda não as conquistaram.”

“Isso não importa. Quando acharmos conveniente, ambas serão conquistadas. E se não as conquistarmos, que diferença isso faz? Podemos muito bem bani-las da existência. A Oceania é o mundo.”

“Mas o mundo em si não a de um grão de poeira. E o ser humano é uma coisa mínima, desamparada! Há quanto tempo existe a humanidade? Por milhões de anos a Terra seguiu inabitada.”

“Absurdo. A Terra tem a mesma idade que nós. Como ela poderia ser mais velha? As coisas só existem por intermédio da consciência humana.”

“Mas o solo está cheio de ossos de animais extintos – mamutes, mastodontes e répteis imensos que viviam aqui muito antes do ser humano surgir.”

“Você já viu tais ossos com os próprios olhos, Winston? Naturalmente que não. Os biólogos do século XIX inventaram tudo isso. Antes do ser humano, não havia nada. Depois do ser humano, se um dia nós formos extintos, nada haverá. Fora do ser humano não há nada.”

“Mas todo o universo está fora de nós. Considere as estrelas. Algumas delas estão a um milhão de anos-luz de distância. Estão para sempre fora do nosso alcance.”

“Que são estrelas?”, perguntou O’Brien, com indiferença. “São pontos de fogo a alguns quilômetros de distância. Nós poderíamos muito bem alcançá-las, se quiséssemos. Ou, se fosse do nosso agrado, poderíamos apagá-las por inteiro. A Terra é o centro do universo. O sol e as estrelas giram em torno dela.”

Winston fez outro movimento convulsivo. Desta vez, no entanto, não disse nada. O’Brien prosseguiu, como se estivesse respondendo a alguma objeção:

“Para certos propósitos, naturalmente, isso não é verdade. Quando navegamos pelo oceano, ou quando prevemos um eclipse, muitas vezes achamos mais conveniente considerar que a Terra gira em torno do Sol e que as estrelas cintilam a milhões de quilômetros de distância. Mas e daí? Por acaso você acha que não somos capazes de produzir um sistema astronômico dual? As estrelas podem estar longe ou perto, conforme nossa necessidade. Você supõe que nossos matemáticos não dão conta do recado? Por ventura se esqueceu do duplipensamento?”

Winston voltou a se encolher na cama. Dissesse o que dissesse, a rapidez da resposta sempre o atingia como um porrete. E no entanto ele sabia, ele SABIA muito bem que tinha razão. A crença de que não existe nada fora da nossa própria mente – ora, certamente deveria haver um meio de demonstrar sua falsidade. Já não tinha sido comprovado há tempos que tal crença é uma falácia? Isso tinha até um nome, mas ele tinha se esquecido dele. Um vago sorriso ressurgiu nos lábios de O’Brien, enquanto ele o fitava atento.

“Eu já lhe disse, Winston, que a metafísica não é o seu forte. A palavra que

busca é solipsismo. Mesmo assim você está errado. Não, não se trata de solipsismo. Quiçá um solipsismo coletivo, se assim preferir. Mas solipsismo é outra coisa: na verdade, é o oposto. Tudo isso não a de uma digressão”, acrescentou, com outro tom de voz. “O poder real, o poder pelo qual devemos lutar dia e noite, não é o poder sobre as coisas, mas o poder sobre os seres humanos.” Fez uma pausa, e nesse instante reassumiu o ar professoral, como se fosse um mestre interrogando um aluno promissor: “Como um homem afirma o seu poder sobre outro, Winston?”

Winston refletiu e respondeu em seguida, “Fazendo-o sofrer.”

“Exato. Fazendo-o sofrer. Só a obediência não basta. A menos que sofra, como pode ter certeza de que ele obedece sua vontade, e não a dele? O poder reside em infligir dor e humilhação; em estraçalhar a mente humana e depois rejuntar os pedacinhos, dando a eles a forma que você bem entender. E então? Está começando a visualizar que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o oposto das estúpidas utopias hedonísticas que os reformadores de outrora imaginavam. É um mundo de medo, traição e tormento, um mundo em que devemos pisotear ou sermos pisoteados, um mundo que se torna MAIS cruel, e não menos, à medida em que se refina e evolui. O progresso em nosso mundo será o progresso da dor. As velhas civilizações proclamavam estar fundamentadas no amor ou na justiça. A nossa está fundamentada no ódio. Em nosso mundo não há espaço para emoções que não o medo, a ira, o sentimento de triunfo e de auto-humilhação. Tudo o mais será destruído – tudo. Já estamos aniquilando os hábitos de pensamento que sobreviveram desde antes da Revolução. Cortamos os laços entre pai e filho, entre homem e homem, e entre homem e mulher. Ninguém mais ousa confiar na esposa, no filho ou no amigo. No futuro, porém, não haverá mais esposas nem amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos de uma galinha. Então, o instinto sexual será erradicado. A procriação será nada mais que uma formalidade anual, como a renovação do carnê de racionamento. Nós aboliremos o orgasmo. Hoje mesmo os nossos neurologistas já trabalham nisso. Não haverá lealdade, exceto a lealdade ao Partido. Não haverá amor, exceto pelo Grande Irmão. Não haverá riso, exceto o do triunfo sobre o inimigo dizimado. Não

haverá arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, já não necessitaremos da ciência. Não haverá distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem qualquer espécie de bem-estar com o transcorrer da vida. Todos os prazeres concorrentes serão aniquilados. Mas sempre – nunca se esqueça disso, Winston –, sempre restará a embriaguez do poder, crescendo constantemente e se tornando cada dia mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gozo da vitória, a sensação de pisotear um inimigo indefeso. Se você quer mesmo visualizar o futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre.”

O’Brien fez uma pausa, como se esperasse algum comentário de Winston, que por sua vez ainda tentava se encolher cada vez mais sobre a cama. Não podia dizer coisa alguma: seu coração parecia estar congelado. Diante disso, O’Brien prosseguiu:

“E lembra bem, lembra que é para sempre. O rosto estará sempre ali para ser pisoteado. O herege, o inimigo da sociedade, estará sempre ali, no chão, derrotado e humilhado. Tudo o que você tem sofrido desde que o pegamos – tudo isso continuará, e ficará pior. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos jamais irão cessar. Será um mundo de terror, e ao mesmo tempo um mundo de triunfo. Quanto mais poderoso for o Partido, menor será a sua tolerância. Quanto mais frágil for a oposição, mais severo será o despotismo. Goldstein e suas heresias viverão para sempre. Todos os dias, em todos os momentos, ele e seus seguidores serão derrotados, desacreditados, ridicularizados e cuspidos – e, não obstante, sempre sobreviverão. Este drama que eu tenho representado contigo ao longo de sete anos continuará sendo representado, geração após geração, sob formas cada vez mais sutis. Sempre teremos os hereges aqui, em nossas mãos, berrando de dor, alquebrados, em estado desprezível – e, no fim, completamente arrependidos, salvos de si mesmos, rastejando aos nossos pés por sua própria vontade. É precisamente esse o mundo que estamos preparando, Winston. Um mundo de vitória após vitória, triunfo após triunfo: uma pressão, uma pressão sem fim sobre o nervo do poder. Vejo que está começando a visualizá-lo. Mas no fim você fará mais do que

visualizar e compreender; você irá aceitá-lo, irá aplaudi-lo de pé – você fará parte dele.”

Nessa altura Winston tinha se recobrado o suficiente para conseguir falar:

“Vocês não podem!”, disse baixinho.

“O que quer dizer com isso, Winston?”

“Vocês não podem criar um mundo como esse que acabou de descrever. É um sonho. É impossível.”

“Por quê?”

“É impossível fundamentar uma civilização no medo, no ódio e na crueldade. Algo assim não teria como durar.”

“Por que não?”

“Ela não teria vitalidade. Iria desintegrar a si mesma. Iria cometer suicídio.”

“Absurdo. Você está com a sensação de que o ódio provoca mais exaustão do que o amor. E por que seria dessa forma? E, se fosse, que diferença isso faia?

Suponhamos que decidíssemos gastar nossas energias mais depressa. Suponhamos que decidíssemos acelerar o ritmo da vida humana, de modo que virássemos velhos senis aos trinta anos. Que diferença isso faria? Será que ainda é incapaz de entender que a morte do indivíduo não é a morte? O Partido é imortal.”

Como de costume, aquela voz drenava a energia de Winston. Além disso, a mera ideia de que O’Brien voltasse a mexer na alavanca do mostrador caso ele persistisse em suas objeções o apavorava. Ainda assim, não conseguiu se manter quieto. Debilmente, sem argumentos, sem nenhum apoio além do horror impotente ao que O’Brien havia dito, voltou ao ataque:

“Não sei. Não me importa. De algum jeito vocês vão fracassar. Alguma coisa irá derrotá-los. A vida, a vida irá derrotá-los.”

“Nós controlamos a vida, Winston, em todos os seus níveis. Você imagina que existe uma coisa, por vezes chamada de natureza humana, que se enfurece com o que fazemos e que um dia se voltará contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os seres humanos são infinitamente maleáveis. Ou será que você voltou à sua velha ideia de que os proletários ou os escravos irão se levantar e nos derrubar? Ora, pode perder a esperança. Eles não têm saída. São como os animais. A humanidade é o Partido. Os outros estão fora do jogo, são cartas fora do baralho.”

“Não me importa. No fim eles ainda irão vencer. Mais cedo ou mais tarde verão vocês do jeito que realmente são, e nesse momento eles irão reduzi-los a pedaços.”

“E por acaso você vê algum indício de que isso esteja ocorrendo? Ou alguma razão para que venha a ocorrer um dia?”

“Não. Mas acredito nisso. Eu SEI que vocês vão fracassar. Tem alguma coisa no universo – não sei bem o quê, um espírito, um princípio – que vocês nunca poderão vencer.”

“Você crê em Deus, Winston?”

“Não.”

“Então que princípio é esse que nos fará fracassar?”

“Não sei. O espírito do Homem.”

“E você se considera um homem?”

“Sim.”

“Bem, se você é um homem, Winston, é o último homem. Sua espécie está extinta. Nós somos os herdeiros. Consegue compreender que está SÓ? Você está fora da história. É inexistente.” O’Brien mudou o tom de voz, falando com mais aspereza: “E por acaso você se considera alguém moralmente superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?”

“Sim, nisso eu me considero superior.”

O’Brien não respondeu. Duas outras vozes estavam falando. ado algum tempo, Winston se deu conta de que uma delas era a sua. Era uma gravação do diálogo entre ele e O’Brien, na noite em que tinha ido se alistar na Irmandade. Assim, ele ouviu sua própria voz jurando mentir, roubar, falsificar, ass, fomentar o consumo de drogas e a prostituição, espalhar doenças venéreas, até mesmo jogar ácido no rosto de crianças. O’Brien fez um pequeno gesto de impaciência, como se dissesse que sequer valia a pena seguir com aquilo. Então, pressionou um botão e as vozes se calaram.

“Levanta dessa cama”, ordenou.

As amarras tinham sido afrouxadas. Winston alcançou o chão com os pés e se ergueu, mal conseguindo se equilibrar em pé.

“Você é o último homem”, disse O’Brien. “Você é o guardião do espírito humano. Agora verá a si mesmo como realmente é. Tire sua roupa.”

Winston desamarrou o barbante que servia como cinto ao seu macacão. O zíper já havia sido arrancado há um bom tempo. Não conseguia recordar-se de ter tirado a roupa toda desde que fora preso. Por baixo do macacão, seu corpo estava coberto com trapos amarelados e imundos, que ele mal pôde reconhecer como os vestígios de roupas íntimas. Ao largá-los no chão, percebeu que havia um espelho de três faces no outro lado da sala. Aproximou-se dele e parou de repente. Um grito involuntário irrompeu dos lábios.

“Vamos”, disse O’Brien. “Vai até perto dos espelhos. Assim também poderá se ver de lado.”

Ele parou porque estava com medo. Uma coisa encurvada, cinzenta e esquelética avançava em sua direção. Era mesmo a sua aparência que dava medo, e não somente o fato de saber que se tratava dele próprio naquele reflexo. Foi para perto do espelho. O rosto da criatura no reflexo parecia se destacar ainda mais, por conta da postura encurvada. Era um rosto cansado, abatido, que lembrava o de um pássaro preso na gaiola, com uma testa ossuda que se emendava com a cabeça calva, um nariz entortado, uma boca quase destituída de lábios, e uma expressão deformada que, no entanto, guardava um par de olhos que insistiam em se manter enérgicos e observadores. Era evidente que aquele era o seu rosto, mas ele parecia ainda mais mudado do que o seu espírito. As emoções que ele expressava deviam ser diferentes daquelas que ele sentia. Estava parcialmente calvo, era inegável. A princípio, pensou que seu cabelo também tinha ficado grisalho, mas era o próprio couro cabeludo que tinha se tornado acinzentado. Exceto pelas mãos e o círculo do rosto, todo o seu corpo tinha aquela mesma cor cinza, de sujeira antiga e incrustada. Aqui e ali, debaixo da sujeira, achavam-se cicatrizes vermelhas de ferimentos, e perto do tornozelo a sua úlcera varicosa era como uma massa inflamada que soltava cascas de pele. No entanto, o que mais o aterrorizava era o aspecto geral daquele corpo. O tórax, com as costelas à mostra, havia ficado fino como o de um esqueleto; as pernas também tinham emagrecido tanto que os joelhos eram mais grossos do que as coxas. Agora podia perceber o que O’Brien tinha em mente ao lhe sugerir que se visse de lado. A curvatura da espinha era espantosa. Os ombros magros lançavam-se para a frente, transformando o peito numa espécie de cavidade. O pescoço magro e ossudo parecia se envergar sob o peso da cabeça. Se alguém lhe perguntasse, poderia muito bem dizer que se tratava do corpo de um homem com uns sessenta anos, vítima de alguma doença maligna.

“Por vezes você pensou”, disse O’Brien, “que o meu rosto – o rosto de um membro do Partido Interno – parecia velho e cansado. O que acha agora da própria aparência?”

Agarrou Winston pelo ombro e o virou, de modo que os dois ficaram face a face.

