Resenha Do Filme Meu Tio 1z476i

Universidade Federal da Bahia Faculdade de Arquitetura Disciplina: História da Arquitetura II Professora: Odete Dourado Resenha do Filme: Meu Tio (Mon Oncle) Direção: Jacques Tati. O filme é uma crítica muito lúcida à modernidade. Ele demonstra uma atitude de resistência contra a assimilação iva e questiona os propósitos das transformações pelas quais vêm ando a sociedade desde o final do século XIX. O discurso do filme incorpora e analisa de modo amplo diferentes aspectos desse processo: os valores, as aspirações, as ideologias, a estética. Há sempre uma desconfiança presente no tom irônico pelo qual o filme aborda as ideias e promessas que estão associadas à palavras como futuro e progresso. O filme começa com imagens de construções e máquinas, já anunciando a chegada de uma nova era. Um homem trabalha com uma britadeira ruidosa e seu poder destruidor é também sinônimo de renovação na medida em que vai abrindo caminhos para o futuro. A utilização de contrastes é a maneira encontrada pelo diretor para expor suas ideias sobre os avanços da tecnologia e seus efeitos nas vidas, no sentir o no cotidiano dos homens. Fica evidente que as pessoas não tem o aos avanços da tecnologia de modo homogêneo. O futuro não chega simultaneamente para todos; o processo é desigual e excludente. De inicio, ele é vivido por uma minoria supostamente privilegiada. Entretanto, ao se ultraar a ebulição da sensação de deslumbramento que a posse da novidade produz; desfeitas as ilusões de prazer e poder prometidas pela publicidade do novo: o que fica são as mesmas pessoas, percebendo nenhum, ou quase nenhum aprofundamento de seus espíritos. Os demais, isto é, a maioria das pessoas continua a viver sem grandes mudanças. Levam uma vida sem excessos, enfrentando as dificuldades diárias, buscando a sobrevivência. Surge assim o choque entre duas realidades distintas e coexistentes, que no filme estão separadas por um muro em ruína. As duas realidades são personificadas e estereotipadas pelo moderno casal Arpel de um lado e pelo tio do menino, Hulot, do outro. O pai, um homem obcecado pelo trabalho, arrogante, dominador e cheio de si, mora numa casa moderna, dirige carros luxuosos e fuma cigarros caros enquanto aprecia o patrimônio e sente orgulho de sua produtividade. Ele representa a elite, o novo, a vanguarda e a nova ordem. Ele é casado com uma

mulher submissa, serviçal e sem qualquer traço marcante na personalidade além de sua compulsão por limpeza. Ele nutre inveja e um pouco de ciúmes da relação que o tio Hulot estabelece com seu filho, o pequeno Gerard. Sua casa está situada num bairro nobre cheio de construções com formas geométricas puras, modernas e monocromáticas pintadas com tons claros e cinza. Há algo de luminoso e espetacular em tudo. No seu jardim a natureza está domada e tudo é rigorosamente desenhado. As poucas plantas dividem espaço com retângulos cheio de pedras coloridas. O peixe que habita o pequeno espelho d’agua é uma escultura de metal que esguicha água para impressionar as visitas importantes – e somente a elas - que entram pelo portão e percorrem um caminho sinuoso até a entrada da casa. Na casa onde tudo se comunica, decorada com sofisticados objetos ao estilo minimalista e móveis com design de vanguarda, parece faltar comunicação entre as pessoas que ali moram. Aliás, parece até que é a casa quem utiliza as pessoas e não o contrario. A atmosfera é plástica, fria, impessoal, monótona e artificial. Por sua vez, o tio é um homem desempregado, gentil e adora contar piadas. Hulot, que sempre carrega seu charuto e guarda chuva não importa a ocasião, leva uma vida marginal, no meio do povo, e valoriza o cotidiano e suas atividades banais. Ele representa não apenas a resistência à mudança, mas sobretudo sua postura é afirmação de uma outra dimensão do ser humano – que não é aperfeiçoável e talvez nem o precise ser - que questiona qual o real benefício e propósito do processo de celebração do novo. O tio mora junto com outras famílias num edifício cuja construção parece não obedecer a nenhuma lógica de funcionalidade e praticidade. Corredores, escadas, portas e janelas estão dispostos estranhamente e parecem tornar o caminho tanto mais longo e quanto mais rico em termos de sensações sensoriais e espaciais. Há um arinho que canta todas as vezes em que Hulot posiciona a janela de tal maneira a refletir o sol sobre sua gaiola. No mundo de Hulot as pessoas sentam-se nas praças e conversam entre si. O vendedor de folhas verdes observa sua banca de longe enquanto joga baralho e permite que a senhora escolha seu produto e deixe o dinheiro. É um gesto que demonstra a confiança entre homens e o desapego material. O homem responsável por recolher o lixo na rua adia sempre o seu trabalho por um dedo de prosa. Por essas ruas apertadas e escuras e se alimentando de lixo vagueiam cachorros vira-latas livres e alheios ao mundo. Nessa parte da cidade, onde se conserva algo de tradicional e artesanal, estão as pessoas de menor poder aquisitivo. Ali, elas vivem de um modo mais simples e solidário, no qual há a troca de afetos e por isso mesmo, apesar das limitações materiais, parecem ser mais felizes.

O garoto Gerard transita e experimenta esses dois mundos. É o tio quem busca o na escola. No caminho, ele faz travessuras nos carros e brinca com outros meninos subindo em tuneis até que chega em casa e retorna a vida entediante, solitária e cheia de formalidades. O tio evita, sempre que possível, permanecer na estranha a casa cheia de tecnologias que ele não sabe como manusear. Prefere mesmo é o assento de sua bicicleta e a legião dos cachorros que o seguem por aí. O fato de ele preferir o boneco de papel e o apito que são presentes do tio à locomotiva de brinquedo dada pelo pai nos mostra que nenhuma tecnologia é capaz de suprir a necessidade que o homem possui de estabelecer relacionamentos e estreitar laços com outros homens.

O filme, que possui mais de cinquenta anos desde sua filmagem, mostra-se interessantemente atual. Ele é registro de um tempo e nos fala sobre muitos dos dilemas e questões enfrentados pela sociedade ao se deparar com o progresso da tecnologia. Ele faz refletir sobre a necessidade de se manter a cautela desse processo que apresenta como um de seus aspectos mais contundentes a substituição das pessoas e das transações humanas por botões e engrenagens. Há que se manter um estado de alerta para que a crescente abstração da vida não lhe retire a substancia e com isso a própria graça da existência. Afinal, o encanto que a vida desperta talvez seja aquilo o que supera o mistério do mundo e a aparente falta de sentido das coisas.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Lucas Prates Santana

Salvador 2013