“Olha o estado em que se encontra!”, disse. “Olha essa imundice que recobre o seu corpo. Olha toda essa sujeita entre suas unhas. Olha essa ferida nojenta na sua perna. Sabia que você fede como um bode? É provável que sequer sinta mais o próprio mau cheiro. Veja como está magro. Pode ver? Com o polegar e o indicador, posso dar a volta em seu bíceps. Se quisesse, eu poderia partir o seu pescoço como se fosse uma cenoura. Sabia que você perdeu vinte e cinco quilos desde que veio para cá? Até seus cabelos estão caindo aos tufos. Veja só!”, e puxou o cabelo de Winston, arrancando facilmente um punhado. “Abra a boca. Restarem o quê? Nove, dez, onze dentes. Quantos você tinha quando chegou? E os poucos que restaram caem praticamente sozinhos. Olha!”

Arrancou um dos incisivos restantes com o polegar e o indicador. Uma pontada de dor percorreu a boca de Winston. O’Brien olhou para o dente arrancado em sua mão e em seguida o atirou no chão.

“Você está apodrecendo”, disse. “Está caindo aos pedaços. Que é você? Um saco de lixo. Agora se vire e olha de novo no espelho. Está vendo essa coisa olhando de volta? É o último homem. Se você é um ser humano, aquilo ali é a humanidade inteira. Agora pode se vestir.”

Winston começou a se vestir com gestos lentos e rígidos. Até aquele momento não tinha notado como estava magro e fraco. Só um pensamento lhe preenchia a mente: devia ter estado ali, preso, por muito mais tempo do que havia imaginado. De repente, vendo os trapos miseráveis que o vestiam, foi dominado por um profundo sentimento de pena pelo seu corpo arruinado. Sem saber ao certo o que fazia, despencou sobre uma banqueta ao lado da cama, aos prantos. Tinha consciência da sua feiura e falta de graça: um feixe de ossos, embrulhado em roupas imundas, sentado e derramando lágrimas sob a luz branca. Nesse momento O’Brien pousou a mão em seu ombro, quase com afeto, e tentou reconfortá-lo:

“Isso não vai durar para sempre. Você pode escapar, basta querer. Tudo depende de você, só de você.”

“Você fez isso!”, soluçou Winston. “A culpa é sua. Você me reduziu a este estado.”

“Não, Winston. Foi você mesmo o culpado. Isso é o que você aceitou quando se voltou contra o Partido. Tudo já estava contido no primeiro ato. Não se ou nada que você mesmo não tivesse previsto.”

Fez uma breve pausa. Depois continuou:

“Nós o massacramos, Winston. Quebramos você, vencemos sua resistência. Você viu em que estado se encontra seu próprio corpo. Sua mente está no mesmo estado. Não creio que ainda lhe reste muito orgulho. Você foi chutado, açoitado e insultado; você gritou de dor, rolou pelo chão, rastejou sobre o próprio sangue, o próprio vômito. Implorou misericórdia, traiu a tudo e a todos. Pode imaginar alguma degradação que ainda não tenha ado?”

Winston havia parado de chorar, embora algumas lágrimas ainda escorressem pela face. Ergueu o olhar para O’Brien e respondeu:

“Não traí Julia.”

O’Brien olhou de volta para ele, contemplativo.

“Não”, concordou. “Não. Isso é bem verdade. Não traiu Julia.”

O coração de Winston foi novamente inundado por aquela reverência peculiar pelo seu torturador, que nada parecia ser capaz de destruir. Como era inteligente, pensou ele, como era inteligente! O’Brien nunca deixava de compreender exatamente o que lhe era dito. Qualquer outro torturador responderia de pronto que ele HAVIA SIM traído Julia. Afinal, o que é que não lhe tinha sido extraído à base de tortura? Ele lhes contou tudo o que sabia a respeito dela, seus hábitos, seu caráter, sua vida até ali. Confessou até os mínimos detalhes tudo que havia se ado em seus encontros, tudo o que ele havia lhe dito, tudo o que ela havia lhe dito, suas refeições obtidas no mercado negro, seus adultérios, seus planos vagos contra o Partido – absolutamente tudo. No entanto, naquele sentido específico em que tinha usado a palavra, de fato não a tinha traído: não havia deixado de amá-la. Seus sentimentos por ela jaziam intactos. E O’Brien percebeu tudo isso sem que fosse sequer necessário explicar.

“Me diga”, disse Winston, “quando diabos vocês vão me matar?”

“Ainda pode faltar um longo tempo para isso”, respondeu O’Brien. “Você é um caso difícil. Mas não perca a esperança. Cedo ou tarde, todos obtém sua cura. No fim, aí sim, lhe daremos o tiro de misericórdia.”

4.

Ele estava muito melhor. Engordava e se fortalecia dia após dia, se é que fazia sentido se falar em dias naquele lugar. A luz branca e o zumbido eram os mesmos de sempre, mas a cela era um pouco mais confortável do que as outras em que Winston esteve até ali. Ela tinha uma cama de tábuas, com colchão e um travesseiro, além de um banquinho para se sentar. Tinham lhe dado um banho e permitiam, com certa frequência, que ele pudesse se lavar em uma bacia. Tinha direito até mesmo de usar água quente. Haviam providenciado novas roupas íntimas, e um macacão limpo. Receitaram uma pomada para aliviar a dor de sua úlcera varicosa. Finalmente, arrancaram os dentes que lhe restavam e lhe deram uma dentadura novinha. Provavelmente haviam se ado semanas, quiçá meses. Agora seria possível marcar a agem do tempo, se tivesse tal interesse, pois eles o alimentavam em intervalos aparentemente regulares. Ele calculou que recebia três refeições a cada vinte e quatro horas. Por vezes se perguntava – sem real disposição para buscar a resposta – se as recebia à noite ou durante o dia. A comida era surpreendentemente boa, com carne a cada três refeições. Certa vez, apareceu até mesmo um maço de cigarros. Winston não tinha fósforos, porém o guarda silencioso que lhe trazia comida acendia os cigarros para ele. Da primeira vez que fumou um cigarro ficou bem enjoado, mas continuou insistindo e, fumando meio cigarro após cada refeição, fez o maço durar bastante tempo. Também tinham lhe dado uma lousa branca com um toco de lápis atado num dos cantos por um barbante. De início, não fez uso dela. Mesmo quando estava desperto, sentia-se inteiramente entorpecido. Muitas vezes simplesmente ficava largado na cama entre uma e outra refeição, praticamente imóvel, ora dormindo, ora mergulhado em devaneios confusos, durante os quais tinha dificuldade até para abrir os olhos. Fazia um bom tempo que ele tinha se acostumado a dormir com aquela luz forte no rosto. Não parecia fazer diferença, à exceção dos sonhos, que se tornavam mais coerentes. Sonhava bastante, e eram sempre sonhos alegres. Estava na Terra Dourada, ou sentado entre ruínas imensas, gloriosas, banhadas pelo sol, com sua mãe, com Julia, com O’Brien – ele não fazia nada, apenas ficava lá junto deles, sob o sol, conversando sobre coisas

pacíficas. Os pensamentos que surgiam em sua mente quando desperto eram quase todos sobre tais sonhos. Winston parecia ter perdido a capacidade de colocar seu intelecto para se esforçar nas elucubrações de outrora, agora que o estímulo da tortura tinha sido removido. Mas não estava entediado, na verdade não sentia o menor desejo de conversar ou se distrair. O simples fato de estar ali só, sem tortura nem interrogatório, tendo o que comer e sentindo-se limpo, já lhe deixava inteiramente satisfeito. Aos poucos, começou a dormir menos tempo, ainda que não tivesse ânimo para se levantar da cama. Só queria ficar quieto, totalmente quieto, e perceber a vitalidade retornando ao seu corpo. Apalpava certas partes de si mesmo, procurando certificar-se que não era ilusória aquela sensação dos músculos ficando mais cheios, e a pele menos flácida. Por fim, teve a certeza de que estava realmente engordando; decerto as coxas estavam mais grossas que os joelhos. Depois disso, com certa relutância inicial, começou a prática de exercícios regulares. Em pouco tempo já era capaz de andar uns três quilômetros – medidos pelas adas no interior da cela –, e seus ombros encurvados começaram a se endireitar. Tentou exercícios mais elaborados, e ficou pasmo e envergonhado ao se dar conta das coisas que já não conseguia mais fazer. Ele conseguia andar, mas não apertar o o. Não conseguia segurar o banquinho com o braço estendido. Não conseguia se equilibrar numa perna só sem cair. Quando agachava, não conseguia mais erguer o corpo sem sofrer de dores terríveis nas coxas e nas panturrilhas. Uma vez se estendeu de bruços e tentou fazer abdominais. Foi em vão: não conseguiu sair nem um centímetro do chão. Entretanto, bastaram mais alguns dias, e mais algumas refeições, para que tivesse sucesso na empreitada. ado mais algum tempo, já foi capaz de fazer seis abdominais em sequência. Assim, ele começou a se orgulhar de seu corpo e a crer que o seu rosto também estaria voltando ao normal. Só quando calhava de ar a mão na parte calva da cabeça é que Winston se lembrava do rosto arruinado e cheio de cicatrizes que viu naquele espelho. Sua mente foi se tornando cada vez mais ativa. Sentava-se na cama com as costas apoiadas na parede e a lousa sobre os joelhos, e se colocava a trabalhar, deliberadamente, na tarefa de se reeducar. Capitulara: disso não havia dúvida. Na verdade, percebia agora que já estava

pronto para a rendição muito antes de tomar essa decisão. Desde que chegou ao Ministério do Amor – e mesmo naqueles minutos em que ele e Julia, paralisados e sem ação no meio do quarto, ouviam a voz de ferro vinda da teletela lhes ordenando o que fazer – Winston já havia compreendido a própria futilidade, a inutilidade de sua tentativa de rebelar-se contra o Partido. Agora sabia que a Polícia do Pensamento já o vigiava há sete anos, como quem examina uma besouro com uma lupa. Não havia ato físico nem palavra dita em voz alta que eles não tivessem notado, nenhuma associação de ideias que não tivessem sido capazes de inferir. Até mesmo o grão de pó esbranquiçado que Winston havia deixado sobre a capa do diário eles recolocavam meticulosamente no lugar. Haviam lhe mostrado gravações e fotos. Em algumas fotos, ele aparecia ao lado de Julia. Sim, até quando eles... Enfim, não podia mais lutar contra o Partido. Além do mais, o Partido tinha razão. Devia ter: como poderia estar equivocado um cérebro imortal e coletivo? Por meio de que critérios externos seus julgamentos poderiam ser verificados? A sanidade era estatística. Era somente uma questão de aprender a pensar como eles pensavam. Se ao menos...! O lápis parecia grosso e desajeitado entre seus dedos. Começou a anotar os pensamentos que lhe surgiam na mente. Primeiro escreveu em maiúsculas grandes e rudimentares:

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

Depois, quase sem tirar o lápis do papel, escreveu na linha debaixo:

DOIS MAIS DOIS SÃO CINCO

Seguiu-se então uma espécie de pausa. Sua mente, como se buscasse fugir de alguma coisa, parecia ser incapaz de se concentrar. Ele sabia que sabia o que vinha em seguida, mas naquele momento não podia se lembrar. Quando enfim se

lembrou, foi através de uma reflexão consciente; a frase não surgiu por conta própria. Escreveu:

DEUS É PODER

Aceitava tudo. O ado era alterável. O ado nunca havia sido alterado. A Oceania estava em guerra com a Lestásia. A Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia. Jones, Aaronson e Rutherford eram culpados pelos crimes de que haviam sido acusados. Ele nunca viu a tal foto que provava a inocência deles. A foto não existia: ele simplesmente a inventou. Também se lembrou de coisas que contradiziam isso, mas eram somente memórias falsas, o produto do seu autoengano. Como tudo era fácil! Bastava se render, que tudo o mais vinha logo em seguida. Era como nadar contra uma correnteza que o empurrasse para trás, por mais força que você fizesse, e depois subitamente decidir se virar para o outro lado e deixar a correnteza levá-lo, ao invés de se opor a ela. Nada havia se alterado, exceto a sua própria atitude; seja como for, o que estava predestinado a acontecer, sempre acontecia. Winston já não sabia direito por que tinha se rebelado em primeiro lugar. Tudo era fácil, exceto... Qualquer coisa podia ser verdade. As chamadas leis da natureza eram pura tolice. A lei da gravidade era uma bobagem. “Se eu quisesse”, disse O’Brien, “eu poderia flutuar no ar como uma bolha de sabão.” Winston se pôs a refletir. “Se ele PENSAR que está flutuando no ar, e se, ao mesmo tempo, eu também PENSAR que o vejo flutuando, daí a coisa acontece.” De repente, como um destroço de navio naufragado que surge na superfície das águas, o pensamento emergiu em sua mente: “Não ocorre de fato. Imaginamos tudo. É uma alucinação.” Winston de imediato fez o pensamento submergir outra vez. Ora, a falácia era óbvia. Ela partia do pressuposto de que em algum lugar, fora da pessoa em si, existia um mundo “real” onde coisas “reais” ocorriam. Mas como era possível existir um mundo assim? O que nós todos sabemos das coisas, exceto através de nossa mente? Tudo o que acontece, acontece na mente. E o que acontece em todas as mentes, acontece de fato. Não teve grandes dificuldades em se livrar daquela falácia, de modo que não corria o menor risco de sucumbir a ela. Não obstante, se deu conta de que ela

não devia sequer ter lhe ocorrido. A mente precisava desenvolver um ponto cego sempre que um pensamento perigoso viesse à tona. Todo o processo deveria ser automático, instintivo. CRIMEPARAR, era o seu nome em Novalíngua. ou a praticar o crimeparar. Apresentava a si mesmo algumas preposições – “o Partido afirma que a Terra é plana”, “o Partido afirma que o gelo é mais pesado que a água” – e treinava para não ver ou não compreender os argumentos que as contradiziam. Mas não era nada fácil. Requeria grandes recursos de raciocínio e improvisação. Os problemas aritméticos provocados por uma afirmativa do tipo “dois mais dois são cinco” estavam fora do seu alcance intelectual. Assim, também se fazia necessário praticar uma espécie de atletismo mental: num momento se valer do raciocínio lógico mais sofisticado, e no momento seguinte ignorar os absurdos lógicos mais grosseiros. A estupidez era tão necessária quanto a inteligência, e igualmente difícil de ser conquistada. Durante todo o tempo, uma parte do seu espírito se perguntava quando eles o matariam. “Tudo depende de você, só de você”, disse O’Brien; mas ele sabia que não havia um ato consciente que lhe permitisse apressar as coisas. Poderia ser dali a dez minutos ou dali a dez anos. Poderiam jogá-lo numa cela solitária por anos a fio; poderiam enviá-lo para um campo de trabalhos forçados; poderiam até mesmo libertá-lo por algum tempo, como faziam às vezes. Era perfeitamente possível que, antes de ser morto, todo o drama da prisão e do interrogatório fosse reencenado. A única certeza era que a morte jamais viria no momento esperado. Era tradição – uma tradição tácita: de alguma forma a pessoa sabia, embora ninguém nunca tivesse lhe contado – que o tiro fosse dado pelas costas, sempre na nuca, sem aviso prévio, enquanto o preso caminhava pelo corredor entre uma cela e outra. Um dia – embora “um dia” não fosse a expressão adequada; podia muito bem ter ocorrido no meio da noite – Winston mergulhou num sonho estranho, feliz. Ia caminhando pelo corredor, à espera do tiro. Sabia que viria a qualquer momento. Tudo estava resolvido, esclarecido, reconciliado. Não havia mais dúvidas, nem discussões, nem dor, nem medo. Sentia o corpo saudável e forte. Caminhava com facilidade, com uma alegria no peito, e com a sensação de estar andando à luz do sol. Não se encontrava mais nos estreitos corredores brancos do Ministério do Amor, mas sim na imensa agem ensolarada, de um quilômetro de extensão, em que esteve durante o seu delírio induzido pelas drogas. Estava na Terra Dourada, percorrendo a trilha que cortava o pasto comido pelos coelhos. Podia sentir a grama baixa e vigorosa sob os pés, e os suaves raios de

sol no rosto. Na orla do campo via os ulmeiros, cujas folhas dançavam suavemente com a brisa, e mais adiante o riozinho onde os robalos nadavam nas poças verdes à sombra dos chorões. De repente, saltou da cama com um choque de horror. O suor escorria em suas costas. Ouviu a sua própria voz gritando:

“Julia! Julia! Julia, meu amor! Julia!”

Por um instante, teve uma alucinação esmagadora da sua presença. Ela parecia estar não apenas com ele, mas dentro dele. Era como se tivesse penetrado pele adentro. Naquele instante sentiu por ela um amor infinitamente maior do que quando estavam juntos e livres. Ao mesmo tempo, sentiu que ela continuava viva, e precisava de ajuda. Deitou-se novamente e buscou se recompor. O que havia feito? Quantos anos havia acrescentado à sua pena somente por aquele momento de fraqueza? Dali a pouco tempo ouviria o barulho das botas marchando no corredor, em direção à sua cela. Eles jamais deixariam uma explosão daquelas sem castigo. Agora saberiam, se já não soubessem, que ele estava rompendo o acordo feito com eles. Obedecia ao Partido, mas ainda o odiava. No ado, tinha ocultado a mente herege sob a aparência de conformidade. Agora, recuava mais um o: tinha se rendido na própria mente; no entanto, rendeu-se na esperança de manter a profundidade do coração inviolada. Sabia que estava agindo errado, mas preferia estar agindo errado. Eles perceberiam isso – O’Brien certamente perceberia. Winston tinha confessado tudo isso com aquele grito estúpido. Teria de recomeçar tudo outra vez. Poderia levar anos. Levou a mão ao rosto, tentando se familiarizar com a nova fisionomia. Havia sulcos profundos nas bochechas, as maçãs do rosto eram salientes, o nariz achatado. Além disso, depois que se viu pela última vez no espelho, eles tinham lhe dado dentaduras novas. Não seria fácil manter a inescrutabilidade sem saber como era seu rosto. De qualquer forma, não bastaria manter as feições sob controle. Pela primeira vez Winston se deu conta de que para um segredo ser devidamente guardado, ele também deveria ser ocultado da própria consciência. Era preciso saber todo o

tempo da presença do segredo, mas, enquanto fosse possível, não poderia permitir que ele surgisse na consciência em si sob nenhuma forma a que alguém pudesse nomear. De agora em diante, já não bastava somente pensar direito: era preciso sentir direito, sonhar direito. E todo o seu ódio tinha de ser mantido trancafiado dentro de si, permanentemente, como um nódulo que fosse parte dele mesmo, e ao mesmo tempo não tivesse nenhuma relação com o resto do seu ser, uma espécie de cisto. Um dia decidiriam matá-lo. Não era possível afirmar quando aconteceria, mas seria possível intuir alguns segundos antes. Era sempre pelas costas, caminhando num corredor. Dez segundos seriam o suficiente. E então, de repente, sem que uma palavra fosse pronunciada, sem que uma ada fosse interrompida, sem que uma linha do rosto se alterasse, de repente toda a camuflagem cairia, e bum!, as baterias do seu ódio ressoariam. O ódio o inundaria como uma grande labareda, trovejante. E, quase no mesmo instante, bangue!, o gatilho seria apertado, tarde demais, ou cedo demais. Teriam destruído seu cérebro antes de reformá-lo. O pensamento herege permaneceria impune, sem arrependimento, para sempre fora do alcance do seu poder. Teriam aberto um buraco de bala em sua própria perfeição. Morrer, morrer ainda odiando o Partido – eis a liberdade. Winston fechou os olhos. Era mais difícil do que aceitar uma disciplina intelectual. Era uma questão de degradar a si mesmo, de mutilar a si mesmo. Tinha de mergulhar na maior das imundícies. O que era o mais horrível e asqueroso de tudo? Pensou no Grande Irmão. O rosto imenso (por vê-lo constantemente nos cartazes, sempre o imaginava como tendo um metro de largura), com o bigode preto espesso e os olhos que seguiam a pessoa de um lado para o outro, pareceu adentrar por conta própria a mente de Winston. Quais eram os seus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão? Ouviu-se uma marcha pesada de botas pelo corredor. A porta de aço abriu-se com um estrondo. O’Brien entrou na cela. Logo atrás dele vinham o oficial de rosto de cera e os guardas de uniforme preto.

“Levanta”, disse O’Brien. “Venha até aqui.”

Winston obedeceu, e se postou à sua frente. O’Brien agarrou seus ombros com as mãos e o olhou bem de pertinho.

“Você andou pensando em me ludibriar”, disse. “Foi uma bela idiotice. Endireita o corpo. Olha em meus olhos.”

Fez uma pausa e prosseguiu, dessa vez com a voz mais serena e afável:

“Você está melhorando. Intelectualmente, já não há mais quase nada de errado contigo. É só emocionalmente que não consegue evoluir. Diga-me, Winston – e, lembre-se, nada de mentiras; já sabe que sempre percebo quando você mente –, diga-me, quais são os seus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão?”

“Eu o odeio.”

“Você o odeia. Muito bem. Então chegou a hora de dar o seu último o. É preciso que você ame o Grande Irmão. Não basta obedecer: é preciso amar.”

Soltou os ombros de Winston, e em seguida o empurrou levemente na direção dos guardas.

“Sala 101”, disse.

5.

A cada estágio do seu encarceramento ele soube, ou pensava saber, em que ponto do edifício sem janelas se encontrava. Era bem possível que houvesse uma ligeira diferença na pressão do ar. As celas em que ele foi espancado pelos guardas ficavam no subsolo. O quarto onde O’Brien o interrogou ficava num ponto bem elevado, perto da cobertura. Mas o lugar onde ele estava agora ficava vários metros abaixo do nível do solo, tão profundo quanto era possível chegar. O espaço era maior do que o da grande maioria das celas em que ele esteve. No entanto, Winston mal reparou no que havia ao seu redor. Tudo que pôde notar foi a existência de duas pequenas mesas, bem na sua frente, ambas forradas com feltro verde. Uma ficava a cerca de um ou dois metros, e a outra estava mais afastada, próximo à porta. Estava novamente atado, dessa vez numa cadeira. Os nós eram tão firmes que ele não conseguia mover nem a cabeça. Uma espécie de almofada comprimia a sua nuca, de modo que ele era obrigado a olhar para frente. Ele ficou alguns momentos a sós. Depois eventualmente a porta se abriu, e O’Brien entrou.

“Uma vez você me perguntou o que tinha na Sala 101. Eu lhe disse que você já sabia a resposta. Todos sabem: o que há na Sala 101 é a pior coisa do mundo.”

A porta voltou a abrir. Um guarda entrou, trazendo alguma coisa feita de arame, uma espécie de caixa ou cesta. Deixou-a na mesa mais distante. Por conta de onde O’Brien estava, entre ele e a mesa, Winston não conseguiu ver direito o que era.

“Ora, a pior coisa do mundo”, disse O’Brien, “varia de indivíduo para indivíduo. Pode ser que alguém abomine a ideia de ser enterrado vivo, ou morrer queimado

numa grande fogueira, ou afogado, ou empalado, ou de cinquenta outras maneiras diferentes. Há casos em que se trata do medo de algo trivial, porém não menos mortífero.”

Então se afastou um pouco para o lado, de modo a permitir que Winston tivesse uma boa visão do que estava sobre a mesa. Era uma gaiola de arame retangular, com uma alça no topo. Fixada na parte frontal, via-se algo que lembrava uma máscara de esgrima, com a superfície côncava voltada para fora. Embora a gaiola estivesse a três ou quatro metros de distância, Winston pôde ver que ela era dividida longitudinalmente em dois compartimentos, e que em cada um deles havia um animal. Eram ratos.

“No seu caso”, disse O’Brien, “a pior coisa do mundo são ratos.”

Uma espécie de tremor premonitório, um medo indefinido, atravessou Winston assim que ele ou os olhos pela gaiola. Mas naquele instante, a utilidade daquela espécie de máscara de repente se esclareceu. Teve a impressão de que seus intestinos viraram uma cachoeira.

“Não pode fazer isso!”, gritou, com uma vozinha fraca. “Você não faria isso, não faria! É impossível.”

“Por acaso se lembra”, disse O’Brien, “dos momentos de pânico que se avam em seus sonhos? Havia uma muralha de escuridão na sua frente, e um rugido alcançava seus ouvidos. Havia algo terrível do outro lado da muralha. Você sabia que sabia o que era, mas não ousava trazer à consciência. Do outro lado havia ratos.”

“O’Brien!”, exclamou Winston, fazendo um esforço para manter a voz sob controle. “Você sabe que isso não é necessário. O que quer que eu faça?”

O’Brien não lhe respondeu diretamente. Quando falou, assumiu o ar professoral que de vez em quando gostava de mostrar. Pareceu reflexivo, com os olhos perdidos na distância, como se estivesse se dirigindo a algum tipo de plateia atrás de Winston.

“Por si mesma”, disse, “a dor nem sempre é o suficiente. Há ocasiões em que o ser humano resiste à dor, mesmo sob risco de morte. Mas para todos existe algo inável – algo que não pode sequer ser visto. A coragem e a covardia não têm nada a ver com isso. Se alguém cai de um lugar alto, não é covardia buscar uma corda para se agarrar. Se alguém está em águas profundas, não é covardia subir à superfície para respirar. É tão somente um instinto, um instinto que não pode ser desobedecido. É justamente o que ocorre com os ratos. Você não pode tolerá-los, eles são ináveis. São uma forma de pressão a que você não pode resistir, ainda que queira. Assim, você fará o que queremos que faça.”

“Mas o que é, o que é? Como posso fazer o que querem, se não sei o que é?”

O’Brien foi pegar a gaiola e a trouxe até a mesa mais próxima. Pousou-a cuidadosamente sobre o feltro verde. Winston podia ouvir a própria pulsação martelando seus ouvidos. Tinha a sensação de estar na mais absoluta solidão. Encontrava-se em meio a uma planície vasta e inteiramente vazia, um deserto sem relevo, banhado pela luz do sol, onde todos os sons lhe chegavam de muito, muito longe. Entretanto, a gaiola com os ratos não estava a mais de dois metros de distância. Eram ratos imensos. Tinham a idade em que os focinhos se tornavam rombudos e ferozes, e os pelos deixam de ser acinzentados, assumindo uma coloração marrom.

“O rato”, disse O’Brien, ainda falando à plateia invisível, “embora seja um roedor, é carnívoro. Você bem sabe. Certamente ouviu falar das coisas que se am às vezes nos bairros pobres desta cidade. Em algumas ruas, as mulheres não têm coragem de deixar seus bebês sozinhos em casa sequer por cinco minutos. Elas sabem que eles estariam sujeitos aos ataques dos ratos. Em muito pouco tempo eles são capazes de devorar uma criancinha, de roê-la até os ossos. Também podem atacar gente doente e moribunda. Eles demonstram ter uma assombrosa inteligência para identificar seres humanos indefesos.”

Nesse instante alguns guinchos irromperam da gaiola. Para Winston, no entanto, eles pareciam vir de muito longe. Os ratos estavam brigando; tentavam se atingir através da grade interna que os mantinham separados. Winston também pôde ouvir um gemido de desespero profundo. Ele teve a nítida impressão de que não veio dele, mas de algum lugar lá fora. O’Brien ergueu a gaiola e, ao fazê-lo, pressionou algum mecanismo. Ouviu-se um estalo. Winston se esforçava freneticamente para se libertar da cadeira onde estava atado. Era inútil, pois todas as partes do seu corpo, incluindo a cabeça, estavam muito bem presas. O’Brien aproximou a gaiola. Agora ela estava a menos de um metro do rosto de Winston.

“Eu pressionei a primeira alavanca”, explicou O’Brien. “Imagino que a essa altura você já tenha compreendido como todo o mecanismo funciona. Essa máscara vai se encaixar no seu rosto, sem deixar nenhuma fresta. Quando eu pressionar essa outra alavanca, a porta da gaiola vai se elevar, de modo que em seguida essas duas criaturas famintas sairão de onde estão como balas. Já viu como um rato consegue saltar pelo ar? Eles irão se lançar contra o seu rosto e, de imediato, começarão a devorá-lo. Às vezes eles começam pelos olhos. Às vezes penetram pelas bochechas e se banqueteiam com a língua.”

A gaiola estava cada vez mais próxima; dali a um pouco a máscara iria se acoplar ao rosto de Winston. Ele ouvia uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, do alto da sua cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico. Pensar, pensar, mesmo que faltasse só uma fração de segundo – pensar

era a sua única esperança. De repente, o cheiro pútrido das criaturas alcançou seu nariz. Foi dominado por uma violenta convulsão de náusea que por um triz não lhe fez perder a consciência. Tudo tinha ficado escuro. Por um instante, sentiu que não ava de um louco, um animal que uivava. No entanto, ele retornou das trevas agarrado a uma ideia: havia uma, e somente uma maneira de ser salvar; ele precisava colocar outro ser humano, o CORPO de outro ser humano, entre ele e os ratos. A circunferência da máscara era grande o suficiente para tapar a visão de tudo mais. A porta da gaiola estava a dois ou três palmos do seu rosto. Os ratos já sabiam o que ia acontecer. Um deles já saltava no ar, e o outro, um veterano escamoso dos esgotos, já se encontrava de pé, com as patinhas rosadas apoiadas na grade, farejando com ferocidade. Winston pôde ver os bigodes e os dentes amarelados. Um tenebroso pânico voltou a lhe dominar. Estava cego, indefeso, insano.

“Este era um castigo comum na China Imperial”, disse O’Brien, mais didático do que nunca.

Agora a máscara estava bem próxima de se acoplar ao rosto de Winston. O arame já roçava a sua face. E então... Não, não era alívio, era apenas esperança, tão somente um fragmento de esperança. Talvez já fosse tarde, tarde demais. Porém subitamente ele compreendera que em todo o mundo havia somente UMA pessoa a quem ele poderia transferir o seu castigo – UM corpo que teria como ser interposto entre ele e os ratos. Então, inteiramente fora de si, ele começou a gritar, gritar e gritar, repetidamente:

“Façam isso com a Julia! Façam isso com a Julia! Não comigo! Julia! Não me importa o que façam a ela. Deixem que eles devorem o seu rosto, deixem que roam até os ossos. Eu não! Julia! Eu não!”

Winston estava caindo para trás, por uma vasta profundidade, afastando-se dos ratos. Continuava atado à cadeira, mas caía sem parar, atravessando o chão, as paredes do edifício, a terra e os oceanos, até furar a atmosfera e despencar no cosmos, no vácuo que existe entre as estrelas – para bem longe dos ratos, e cada vez mais longe. Até que estava a anos-luz de distância, mesmo assim tendo O’Brien sempre ao seu lado. Continuava a sentir o arame frio roçando o rosto. No entanto, dentro das trevas que o cercavam, ouviu outro estalo metálico, e soube que a gaiola não tinha sido aberta, mas fechada.

6.

O Café Castanheira estava praticamente vazio. Um raio de sol, entrando por uma janela, tingia as mesas empoeiradas com dourado. Era a hora solitária das três da tarde. Uma música sem graça emergia das teletelas. Winston estava sentado em seu lugar habitual, contemplando o copo vazio na mesa. De vez em quando desviava o olhar para um rosto descomunal, e o encarava da parede oposta. O GRANDE IRMÃO ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ, dizia a legenda. Sem que fosse preciso chamá-lo, o garçom veio e encheu seu copo com Gim Vitória, acrescentando algumas gotas de outra garrafa com a rolha atravessada por uma espécie de canudo. Era sacarina aromatizada com cravo em essência, a especialidade do Café. Winston escutava a teletela. No momento, sua programação era estritamente musical, mas havia sempre a possibilidade de, a qualquer momento, surgir algum novo boletim do Ministério da Paz. As notícias do fronte africano eram extremamente inquietantes. Durante todo o dia, volta e meia aquilo voltava à mente. Um exército eurasiano (a Oceania estava em guerra com a Eurásia: a Oceania sempre esteve em guerra com a Eurásia) avançava no sentido sul com uma velocidade espantosa. O informe do meio-dia não mencionava nenhuma região específica, mas era bem provável que a foz do Congo já tivesse se transformado num campo de batalha. Brazzaville e Leopoldville corriam grande perigo. Nem era necessário consultar o mapa para compreender o significado daquilo. Não era apenas uma questão de perder a África Central: pela primeira vez em toda a guerra, o território da Oceania estava ameaçado. Uma emoção violenta, que não era exatamente medo, mas uma espécie de excitação indiferenciada, se acendeu dentro dele, e depois voltou a se apagar. Então, Winston deixou a guerra para lá. A verdade é que nos últimos tempos ele já não era capaz de fixar seu pensamento em um assunto específico por mais de alguns minutos. Ergueu seu copo e sorveu toda a bebida num gole só. Como sempre, o gim fez com que sentisse um arrepio, até mesmo uma leve ânsia de vômito. A essência de cravos e a sacarina, com seu gosto enjoativo, já eram suficientemente repugnantes, entretanto não venciam o cheiro oleoso do álcool; e o pior de tudo era que o bafo do gim, que permanecia com ele noite e dia e, em

sua mente, estava indissoluvelmente mesclado com o fedor daqueles... Winston nunca os nomeava, sequer em pensamento; e, até onde era possível, jamais os visualizava. Eles eram uma coisa que percebia de maneira praticamente inconsciente, flutuando próximo do rosto, um mau cheiro que se agarrava a suas narinas. Quando o gim tentou retornar por onde entrou, um arroto emergiu de seus lábios escurecidos. Depois que deixou a prisão, ele tinha engordado e recuperado sua antiga cor – na verdade, tinha mais cor do que antes. Suas feições haviam engrossado, a pele do nariz e das bochechas havia se tornado avermelhada, e até a careca tinha agora um tom de rosa escuro. Um garçom, novamente sem ser chamado, trouxe o tabuleiro de xadrez e o Times, aberto na página do problema de xadrez do dia. Depois, notando que o seu copo estava vazio, trouxe a garrafa de gim e voltou e enchê-lo. Não era mesmo preciso pedir nada. Eles conheciam os seus hábitos. O tabuleiro de xadrez estava sempre à sua espera; a sua mesa de canto estava sempre reservada. Mesmo quando o Café estava cheio a mesa de Winston estava ali, guardada para ele, uma vez que os demais clientes não gostavam muito de sentar lá perto. Winston se dava ao trabalho de contar quantas doses de gim consumia. Em intervalos regulares, eles lhe traziam um pedacinho de papel encardido que diziam ser a conta, muito embora ele tivesse a impressão de que sempre lhe cobravam abaixo do valor real. Bem, não faria a menor diferença se fosse o contrário. Agora ele sempre tinha bastante dinheiro. Tinha até um emprego, que lhe rendia um salário mais alto que o antigo por um esforço mínimo de trabalho. A música da teletela foi interrompida, e uma voz a substituiu. Winston levantou a cabeça para escutar melhor. Mas não eram notícias do fronte. Somente um breve anúncio do Ministério da Fartura. Aparentemente, no trimestre anterior, a cota de produção de cadarços estabelecida pelo Décimo Plano Trienal tinha sido ultraada em noventa e oito por cento. Examinou o problema de xadrez e organizou as peças. Era um final meio complicado, com dois cavalos. “As brancas jogam. Xeque-mate em dois lances.” Olhou novamente para o retrato do Grande Irmão. As brancas sempre dão o xeque-mate, pensou, numa espécie de misticismo nebuloso. Sempre, sem exceção, é o que ocorre. Em nenhum problema de xadrez, desde que o mundo é mundo, as pretas venciam no final. Não seria isso um símbolo do triunfo eterno e imutável do Bem sobre o Mal? O rosto descomunal devolvia o olhar, cheio de

poder e tranquilidade. As brancas sempre dão o xeque-mate. A voz da teletela fez outra pausa e acrescentou, usando outro tom, bem mais grave:

“Informamos que todos estão convocados para um importante anúncio às quinze e trinta. Quinze e trinta! São notícias da mais alta importância. Não percam. Quinze e trina!” E voltou a música. Dessa vez era um estilo mais animado.

O coração de Winston deu um salto. Devia ser o boletim do fronte de batalha; sua intuição lhe dizia que as novidade não eram nada boas. Ao longo de todo o dia, com pequenas erupções de excitação, a ideia de uma esmagadora derrota na África invadia seus pensamentos. Parecia que ele conseguia de fato visualizar o exército eurasiano cruzando a fronteira até ali inexpugnável e descendo, como uma imensa fileira de formigas, para a ponta da África. Por que diabos não tinham encontrado uma forma de flanqueá-los? O contorno da costa da África Ocidental se destacava de forma bem viva em sua mente. Pegou o cavalo branco e o moveu pelo tabuleiro. AQUELA era a posição certa. Ao mesmo tempo que via a horda preta disparando rumo ao sul, via uma outra força, reunida misteriosamente, subitamente se posicionando em sua retaguarda, cortando as suas linhas de comunicação por terra e mar. Winston sentia que, somente por desejar, fazia com que esse outro exército asse a existir. Mas era preciso agir rapidamente. Se pudessem assumir o controle da África inteira, se tivessem campos de pouso e bases de submarinos no Cabo, os eurasianos partiriam a Oceania em duas. Isso poderia significar qualquer coisa: derrota, colapso, uma nova ordem mundial, a destruição do Partido! Ele respirou fundo. Dentro dele, digladiavam-se uma extraordinária mistura de sentimentos – embora não fossem exatamente um caldo unificado; seria melhor dizer que estavam dispostos numa série de camadas, sendo impossível afirmar qual era a mais profunda. O espasmo ou. Pôs o cavalo branco de volta em sua casa anterior – naquele momento ele simplesmente não conseguia dedicar-se a um estudo mais profundo do problema de xadrez. Seus pensamentos voltaram a divagar. De modo quase inconsciente, escreveu com a ponta do dedo na poeira da mesa:

2 + 2 = 5

“Eles não têm como entrar dentro de você”, dissera Julia. Mas a verdade é que podiam, podiam sim. “O que lhe acontecer aqui é PARA SEMPRE”, dissera O’Brien. Era bem verdade. Havia coisas – atos que cometemos – das quais não era mais possível se recuperar. Algo jazia morto dentro do peito; queimado e cauterizado.

Winston tinha visto Julia; chegou até mesmo a falar com ela. Não havia perigo nisso. Sabia, quase que por instinto, que agora eles não se interessavam mais pela sua conduta. De modo que eles até poderiam ter combinado novos encontros, se algum dos dois tivesse desejado. A verdade é que se encontraram por acaso. Foi no parque, num dia feio e hostil de março, quando a terra estava dura como ferro, toda a relva parecia morta, e não havia flor em parte alguma – a exceção de alguns crócus que tinham aflorado somente para perderem suas pétalas no vento devastador. Ele caminhava apressado, com as mãos geladas e os olhos lacrimejando, quando a viu a menos de dez metros de distância. De imediato percebeu que ela tinha mudado: uma mudança indefinida. Ambos aram um perto do outro quase sem gesto algum, mas mesmo assim ele deu meia-volta e foi atrás dela, sem muito entusiasmo. Sabia que não havia perigo; eles já não despertavam o interesse do Partido. Julia não disse nada. Saiu caminhando fazendo uma diagonal pelo gramado, como se quisesse ver-se livre dele. Depois aparentemente se conformou com a situação. Dali a pouco entraram numa moita de arbustos desgastados e desfolhados, que na verdade não servia nem para ocultá-los nem para protegê-los do vento. Enfim pararam de andar. Fazia um frio nefasto. O vento assobiava por entre os galhos secos e sacodia os poucos crócus sobreviventes. Ele ou o braço pela cintura dela. Não havia teletelas nas redondezas, mas talvez houvesse microfones escondidos; além disso, não era difícil vê-los ali onde estavam. Não importava, nada importava. Poderiam até mesmo ter se deitado no chão e feito AQUILO, se quisessem. Winston teve um calafrio de horror diante da ideia. Julia não teve qualquer reação ao toque do braço dele, sequer tentou se desvencilhar. Então ele

percebeu o que havia mudado nela. Seu rosto estava empalidecido, e havia uma longa cicatriz, parcialmente escondida pelos cabelos, que ia do topo da testa até perto do rosto; mas não era isso exatamente o que havia mudado. A grande diferença era que sua cintura estava mais pesada e surpreendentemente mais enrijecida. Ele se recordou de uma vez em que, logo após a explosão de uma bomba-foguete, tinha ajudado a tirar um cadáver do meio dos escombros, e lembrou seu espanto não somente com o incrível peso do corpo como igualmente com sua rigidez, e a dificuldade que era segurá-lo, de modo que ele mais parecia feito de pedra do que de carne e ossos. O corpo de Julia tinha tais características. Ocorreu-lhe que a textura de sua pele também estava muito diferente do que fora um dia. Ele não tentou beijá-la, sequer se falaram. Enquanto saíam da moita e voltavam ao gramado, ela encarou-o de frente pela primeira vez. Foi apenas um olhar ageiro, cheio de desprezo e aversão. Ele se perguntou se se tratava de uma aversão oriunda do ado ou se inspirada também pelo seu rosto inchado, e as lágrimas que o vento insistia em arrancar de seus olhos. Enfim sentaram-se em duas cadeiras de ferro, lado a lado, porém não tão próximas. Winston percebeu que Julia estava prestes a falar alguma coisa. Ela moveu alguns centímetros o sapato deselegante e quebrou, de propósito, um graveto no chão. Ele reparou que até mesmo seus pés tinham se alargado.

“Eu lhe traí”, disse ela, sem rodeios.

“Eu também lhe traí”, disse ele.

“Às vezes”, disse ela, “eles ameaçam a gente com uma coisa – uma coisa que a gente não pode ar, não pode sequer pensar. E daí você diz: ‘Não façam isso comigo, façam com outra pessoa, façam com fulano, ou com sicrano’. E depois você até pode fazer de conta que foi só um truque, e que você disse tais palavras somente para fazer com que eles parassem. Mas não é verdade. Na hora, você realmente quis dizer aquilo. Você pensa que não há outra saída, e que está perfeitamente disposto a se salvar daquele jeito. Mas a gente QUER que aquilo aconteça à outra pessoa. Já não importa o sofrimento dela. No fim das

contas, só nos importamos com nós mesmos.”

“Só nos importamos com nós mesmos”, repetiu Winston.

“E depois disso, é estranho, mas já não sentimos mais o que sentíamos antes em relação à pessoa.”

“Não”, disse ele, “já não sentimos mais o que sentíamos antes.”

De fato, não parecia haver mais nada a dizer. O vento fazia os macacões finos se colarem em suas peles. De uma hora para outra, parecia um tanto constrangedor que ambos ficassem ali, sentados, em silêncio; além disso, com todo aquele frio, era mesmo impossível ficar parado. Julia disse algumas palavras sobre ter de pegar o metrô e logo se levantou para ir embora.

“Precisamos nos ver outra vez um dia”, disse ele.

“É”, disse ela, “um dia.”

Winston a seguiu por um pequeno trecho, sem lá muita convicção. Ia meio o atrás. Não voltaram a se falar. Ela não procurou exatamente se desvencilhar dele, mas andava com adas bem rápidas, de maneira a evitar que ele voltasse a chegar muito perto. Ele resolveu segui-la até a estação do metrô, mas de súbito a ideia de prosseguir em seu rastro naquele frio lhe pareceu algo sem sentido, até mesmo intolerável. Foi dominado por um desejo que não dizia tanto respeito a afastar-se dela, mas antes de retornar ao Café Castanheira, que nunca lhe

parecera tão aconchegante quanto naquele momento. Teve um vislumbre saudoso da sua mesinha de canto, com o jornal, o tabuleiro de xadrez e o copo sempre cheio de gim. Sobretudo, era onde escaparia daquele frio. Assim, no instante seguinte, e não por acaso, ele permitiu que um punhado de pessoas o separasse de vez dela. Ainda fez uma tentativa meio desanimada de alcançá-la, mas enfim reduziu o o, parou, e seguiu na direção oposta. Depois de ter caminhado uns cinquenta metros, olhou novamente para trás. A rua não estava cheia, mas naquela distância já não a conseguia distinguir no horizonte. Podia ser qualquer uma daquelas pessoas apressadas. Quiçá o corpo engrossado e enrijecido não fosse mais reconhecível pelas costas. “Na hora”, dissera ela, “você realmente quis dizer aquilo.” Com ele também foi assim. Não disse aquilo só da boca para fora. Era mesmo o seu desejo. Ele queria que ela, e não ele, fosse entregue aos...

Algo se modificou na música que emergia da teletela. Ela foi tingida por um tom meio arranhado e zombeteiro, uma tonalidade amarela. E logo depois – talvez aquilo não estivesse ocorrendo de fato, talvez fosse apenas uma lembrança se disfarçando de som – uma voz começou a cantar:

Sob a frondosa castanheira Eu te vendi e você me vendeu...

Winston ficou com os olhos rasos de lágrimas. Um garçom que ava ali perto percebeu o copo vazio e voltou com a garrafa de gim. Ele ergueu o copo e cheirou. Quanto mais bebia, mais horrível parecia aquela bebida. Mas ela tinha se tornado o seu elemento, o mar onde nadava. Era sua vida, sua morte, sua ressurreição. Era o gim que o fazia mergulhar todas as noites no estupor. Era o gim que o revigorava todas as manhãs. Ao despertar, raramente antes das onze, com as pálpebras ainda grudadas, a boca seca e uma violenta dor nas costas, ele só conseguia sair da posição horizontal graças à

garrafa e à xícara de chá, deixadas ao lado da cama na noite anterior. Então ele ava a manhã sentado, com os olhos fitando o vazio e a garrafa à mão, escutando a teletela. Às três da tarde chegava ao Café Castanheira, de onde saía apenas quando o local fechava as portas. Ninguém se importava mais com o que ele fazia ou deixava de fazer, nenhum alarme o despertava, nenhuma teletela lhe dava advertências. Ocasionalmente, quiçá duas vezes por semana, ele se dirigia a um empoeirado e esquecido escritório do Ministério da Verdade e trabalhava um pouquinho. Tinha sido nomeado para um subcomitê de um subcomitê instituído por um dos incontáveis comitês criados para lidar com dificuldades menores surgidas durante a compilação da décima primeira edição do Dicionário de Novalíngua. Estavam envolvidos na produção de alguma coisa intitulada Relatório Provisório, mas o que exatamente estavam relatando ele não sabia ao certo. Parecia estar ligado à questão da colocação das vírgulas fora ou dentro dos parênteses. O subcomitê era composto por mais quatro indivíduos, todos em condições semelhantes às dele. Havia dias em que todos se reuniam e logo debandavam novamente, itindo francamente que na realidade não tinham nada a fazer. Mas havia ocasiões em que os cinco se atiravam ao trabalho com certa ansiedade, num afã de mostrar com que afinco registravam suas minutas. Em tais ocasiões eles elaboravam rascunhos de memorandos imensos, que nunca eram finalizados – também era quando o debate sobre o que deveriam debater se tornava extraordinariamente complicado, com sutis divergências sobre definições, enormes digressões, e brigas e mais brigas, durante as quais chegavam até mesmo a ameaçar recorrer às autoridades superiores. E então, de repente, o seu entusiasmo se apagava e eles ficavam ao redor da mesa, olhando uns para os outros com olhar de cadáver, como fantasmas que desvanecem ao raiar do dia. A teletela se calou por um instante. Winston voltou a erguer a cabeça. O boletim do fronte! Não, não era. Estavam apenas trocando a música. Tinha todo o mapa da África na retina. O movimento das tropas era como um diagrama: uma seta preta traçada na vertical, no sentido sul, e uma seta branca traçada na horizontal, no sentido leste, cortando a extremidade posterior da primeira seta. Como se buscasse alguma tranquilidade, contemplou novamente o rosto imperturbável no cartaz. Seria possível que a segunda seta nem sequer existisse? Seu interesse na guerra voltou a decair. Bebeu mais um gole de gim, apanhou o cavalo branco e experimentou uma jogada. Xeque. Mas era evidente que não era

a jogada certa, pois... Sem que fosse chamada, uma lembrança aflorou em sua mente. Viu um quarto iluminado à vela, com uma cama enorme, coberta por uma colcha branca, e ele próprio, com uns nove ou dez anos, sentado no chão, chacoalhando um copo de dados e rindo animado. Sua mãe estava sentada bem na sua frente, e também ria. Isso devia ter sido um mês antes dela desaparecer. Foi um momento de reconciliação, em que Winston pôde esquecer da fome que fustigava a barriga e reviver por algum tempo a antiga afeição que sentia por ela. A lembrança era vívida: era um dia de chuva forte, em que a água escorria pelas vidraças e dentro de casa não dava para ler, por conta da luzinha fraca, incapaz de vencer a escuridão. O tédio de duas crianças presas num quarto escuro e pequeno beirava o inável. Winston se queixava e resmungava, fazia pedidos inúteis por comida, andava irritado pelo quarto, tirando as coisas de lugar e até mesmo chutando as paredes até os vizinhos responderem com murros do outro lado. Enquanto isso, sua irmãzinha chorava sem parar. Enfim, sua mãe lhe disse: “Se comporte. Fica bonzinho que eu comprarei um brinquedo para você. Um brinquedo tão lindo – você vai amar”; e daí saiu em plena chuva para ir até a lojinha da vizinhança que ainda abria de vez em quando. Logo ela retornou com uma caixa de papelão contendo um jogo de tabuleiro clássico [Nota do Tradutor: no original, Snakes and Ladders (Cobras e Escadas), jogo surgido na Índia, onde se chama Moksha Patam]. Winston ainda podia recordar do cheiro do papelão molhado. Era um jogo de péssima qualidade. O tabuleiro veio rachado, e os dados de madeira eram tão malfeitos que mal paravam de pé. Ele observou o tabuleiro e os dados, desinteressado e emburrado. Mas então sua mãe acendeu uma vela e os dois sentaram no chão para jogar. Dali a algum tempo ele estava bem mais animado, gritando e gargalhando enquanto as peças subiam cheias de esperança e caíam nas armadilhas, voltando praticamente ao início. Jogaram oito partidas, com quatro vitórias para cada lado. A irmãzinha, ainda pequena demais para entender o jogo, sentou-se com as costas apoiadas num travesseiro e ria junto com eles. Assim, aram a tadinha juntos e felizes, como nos primeiros anos de sua infância. Winston deu um jeito de expulsar aquela recordação da mente. Era uma falsa memória. De vez em quando ele era atormentado por esse tipo de coisa. Mas não tinha importância, contanto que soubesse do que se tratava. Algumas coisas tinham de fato ocorrido, outras não. Voltou seu foco para o outro tabuleiro, de

xadrez, e tornou a apanhar o cavalo branco. Quase no mesmo instante, a peça literalmente despencou sobre a mesa. Ele estremeceu inteiro, como se tivessem lhe dado uma alfinetada. Um toque agudo de clarim cortou o ar. Era o boletim! Vitória! Um toque de clarim logo antes do noticiário sempre significava vitória. Uma espécie de vibração elétrica percorreu o Castanheira. Até os garçons pararam para prestar atenção. O clarim provocara uma onda de barulho. Um momento depois, uma voz excitada já tagarelava na teletela. Mas, tão logo a novidade foi divulgada, a voz foi praticamente afogada por uma algazarra de comemorações vinda da rua. A notícia havia se espalhado em toda redondeza, como um e de mágica. Winston ouvia a teletela com grande dificuldade, só o bastante para entender que tudo se ou como ele havia previsto: uma imensa frota marítima reunida em segredo, uma ataque surpresa na retaguarda inimiga, a seta branca cortando a extremidade posterior da seta preta. Fragmentos de frases de triunfo emergiam em meio à balbúrdia generalizada: “Manobra estratégica de grandes proporções – perfeita coordenação – derrota total – meio milhão de prisioneiros – desmoralização completa – controle de toda a África – deixa a guerra a uma distância palpável do fim – vitória – a maior vitória da história humana – vitória, vitória, vitória!”. Sob a mesa, os pés de Winston faziam movimentos convulsivos. Não saiu de onde estava, mas em sua mente ele corria, corria velozmente para se juntar à multidão que já tomava a rua, urrando de alegria. Tornou a contemplar o retrato do Grande Irmão. O colosso que cavalgava o mundo! A rocha contra a qual as hordas asiáticas se chocavam em vão! Winston pensou que há dez minutos – sim, apenas dez minutos atrás – ainda nutria em seu íntimo dúvidas sobre qual espécie de notícia chegaria do fronte de batalha; não sabia se seria a vitória ou a derrota. Mas agora, ah!, não foi apenas um exército eurasiano que havia sido esmagado! Muita coisa havia mudado nele desde aquele primeiro dia no Ministério do Amor, no entanto a transformação definitiva, salvadora, capaz de curá-lo de uma vez por todas, ainda não tinha acontecido – até aquele instante. A voz na teletela prosseguia dando detalhes de prisioneiros e pilhagens e matanças, enquanto lá fora a gritaria toda já vinha arrefecendo. Os garçons lentamente retornavam ao trabalho. Um deles veio até ele com uma garrafa de

gim. Mergulhado num sonho bem aventurado, Winston já não percebia que enchiam seu copo. Já não corria nem urrava de alegria. Estava outra vez no Ministério do Amor, perdoado de tudo, com sua alma branca como a neve. Estava no banco dos réus, em praça pública, confessando tudo, entregando a todos. Estava atravessando novamente o corredor de ladrilhos brancos, com a sensação de caminhar ao sol, tendo atrás de si um guarda armado. Enfim o tiro tão esperado. Enfim a bala redentora atravessava o seu cérebro. Contemplou o rosto descomunal. Foram necessários quarenta anos para que ele descobrisse que tipo de sorriso se escondia debaixo do bigode preto. Ora, mas que mal-entendido tão cruel, tão desnecessário! Ah, que teimoso autoexílio do peito amoroso! Duas lágrimas com cheio de gim escorreram pelas laterais do nariz. Mas agora estava tudo certo, tudo em paz, a batalha havia chegado ao fim. Ele tinha conquistado a vitória sobre si mesmo. Ele amava o Grande Irmão.

FIM

Apêndice: Os Princípios da Novalíngua

A Novalíngua era a língua oficial da Oceania e foi concebida para atender às necessidades ideológicas do Ingsoc, ou Socialismo Inglês. No ano de 1984, não havia ninguém que usasse exclusivamente a Novalíngua como o único meio de comunicação, fosse pela fala ou pela escrita. Os editoriais do Times eram escritos nessa língua, mas isso era uma PROEZA que só os especialistas conseguiam executar. Esperava-se que a Novalíngua finalmente viesse a substituir a Velhalíngua (ou inglês padrão, como chamamos) lá por volta do ano 2050. Enquanto isso, ela foi ganhando seu espaço aos poucos. Todos os membros do Partido tendem a usar mais palavras e construções gramaticais em Novalíngua no seu dia a dia. A versão em uso em 1984, e consolidada na nona e na décima edição do Dicionário de Novalíngua, era provisória e continha muitas palavras supérfluas e formações arcaicas que, mais tarde, viriam a ser suprimidas. Aqui tratamos da versão final, aperfeiçoada e consolidada na décima primeira edição do Dicionário. O objetivo da Novalíngua não era somente o de fornecer um meio de expressão para uma visão de mundo e hábitos específicos dos devotos do Ingsoc, mas tornar todas as outras formas de pensamento inviáveis. O plano era que, assim que a Novalíngua fosse adotada de uma vez por todas, e a Velhalíngua fosse inteiramente esquecida, uma pensamento herege – ou seja, que diverge dos princípios do Ingsoc – seria literalmente impensável, pelo menos até o limite onde um pensamento depende e deriva das palavras. Seu vocabulário foi construído para dar uma expressão exata e muitas vezes sutil de todos os significados que um membro do Partido possa querer expressar, ao mesmo tempo aniquilando todos os demais significados, e até mesmo a possibilidade de alcançá-los por vias indiretas. Isso foi feito em parte pela invenção de novas palavras, mas sobretudo pela eliminação de vocábulos indesejáveis, bem como pela subtração de significados hereges e, até onde fosse possível, de todo e qualquer significado secundário que os vocábulos remanescentes por acaso ainda pudessem expressar. Vejamos um exemplo. A palavra LIVRE ainda existia em Novalíngua, mas só podia ser usada em frases como “Este cachorro está livre de pulgas” ou “Esse campo está livre de ervas daninhas”. Ela não podia mais ser usada no sentido

antigo, como em “politicamente livre” ou “intelectualmente livre”, pois não existia mais liberdade política e/ou intelectual, nem mesmo como conceito; e, dessa forma, ela sequer poderia ser nomeada. Por outro lado, embora fosse visto como um fim em si mesmo, o programa de redução do vocabulário teve um alcance bem mais amplo do que a mera aniquilação de palavras hereges: não restou nenhuma palavra que não fosse imprescindível. A Novalíngua não foi criada para ampliar, mas para DIMINUIR o alcance do pensamento, e tal objetivo foi auxiliado indiretamente pela redução do estoque de palavras a um mínimo. A Novalíngua teve como fundação a língua inglesa como a conhecemos hoje em dia, embora muitas frases da nova língua, ainda que não incluíssem vocábulos criados recentemente, fossem praticamente incompreensíveis para os atuais falantes do inglês. As palavras de Novalíngua se dividiam em três classes distintas, conhecidas como o vocabulário A, o vocabulário B (que abrangia as palavras compostas) e o vocabulário C. Por uma questão de simplicidade, vamos discutir cada classe separadamente, embora seja perfeitamente possível lidar com as peculiaridades gramaticas da linguagem na seção dedicada ao vocabulário A, uma vez que as mesmas regras se aplicam às três categorias de palavras.

O VOCABULÁRIO A. O vocabulário A inclui as palavras necessárias para ações cotidianas: comer, beber, trabalhar, vestir suas roupas, subir e descer escadas, usar um meio de transporte, cuidar das plantas de um jardim, cozinhar etc. Ele era composto quase inteiramente de palavras que já possuímos – tais como BATER, CORRER, CÃO, ÁRVORE, AÇÚCAR, CASA, CAMPO –, mas, se comparado ao atual vocabulário inglês, abrangeria um número bem mais reduzido de termos, ainda que os seus significados fossem definidos com maior rigidez. Todas as ambiguidades e nuances de sentido tinham sido eliminadas dele. No limite do possível, uma palavra em Novalíngua dessa classe era algo limitado ao que podemos expressar com um som bem curto, que por sua vez trazia UM conceito claramente compreendido. Teria sido consideravelmente impossível usar o vocabulário A para fins literários, ou para debates políticos e/ou filosóficos. Assim, sua função era exclusivamente a de expressar pensamentos simples, com alguma finalidade útil, em geral envolvendo objetos concretos ou ações físicas.

A gramática da Novalíngua tinha duas peculiaridades bem interessantes. A primeira era uma permutabilidade quase que completa entre diferentes partes de um discurso. Qualquer palavra no idioma (em princípio, isso também se aplicava até mesmo a palavras abstratas como SE ou QUANDO) podia ser utilizada como verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio. Dessa forma, jamais havia variação entre o verbo e a forma nominal quando ambos pertenciam à mesma raiz. Essa regra por si só levou à aniquilação de diversas formas arcaicas. Por exemplo, a palavra PENSAMENTO não existia em Novalíngua. PENSAR tomou o seu espaço, sendo um termo que cumpria a sua função tanto como substantivo quanto como verbo. Aqui não se seguia nenhum princípio etimológico: em alguns casos, o substantivo original era preservado; em outros, o verbo. Mesmo no caso de substantivos e verbos com algum parentesco semântico, embora sem ligação etimológica, uma das formas era aniquilada. Por exemplo, não havia uma palavra como CORTAR, pois seu significado já estava devidamente coberto pelo substantivo-verbo FACA. Os adjetivos eram formados com a adição do sufixo –OSO a substantivosverbos; já os advérbios eram formados pela adição de –MENTE. Assim, por exemplo, VELOCIDOSO significava “rápido” e VELOCIDAMENTE significava “rapidamente”. Alguns dos nossos adjetivos de hoje, como BOM, FORTE, GRANDE, PRETO e SUAVE foram mantidos, no entanto em número consideravelmente reduzido. Eles eram pouco necessários: de vez em quando quase todo o sentido de um adjetivo podia ser obtido pela adição de –OSO a uma substantivo-verbo. Todos os advérbios que não terminavam em –MENTE foram aniquilados; a terminação –MENTE era como uma lei invariável. Mesmo a palavra BEM foi substituída por BENEMENTE. Além disso, qualquer palavra – e, outra vez, vale destacar que em princípio isso se aplicava a todas as palavras do idioma – podia ser negativada (vertida em seu antônimo) pela adição do afixo DES–, ou podia ser reforçada pelo afixo MAIS– (ou, para conferir uma ênfase ainda maior, DUPLOMAIS–). Dessa forma, a palavra DESFRIO significava “quente”, enquanto MAISFRIO e DUPLOMAISFRIO significavam, respectivamente, “muito frio” e “extremamente frio”. Também era possível, como no inglês de hoje, modificar o significado de praticamente qualquer palavra com afixos prepositivos, tais como ANTE–, PÓS–, SOBRE–, SUB– etc. Estes métodos tornaram viável uma imensa redução do vocabulário geral. Por exemplo, considerando a palavra BOM, não havia mais necessidade para a palavra MAU, uma vez que o seu sentido vinculado seria igualmente bem expresso com DESBOM – na verdade, até mais

bem expresso. Tudo que precisava ser feito, no caso de duas palavras formarem um par natural de opostos, era decidir qual delas seria aniquilada. Por exemplo, ESCURO poderia ser substituído por DESLUZ, ou LUZ por DESESCURO, era tão somente uma questão de preferência. A segunda marca distintiva da gramática da Novalíngua era a sua regularidade. Com poucas exceções, mencionadas na sequência, todas as inflexões seguiam as mesmas regras. Dessa forma, em todos os verbos, o pretérito e o particípio eram a mesma coisa e terminavam em –ADO. O particípio de ROUBAR era ROUBADO, o de PENSAR era PENSADO etc. Todas as formas irregulares, tais como PAGO, DITO, FEITO, GASTO, ENTREGUE etc. foram aniquiladas. Todos os plurais foram formados com o acréscimo de –S ou, conforme o caso, – ES. Por exemplo, os plurais de CANHÃO, BOI e TÚNEL eram, respectivamente, CANHÃOS, BOIES e TÚNELES. A comparação entre adjetivos era sempre feita com a adição de MAIS, como por exemplo, BOM, MAIS BOM; e RUIM, MAIS RUIM. As flexões irregulares só foram preservadas no caso dos pronomes relativos, dos adjetivos demonstrativos e dos verbos auxiliares. Todos esses prosseguiram seguindo as regras antigas, a exceção de CUJO, que foi aniquilado por ter sido considerado desnecessário, e os verbos auxiliares TER e HAVER, que também foram aniquilados, tendo seus usos substituídos pelas formas verbais sintéticas. Algumas irregularidades na formação de palavras também foram mantidas, com o único objetivo de facilitar e agilizar a pronúncia. Assim, qualquer palavra cuja pronúncia fosse difícil ou cuja sonoridade pudesse dar margem a confusão era tida como ruim; dessa forma, de vez em quando, por questões de eufonia, letras foram acrescentadas às palavras, ou suas formações arcaicas mantiveram-se intactas. Entretanto, tal necessidade foi considerada mais relevante no vocabulário B. O motivo da facilidade de pronúncia ter recebido uma preocupação tão grande será devidamente esclarecido mais adiante.

O VOCABULÁRIO B. O vocabulário B abrangia palavras que foram deliberadamente criadas com propósitos políticos: isto é, que não somente tinham uma implicação política em todos os casos, como também a intenção de impor uma atitude mental desejável na pessoa que fazia uso delas. Era consideravelmente difícil usar tais palavras

corretamente sem uma compreensão abrangente dos princípios do Ingsoc. Em alguns casos, elas podiam ser traduzidas para a Velhalíngua, ou mesmo para palavras do vocabulário A, entretanto isso em geral requeria longas paráfrases e invariavelmente resultava na perda de certas nuances de sentido. As palavras B eram uma espécie de abreviação verbal, e muitas vezes incluíam grandes extensões de ideias em um reduzido número de sílabas, embora fossem ao mesmo tempo mais precisas do que o vocabulário utilizado no dia a dia. As palavras do vocabulário B eram sempre compostas. [Palavras compostas como FALAESCREVE também se encaixavam no vocabulário A, mas elas eram tão somente abreviações convenientes, e não tinham nenhuma coloração ideológica específica.] Elas consistiam em duas ou mais palavras, ou partes de palavras, unificadas em uma forma mais fácil de ser pronunciada. O amálgama resultante era sempre um substantivo-verbo, flexionado de acordo com as mesmas regras válidas para os vocábulos comuns. Para dar um exemplo: a palavra BEMPENSAR significava, grosseiramente, “ortodoxia”; ou, em sua função de verbo, “pensar de forma ortodoxa”. Dessa forma, ela era flexionada da seguinte maneira: substantivo-verbo, BENEPENSAR; ado e particípio ado, BENEPENSADO; particípio presente, BENEPENSANTE; adjetivo, BENEPENSATIVO; advérbio, BENEPENSATIVAMENTE. A composição de tais palavras não obedecia a nenhum plano etimológico. Elas podiam ser formadas a partir de qualquer parte da fala, e podiam ser incluídas em qualquer ponto da oração. Da mesma forma, estavam sujeitas a toda e qualquer mutilação que, deixando clara sua derivação, servisse como auxiliar da pronúncia. No caso da palavra CRIMEPENSAR (pensamento-crime), por exemplo, o PENSAR vinha depois, enquanto em PENSARPOL (Polícia do Pensamento) vinha antes, sendo que nesse último exemplo “Polícia” perdeu a sua segunda parte. Por conta da imensa dificuldade em garantir a eufonia, as formações irregulares eram mais comuns no vocabulário B do que no vocabulário A. Por exemplo, os termos MINIVER, MINIPAZ e MINIAMOR em suas formas de adjetivo eram, respectivamente, MINIVERDADEIRO, MINIPAZEROSO e MINIAMOROSO, somente porque –VERDADOSO e – PAZOSO tinham uma pronúncia um pouco mais estranha (enquanto no último exemplo não houve problema). Em princípio, no entanto, todas as palavras B podiam ter inflexões, e todas eram flexionadas da mesma forma. Algumas das palavras incluídas no vocabulário B tinham significados consideravelmente sutis, quase que ininteligíveis para aqueles que não

dominavam inteiramente o idioma. Por exemplo, uma frase típica de uma manchete do Times, como VELHOPENSANTES DESVENTRESENTEM INGSOC. A forma mais curta de dizer o mesmo em Velhalíngua seria: “Aqueles cujas ideias foram formadas antes da Revolução não têm como conquistar uma compreensão emocional do Socialismo Inglês”. Mas essa não é uma tradução das mais adequadas. A compreensão de todos os sentidos implícitos na frase em Novalíngua exigiria, antes de tudo, uma noção muito clara e exata do que significa INGSOC. E, além disso, somente uma pessoa inteiramente imersa no Ingsoc seria capaz de apreciar a potência da palavra VENTRESENTIR, que implicava uma aceitação cega e entusiasmada, algo difícil de imaginar hoje em dia; ou a palavra VELHOPENSAR, que se encontrava indissociavelmente mesclada à ideia do mal, assim como do que é decadente. Entretanto, certas palavras da Novalíngua serviam mais para destruir significados do que para comunicá-los. Os significados de tais palavras – obrigatoriamente pouco numerosas – tinham sido ampliados até que elas pudessem abranger em si mesmas grandes massas de vocábulos que, estando representados somente por um único termo, podiam ser aniquilados e esquecidos. A maior dificuldade que os compiladores do Dicionário de Novalíngua tinham não era a de inventar novas palavras, mas sim de, após as ter inventado, garantir o seu significado: isto é, ter a certeza de que gamas inteiras de palavras eram aniquiladas graças à sua existência. Às vezes, como já vimos no caso da palavra LIVRE, vocábulos que anteriormente tinham um significado herege eram mantidos por conveniência, mas somente após os seus sentidos indesejados terem sido expurgados. Diversas outras palavrais, tais como HONRA, JUSTIÇA, MORALIDADE, INTERNACIONALISMO, DEMOCRACIA, CIÊNCIA e RELIGIÃO simplesmente deixaram de existir. Elas aram a ser englobadas por alguns poucos vocábulos que, no próprio ato de englobá-las, provocaram a sua aniquilação. Todas as palavras cujo significado gravitava em torno dos conceitos de liberdade e igualdade, por exemplo, estavam contidas numa única palavra: CRIMEPENSAR. E todas as palavras que gravitavam em torno de conceitos de objetividade e racionalidade estavam contidas, da mesma forma, numa outra palavra exclusiva: VELHOPENSAR. Uma precisão maior que esta seria por si só perigosa. O era exigido de um membro do Partido era uma visão similar àquela do hebreu antigo que, muito embora não soubesse muito além disso, sabia que com toda a

certeza todas as nações adoravam “falsos deuses” – todas, exceto a sua própria. Ele decerto não precisava saber que os demais deuses tinham nomes como Baal, Osíris, Moloch, Ashtaroth etc. O mais provável é que quanto menos nomes ele soubesse, melhor seria para a sua ortodoxia. Ele conhecia Jeová e seus mandamentos. Sabia, dessa forma, que todos os deuses com outros nomes ou outros atributos eram falsos deuses. De uma forma parecida, o membro do Partido sabia o que constituía a conduta certa, e em termos ainda mais vagos, sabia que tipos de desvios eram possíveis. Por exemplo, toda a sua vida sexual era regulamentada por duas palavras: SEXOCRIME (imoralidade sexual) e BENESEXO (castidade). SEXOCRIME cobria toda e qualquer forma de transgressão sexual, incluindo fornicação, adultério, homossexualidade e outras perversões – dentre as quais também estava incluída a perversão de uma relação sexual normal que um casal levasse adiante tão somente pelo prazer em si. Não havia necessidade de listar cada um de tais delitos, uma vez que eram todos igualmente reprováveis e, em princípio, íveis de punição com a morte. No vocabulário C, composto por palavras científicas e técnicas, talvez fosse necessário dar nomes específicos a certas aberrações sexuais, mas o cidadão comum não precisaria delas. Ele sabe muito bem o que quer dizer BOMSEXO – isto é, a relação sexual normal entre um homem e a sua esposa com o único objetivo de gerar filhos, e sem nenhuma espécie de prazer físico por parte da mulher –; todo o resto era SEXOCRIME. Em Novalíngua era muito raro conseguir acompanhar um pensamento herege para além da mera percepção de que ele ERA herege: para além desse ponto, já não existiam mais as palavras necessárias. Nenhuma palavra do vocabulário B era ideologicamente neutra. Muitas delas eram tão somente eufemismos. Palavras como, por exemplo, CAMPOALEGRIA (campo de trabalhos forçados) ou MINIPAZ (Ministério da Paz, isto é, Ministério da Guerra) tinham um significado praticamente inverso do que aparentemente queriam dizer. Outras palavras, no entanto, demonstravam uma compreensão franca e desdenhosa da real natureza da sociedade oceânica. Um bom exemplo era PROLETALIMENTAR, ou seja, uma referência ao péssimo entretenimento e aos noticiários fraudulentos dos quais o Partido se valia para “alimentar” a mente das massas. Havia também palavras ambivalentes, que assumiam um sentido positivo quando associadas ao Partido, e um sentido negativo quando se referiam a seus inimigos. Por fim, havia igualmente um grande número de palavras que pareciam, à primeira vista, tão somente abreviações, e cuja coloração ideológica advinha não exatamente de seu sentido,

mas antes de sua estrutura. Na medida do possível, tudo o que tinha ou poderia ter algum significado político estava incluído no vocabulário B. O nome de qualquer organização, grupo de pessoas, doutrina, país, instituição ou edifício público era encurtado até chegar à forma familiar; isto é, uma única palavra, fácil de ser pronunciada, com o menor número de sílabas, mesmo assim capaz de preservar a sua derivação original. No Ministério da Verdade, por exemplo, o Departamento de Registros, onde Winston Smith trabalhava, era conhecido como REGDEP; já o Departamento de Ficção chamava-se FICDEP; o Departamento de Teleprogramação, TELEDEP; e assim por diante. Isso tudo não era feito somente no intuito de poupar tempo. Até as primeiras décadas do século XX, palavras e frases telescópicas formavam umas das características da linguagem política; e notou-se que a tendência geral a usar abreviações do tipo era mais proeminente em países e organizações de caráter totalitário. Alguns exemplos: NAZI, GESTAPO, COMINTERN, IMPRECORR, AGITPROP. No início, era uma prática quase instintiva. Entretanto, em Novalíngua, ou a ser com um objetivo consciente. Foi observado que, ao abreviar um nome, estreitava-se e modificava-se o seu significado de forma bem sutil, eliminando a maior parte das associações que, de outra forma, permaneceriam vinculadas as palavras. Por exemplo, as palavras INTERNACIONAL COMUNISTA evocam uma imagem composta de fraternidade humana universal, bandeiras vermelhas, Karl Marx e a Comuna de Paris. O termo COMINTERN, por outro lado, evoca tão somente a noção de uma organização bastante fechada e, igualmente, de uma doutrina muito bem estruturada. A palavra reduzida se refere a algo que é tão facilmente reconhecível e tem uma finalidade quase tão limitada quanto uma cadeira ou uma mesa. Se COMINTERN é uma palavra que alguém pode pronunciar de forma quase automática, a expressão INTERNACIONAL COMUNISTA é algo que evoca, no mínimo, um instante de reflexão. Da mesma forma, as associações que uma palavra como MINIVER trazem são menores e mais controláveis do que MINISTÉRIO DA VERDADE. Era justamente isso que estava por trás não somente do costume de abreviar as palavras sempre que fosse possível, como também do cuidado até mesmo exagerado em conferir a elas uma pronúncia bem fácil. Em Novalíngua, a eufonia era muito mais considerada do que as demais questões, exceto é claro pela preocupação com a exatidão do significado das

palavras. Sempre que fosse necessário, a regularidade da gramática era sacrificada. E como toda razão, pois o que estava sendo exigido, para além de qualquer objetivo político, eram palavras curtas de significado inconfundível que pudessem ser pronunciadas rapidamente, e que despertariam um mínimo de ecos na mente de quem as pronuncia. As palavras do vocabulário B até ganhavam força pelo fato de serem quase todas muito parecidas. Essas palavras – BENEPENSAR, MINIPAZ, PROLETALIMENTAR, SEXOCRIME, CAMPOALEGRIA, INGSOC, PENSARPOL –, e inúmeras outras, quase sempre tinham duas ou três sílabas, com o acento distribuído igualmente entre a primeira e a última. O seu uso favorecia os discursos verborrágicos, com uma sonoridade ao mesmo tempo espasmódica e monótona. E esse era exatamente o objetivo, isto é, a produção de um discurso, em especial os discursos sobre temas não ideologicamente neutros, da forma mais independente possível da consciência. No âmbito da vida cotidiana, sem dúvida era necessário, ao menos algumas vezes, pensar antes de falar, mas um membro do Partido ao qual se exige uma tomada de decisão ética ou política deve ser capaz de emitir as opiniões corretas com o mesmo automatismo com que uma metralhadora dispara suas balas. Foi o seu treinamento que o preparou para tal. Já o idioma ofereceu um instrumento quase infalível; e a textura das palavras, com sua sonoridade rude e certa deselegância deliberada, de acordo com o espírito do Ingsoc, aprimorava todo o processo ainda mais. Para isso ajudava também a limitada gama de palavras que havia à disposição de quem utiliza o idioma. Comparado ao nosso, o vocabulário de Novalíngua era minúsculo, e estavam sempre elaborando novas maneiras de reduzi-lo ainda mais. Certamente a Novalíngua era diferenciada da maioria dos outros idiomas, pois ao invés de crescer, o seu vocabulário se reduzia, ano após ano. Mas cada redução não deixava de ser também um ganho, pois quanto menor a gama de escolhas de palavras, menor a tentação de pensar mais profundamente sobre qualquer tema. Esperava-se um dia chegar a falas articuladas tão somente a partir da laringe, sem a participação dos centros cerebrais mais elevados. Tal objetivo era itido com toda franqueza por meio do termo PATOFALAR, que significava “grasnar como um pato”. Como diversas outras palavras do vocabulário B, o sentido de PATOFALAR era ambivalente. Uma vez que as opiniões grasnadas eram ortodoxas, ele não indicava nada além de um elogio; e quando o Times se referia a um dos oradores do Partido como sendo um DUPLOMAISBOM PATOFALANTE, isso era visto como um elogio valioso e

caloroso.

O VOCABULÁRIO C. O vocabulário C servia como suplemento aos demais, e consistia tão somente de termos técnicos e/ou científicos. Tais palavras lembravam os termos científicos utilizados hoje em dia, e foram construídas a partir das mesmas raízes; no entanto, elas também foram alvo da usual preocupação com definições rígidas, tendo sido igualmente despojadas de qualquer significado indesejado. Além disso, obedeciam às mesmas regras gramaticais válidas para os dois vocabulários anteriores. Poucas palavras C tinham algum valor real no discurso político, ou mesmo nas conversas do dia a dia. Qualquer técnico ou cientista podia achar as palavras que necessitava na lista dedicada à sua especialidade, mas eles não conheciam mais do que um punhado de palavras das demais listas. Poucas palavras eram comuns a todas as listas, e independente da área do conhecimento, simplesmente não havia palavras que permitissem falar sobre a função da ciência como um hábito mental, muito menos como um método de pensamento. De fato, sequer existia a palavra “Ciência”, de modo que os significados a ela associados estavam todos contidos no termo INGSOC.

Com base em tudo o que foi dito acima, fica claro que em Novalíngua era praticamente impossível expressar opiniões não ortodoxas, exceto de uma maneira muito incipiente. Obviamente era possível usar heresias bem vulgares, como se fossem uma espécie de blasfêmia. Por exemplo, seria possível dizer algo como O GRANDE IRMÃO É DESBOM. Mas tal declaração, que era um absurdo óbvio para um ouvido ortodoxo, não seria sustentável por meio de um debate racional, porque ainda faltavam as palavras necessárias para isso. Assim, ideias inimigas ao Ingsoc só podiam ser expressadas de maneira um tanto vaga, sem o uso de palavras, e só podiam ser nomeadas por termos tão amplos que terminavam se amontoando de maneira confusa, de modo que grupos inteiros de palavras heréticas eram condenadas sem que fossem capazes de defini-las no processo. De fato, só era possível usar a Novalíngua para objetivos não ortodoxos através da tradução espúria de algumas palavras para a Velhalíngua. Por exemplo,

TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS era uma frase perfeitamente possível em Novalíngua, mas somente no mesmo sentido em que TODOS OS HOMENS SÃO RUIVOS é uma frase possível na Velhalíngua. Muito embora não tivesse nenhum erro de gramática, a frase TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS transmitia uma óbvia inverdade, isto é, que todos os homens têm a mesma altura, o mesmo peso ou a mesma musculatura. O conceito de igualdade política havia sido aniquilado, e esse sentido secundário também foi expurgado da palavra IGUAL. Em 1984, quando a Velhalíngua ainda era o meio usual de comunicação, o perigo estava, supostamente, na utilização de palavras da Novalíngua cujo sentido original ainda poderia ser recordado por alguém. Na prática, não era difícil para alguém com uma boa formação em DUPLIPENSAMENTO desviarse disso; ainda assim, em mais algumas gerações, até mesmo a possibilidade de um lapso desse tipo teria desaparecido por completo. Uma pessoa que tivesse crescido sendo educada exclusivamente em Novalíngua não saberia mais que IGUAL algum dia teve o significado secundário de “politicamente igual”, ou que LIVRE algum dia quis dizer “intelectualmente livre”, da mesma forma que uma pessoa que nunca ouviu falar de xadrez não teria como saber dos significados secundários atrelados às palavras RAINHA ou PEÃO. Assim, uma série de crimes e erros se tornariam impraticáveis somente porque, não existindo mais palavras para se referir a eles, já não poderiam sequer ser concebidos. E era previsível que, com a agem dos anos, as características peculiares da Novalíngua se tornariam cada vez mais destacadas – a quantidade de palavras à disposição seria cada vez mais reduzida, os seus significados cada vez mais rígidos e, por conta disso tudo, a probabilidade de que eles fossem utilizados de forma imprópria seria progressivamente diminuída. Quando a Velhalíngua fosse superada e abolida em definitivo, o último elo com o ado teria sido cortado. A história, é claro, já havia sido reescrita. No entanto, fragmentos da literatura do ado sempre sobreviveram aqui e ali, censurados de maneira imperfeita, de modo que enquanto qualquer pessoa preservasse na mente algum conhecimento de Velhalíngua, ainda seria possível que esses fragmentos fossem lidos (e interpretados). No futuro, mesmo que tais fragmentos sobrevivessem por puro acaso, seriam ininteligíveis e intraduzíveis. Era impossível traduzir qualquer agem da Velhalíngua para a Novalíngua, a não ser que ela fizesse referência a algum processo técnico ou a alguma ação cotidiana muito simples; ou, ainda, que já fosse de tendência ortodoxa (BENEPENSANTE seria o termo em Novalíngua). Na prática, isso significava

que nenhum livro escrito antes de 1960 poderia ser integralmente traduzido. Toda a literatura pré-revolucionária só poderia se sujeitar à tradução ideológica – isto é, a uma tradução (e adulteração) não somente da linguagem, como do seu sentido. Eis um bom exemplo, a célebre agem da Declaração de Independência dos Estados Unidos:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que para garantir esses direitos são instituídos entre os homens governos que derivam os seus justos poderes do consentimento dos governados; que toda vez que uma forma qualquer de governo ameace destruir esses fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo...

Seria consideravelmente impossível transmitir isso em Novalíngua mantendo o sentido original. O mais próximo possível seria encapsular todo o trecho numa única palavra, CRIMEPENSAR. Uma tradução completa teria de ser, necessariamente, uma tradução ideológica, através da qual as palavras de Jefferson seriam transformadas em um discurso em defesa do totalitarismo [Nota do Tradutor: Thomas Jefferson (1743–1826) foi um dos principais autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos, e posteriormente foi eleito o terceiro presidente da história do país]. De fato, uma boa parte da literatura do ado já ia sendo transformada dessa forma. Somente por uma questão de prestígio foi que pareceu desejável preservar a memória de certas figuras históricas, desde que suas realizações fossem devidamente alinhadas com a filosofia do Ingsoc. Inúmeros escritores, como Shakespeare, Milton, Swift, Byron, Dickens e alguns outros estavam sendo traduzidos. Ao final da tarefa, os seus textos originais, junto com tudo o que havia restado da literatura do ado, seriam aniquilados. Tais traduções eram complexas e demoradas, e não se previa que pudessem ser concluídas antes da primeira ou segunda década do século XXI. Também havia uma vasta quantidade de literatura puramente utilitária – manuais técnicos indispensáveis, e coisas do tipo – que precisavam ar pelo mesmo tratamento. Foi acima de tudo para dar tempo a tal trabalho preliminar de tradução que se fixou no

distante ano de 2050 a data para a adoção definitiva da Novalíngua.

Epílogo: A vida de George Orwell

Eric Arthur Blair (1903 – 1950), mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, era um intelectual inglês que usou a arte da literatura para a única razão que ela realmente existe: tentar mudar o mundo para melhor. Ele foi, no sentido mais profundo, um escritor político, alguém que buscou a arte para nos ajudar a crescer mais gentis, mais justos e mais sábios. Em 1946, um ano após a publicação da sua fábula que logo se tornou imensamente popular, A Revolução dos Bichos, ele escreveu um ensaio intitulado Por que eu escrevo, onde a sua abordagem da escrita foi detalhada:

O que eu queria realizar ao longo dos últimos dez anos é fazer com que a escrita política virasse uma arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de partidarismo, um senso de injustiça. Mas quando eu me sento para escrever um livro, não digo para mim mesmo: “Eu vou produzir uma obra de arte”. Eu escrevo porque há alguma mentira que quero expor, algum fato para o qual desejo chamar atenção, e a minha preocupação inicial é conseguir ser ouvido.

Para entender por que Orwell importa, temos de tentar entender o que ele amava, e o que odiava. Contra o que ele se rebelou, e o que ele exaltou. É isso que nos dará a chave para a compreensão da sua obra notável; assim como da sua vida dolorosa, porém profundamente bem sucedida no campo artístico. Orwell sempre odiou o grupo social do qual ele mesmo era, apesar dos pesares, um membro exemplar: os intelectuais. Desde cedo, ele quis ser um escritor, mas sempre se destacou em nunca realmente se encaixar em emprego algum. Ele nasceu em 1903, na Índia, que era na época uma parte do Império Britânico. Era filho de pais em frágil situação econômica, que lutaram duro para que ele tivesse uma clássica educação inglesa de classe média, e esperavam que ele pudesse se tornar um médico ou um advogado. Quando tinha ainda oito anos de idade, já na Inglaterra, eles o colocaram em uma escola de educação infantil mesquinha e incapacitante. Mesmo assim, foi de lá que ele acabou conseguindo uma bolsa

para estudar em Eton, um colégio tradicional de Berkshire. No entanto, logo cedo Orwell se voltou contra os valores e o espírito da rede pública de ensino inglês. Ele nunca foi para a universidade, e depois de um período no cargo de policial imperial na Birmânia, ele enfim se estabeleceu na vida do intelectual literário estranho: trabalhava em uma livraria em Hamstard, revisando livros de outras pessoas; e, eventualmente, escrevendo suas próprias obras. Mesmo assim, o desprezo de Orwell pelos intelectuais era uma constante. Ele os acusou de uma série de pecados: falta de patriotismo, inveja do dinheiro e até do vigor físico alheio, frustrações sexuais escondidas, pretensão, desonestidade etc. Ele sabia disso tudo pelos bastidores do próprio convívio com outros intelectuais, mas a grandeza de Orwell emergiu da forte determinação com a qual ele reconheceu e veio a triunfar sobre tais tendências em si mesmo. “O fato realmente importante sobre a intelligentsia inglesa”, ele escreveu uma vez, “é a sua divisão e afastamento da cultura comum do país. Nos círculos de esquerda, sempre senti que há algo um pouco vergonhoso no fato de ser um inglês, e que era um dever rir de cada costume inglês, das corridas de cavalo aos pudins”. A geração de intelectuais da qual Orwell fazia parte, que havia testemunhado a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão, estava obcecada por novas doutrinas grandes e abstratas para redimir a humanidade. Alguns eram comunistas fanáticos, outros firmes defensores do capitalismo radical, e alguns estavam irados com os novos regimes autoritários da Itália, Espanha e Alemanha, e queriam algo semelhante para a Inglaterra. Orwell ouviu, e foi por um breve período seduzido por algumas dessas doutrinas. Mas ele gradualmente veio a defender algo muito mais radical: os gostos, as opiniões, as necessidades e as perspectivas de alguém que ele chamou de “a pessoa comum”. O conhecimento da vida comum veio um pouco tarde para Orwell. Como um produto típico de uma escola pública inglesa, ele tinha muito pouco contato com qualquer pessoa abaixo da sua própria classe social. Uma tendência que foi reforçada pelo seu temperamento naturalmente introspectivo, dado à leitura, e até mesmo um tanto esquisito. Um amigo o descreveu aos 25 anos como alguém “notavelmente antiquado para a sua idade”. Mas Orwell se esforçou para compensar sua falta de conhecimento, e aos poucos ou a ser o grande defensor do que ele chamou de vida comum: a vida de pessoas não especialmente abençoadas com bens materiais, que trabalham em empregos

comuns, que não têm muita escolaridade, que não vão alcançar a grandeza, mas que, apesar de tudo, amam e cuidam umas das outras, trabalham, se divertem, educam os filhos, e podem até mesmo ter grandes pensamentos sobre questões profundas da existência humana, por vias que Orwell achava especialmente iráveis. A jornada de Orwell na vida comum começou na primavera de 1928, quando ele deixou os privilégios de sua classe para trás, e ou a trabalhar em uma série de serviços braçais, nas capitais sa e inglesa. Experiências que ele estava para contar em seu livro, Na pior em Paris e Londres, publicado em 1933. O livro está repleto de carinho e retratos de vida atrás do balcão de hotéis e restaurantes, e exalta a camaradagem, o humor e o calor humano. Narra uma variedade de produtos de limpeza, borrachas de sapato, garçons, cozinheiros, chefs e, de vez em quando, prostitutas. Em suma, era um lado da vida que Orwell ainda sentira a necessidade de investigar. Em outro livro narrando suas viagens ao redor da indústria de mineração de carvão, no norte da Inglaterra, publicado em 1937 e intitulado O caminho para Wigan Pier, Orwell lança um olhar generoso e complexo sobre as pessoas que conheceu, sem nenhum resquício de sentimentalismo barato. Ele concluiu que a pessoa mediana de uma vila de mineração de carvão continha mais inteligência e sabedoria do que qualquer um dos membros do gabinete britânico, ou de uma faculdade em Oxbridge. Orwell gostou especialmente da falta de pudor e hipocrisia entre as pessoas comuns que ele conheceu. Uma coisa que se percebe quando ele escreve, se olhamos diretamente para as pessoas comuns, especialmente nas grandes cidades, é que elas não são puritanas. Elas são jogadoras experientes, bebem tanta cerveja quanto seus salários permitem, adoram piadas rudes e usam, é bem provável, a linguagem mais suja do mundo. Na época, como hoje, havia muitas informações nos jornais sobre pessoas comuns. Mas Orwell entendeu que tais notícias tendem a transformar as pessoas em abstrações. Assim, ele ou a ver como uma função do seu trabalho, o jornalismo literário, jogar luz sobre os seres humanos por trás das estatísticas, e assim ajudar a corrigir o preconceito e o racismo estrutural que circulavam por toda parte. Em um ensaio escrito em uma viagem para Marrakech, Orwell escreveu com sarcasmo sobre a atitude tipicamente neocolonial de viajantes diante dos habitantes locais:

As pessoas aqui têm rostos castanhos. Há tantas delas, elas realmente são da mesma carne que você? Será que elas sequer têm nomes? Ou seriam elas somente um tipo de material marrom indiferenciado, quase tão indivíduos como abelhas ou insetos de coral? Todas as pessoas que trabalham com as mãos são parcialmente invisíveis. E quanto mais importante é o trabalho que elas fazem, menos visíveis elas são.

O amor de Orwell pelo comum inspirou sua curiosidade sobre uma série de temas muitas vezes não considerados na literatura. Ele escreveu em louvor de histórias em quadrinhos e eios no campo, de dança, de flores e da culinária inglesa. Orwell escreveu com ternura em defesa de Charles Dickens, no momento em que este grande escritor era considerado sem cultura e demasiadamente popular para ganhar a estima dos intelectuais. Em um notável ensaio de 1946, Política e o idioma inglês, ele se ergueu contra a linguagem típica dos intelectuais, pretensiosa e cheia de palavras longas e chiques, e defendeu uma maneira simples, quase ingênua, de escrita. Ele esboçou uma lista de regras de como escrever bem, que incluiu uma proibição total de palavras extravagantes como “fenômeno”, “categórico” e “inexorável”. Orwell revelou ainda um ódio por palavras estrangeiras, tais como “status quo” e “deus ex machina”. E concluiu: “Não há realmente nenhuma necessidade para qualquer uma das centenas de frases estrangeiras agora correntes no inglês”. George Orwell é hoje um nome muito famoso em todo o planeta por conta de dois livros que na realidade desempenharam uma parte bem pequena em sua vida como um todo, ao menos se medirmos por uma escala temporal. Ele publicou A Revolução dos Bichos em 1945, quando tinha 42 anos de idade; e publicou 1984 em 1949, aos 45 anos de idade. Mas ele morreu em janeiro de 1950, com 46 anos. Assim sendo, ele viveu apenas cerca de quatro anos sendo o autor que conhecemos hoje. Em todo caso, estes dois livros são ancorados no pensamento profundo que Orwell exerceu ao longo de toda a sua vida adulta – sobre como a literatura deveria ser escrita numa época de filmes e comunicação de massa. Em suma, ele

sabia que a tarefa de um escritor era assegurar que as ideias mais sérias e profundas pudessem alcançar as camadas populares. A Revolução dos Bichos é um ensaio político sobre como as revoluções podem ser vítimas de contrarrevoluções, virando as costas para suas próprias ideias originais. A obra chega a mapear razoavelmente o progresso da Revolução sa, das Revoluções Europeias de 1848 e, principalmente, da Revolução Russa de 1917. Mas, descrita dessa forma, ninguém além de alguns poucos acadêmicos algum dia se interessaria em lê-la. A genialidade de Orwell estava em atingir o mesmo objetivo através de um formato de fábula, o que encaminhou a sua história até uma audiência de massa; afinal, sua obra poderia ser entendida, como ele mesmo afirmou, por praticamente qualquer um. Então, Orwell seguiu os os de Walt Disney e La Fontaine, que consistia em contar uma história sobre seres humanos através de animais. No processo, o autor revelou que os pecados dos revolucionários não estão limitados a pessoas diretamente envolvidas em revoluções de fato. Na verdade, esta é uma possibilidade humana permanente: um dia acreditar piamente nos mais elevados ideais, e depois eventualmente trair todos eles. Hoje, toda vez que uma revolução dá errado, as pessoas retornam às questões de A Revolução dos Bichos, e declaram que a obra estava à frente de seu tempo. Tão preciso! Ora, esta é a genialidade da fábula de Orwell: ao cortar todas as referências humanas contemporâneas, Orwell encontrou uma maneira de nos contar sobre nós mesmos em todo e qualquer tempo, inclusive no futuro. Tendo sido tremendamente bem sucedido em sua reinvenção da fábula, em uma nova e surpreendente explosão de criatividade, Orwell reinventou o romance de ficção científica. Quando menino, ele adorava os romances de H. G. Wells, especialmente A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos. Como Wells, ele se apoderou das tendências de seu próprio tempo, e tentou imaginar como elas poderiam se desenvolver no longo prazo. Seu romance de ficção científica está situado na Pista Um [Airstrip One], um lugar outrora conhecido como GrãBretanha, mas então uma província do superestado da Oceania – preso em um conflito ideológico perpétuo com dois outros blocos: Eurásia e Lestásia. Como todos os grandes romances distópicos, o livro de Orwell era uma tentativa de alertar a sua própria sociedade para suas próprias tendências alarmantes. Por exemplo, ele podia ver que o que pode aterrorizar um país não é tanto a tortura

pura e simples, ou restrições encobertas à liberdade de expressão, mas um “adormecer” dos cidadãos, através de entretenimento sofisticado e informações vazias de significado – tudo embrulhado em uma referência constante à liberdade. Assim, em 1984, a sociedade está repleta de novas máquinas intrigantes: telas onipresentes que viciam e, ao mesmo tempo, vigiam constantemente seus cidadãos. Julia, a figura feminina principal do romance, trabalha no departamento do governo conhecido como “Ministério da Verdade”, que distorce sistematicamente o o à informação de forma altamente sutil. Para cegar os cidadãos quanto a sua escravidão, Julia opera uma máquina que despeja romances pornográficos, junto com filmes cheios de sexo, e jornais que contém pouca coisa além de esporte, crimes e horóscopos. As pessoas, no entanto, não sentem que são escravizadas. Como Orwell entendia tão bem, os regimes realmente inteligentes e assustadores do mundo moderno não são aqueles obviamente ditatoriais; eles são democráticos na aparência, e dão aos seus cidadãos a nítida sensação de estarem livres; mas, na realidade, os cegam com excitação sexual constante e distrações sentimentais. Orwell teve a sabedoria de fazer a si mesmo notavelmente à prova do futuro. Ele estava cansado de abstrações econômicas e políticas, e começou seu trabalho perto da verdade da vida comum – as realidades do sexo, da comida, do dinheiro, do amor e do prazer. Assim, ele escreveu com total clareza sobre duradouros e eternos temas da natureza humana. Ele é, quem sabe, o mais bem sucedido escritor de língua inglesa do século XX, e nos deu ferramentas para continuar a imaginar o que deve ser a escrita em nosso próprio tempo.

Esta foi uma edição Textos para Reflexão, obrigado pela sua leitura.

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Literatura O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry

Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe A Metamorfose, de Franz Kafka Dom Casmurro, de Machado de Assis Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke O Sítio do Picapau Amarelo – Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll O Chamado de Cthulhu, de H. P. Lovecraft A Revolução dos Bichos, de George Orwell (JÁ DISPONÍVEL) 1984, de George Orwell

Poesia Navegar é preciso, de Fernando Pessoa Toda poesia de Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa Rumi – A dança da alma, de Jalal ud-Din Rumi Poemas de Álvaro de Campos, de Fernando Pessoa O Profeta, de Khalil Gibran Gitanjali: Oferenda Lírica, de Rabindranath Tagore Cancioneiro, de Fernando Pessoa

Espiritualidade Tao Te Ching: O Livro do Caminho e da Virtude, de Lao Tse

Os Evangelhos de Tomé e Maria A Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky Bhagavad Gita – A sublime canção da Grande Índia O Caibalion: uma iniciação ao hermetismo Luz no Caminho, de Mabel Collins Dhammapada: O Caminho do Darma O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, de Leal de Souza Introdução ao Yoga, de Annie Besant

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